25 setembro 2017 às 00h12

Brasil Hoje ou a revolução numa embalagem de champô

Se existisse um Museu do Design no Brasil, esta era a "lista de compras" que o curador da exposição em Lisboa, Frederico Duarte, apresentaria

Mariana Pereira

No início éramos cerca de 15 a seguir os passos de Frederico Duarte pelo Palácio dos Condes da Calheta, no Jardim Botânico Tropical, em Belém. Na verdade, era Brasil adentro que avançávamos ao longo da exposição Como se Pronuncia Design em Português: Brasil Hoje, que mostra o design pronunciado em 50 projetos e 50 livros, todos brasileiros.

Mais visitantes se haviam de juntar ao grupo que, naquelas instalações temporárias do Museu do Design e da Moda (MUDE) - um homem comentava com outro que tinha ido espreitar as obras, na rua Augusta -, parava numa escadaria a olhar para as Projetações, do Coletivo Projetação. Eram de 2013 e falavam de Sérgio Cabral: o mesmo, ex-governador do Rio de Janeiro, que na última semana foi condenado a 45 anos de prisão. E depois a frase: "Missão de paz com exército nas favelas?" Logo pensávamos no que se passa agora na Rocinha, enorme favela do Rio.

Haviamos de parar depois junto à máquina de lavar a roupa Superpop, de Chelles & Hayashi. Feita de plástico, mais leve, mais barata, passível de ser transportada "subindo numa favela", chega a clientes com rendimentos menores num Brasil em que para muitos a máquina da roupa é um sinal do status económico e social, de tal maneira que a têm no meio da sala.

O que Frederico Duarte investiga, explica, está "entre as Havaianas e os Campana", os dois irmãos que são nome maior do design. O design do Brasil, país para que ele viajaria pela primeira vez em 2009, está no centro dos seus estudos. Primeiro, no mestrado e agora no doutoramento no Birbeck College, em parceria com o museu Victoria & Albert. No limite, a sua tese resultará numa espécie de "lista de compras" ou uma "política de aquisição" do que seria um Museu do Design do Brasil, que ainda não existe. "Esta exposição é um balão de ensaio do que pode ser essa coleção", explicava ontem à tarde. As fontes usadas para a exposição, conta, são as pessoas que foi conhecendo e entrevistando, percorrendo o país.

Continuamos. "Este é o projeto mais importante da exposição. Não parece muito. São embalagens de champô", anuncia o curador. Sou. É o resultado de uma encomenda da empresa de cosméticos Natura aos ateliês Questtó Nu e Tátil Design em 2011. Tinha quatro diretivas: teria de ser mais barato, chegar a um público novo, usar menos recursos, e ter uma mensagem de consumo consciente. Depois de uma "observação etnográfica", os designers perceberam "que muitos utilizadores de champôs ou gel de banho utilizavam a embalagem mole de refill [recarga], em vez de encherem a embalagem rígida". Além de ser mais barata, a embalagem de recarga "evita o desperdício", recorda Frederico: "Conseguimos espremê-la. Este projeto teve uma inspiração: a ideia de escassez, fazer menos com mais, evitar o desperdício ao máximo." Havendo variedade para todos os tipos de cabelo, o Sou só tem, todavia, uma fragrância: também essa escolha para evitar o desperdício de água que obrigava a lavar os depósitos dos líquidos das máquina. Isso demoraria sete horas e ia consumir imensa água; assim só vão mudando a fórmula, os ingredientes", diz o curador.

"E mais uma coisa espantosa, que eu sou utilizadora", lançaria Cândida, colega de Frederico quando este deu aulas na Faculdade de Belas Artes de Lisboa: "Escorregam muito menos do que as outras [embalagens] malvadas."

Há mais. Confete, a primeira capa personalizável para próteses de pernas produzida em massa que está em exposição ao lado de um smartphone, para que possamos ver o efeito que tiveram em que as usa. Aura, a joia criada a partir do nosso relato de uma história de amor ao microfone do iPhone, Hacker, a bomba de água portátil que surgiu das cabeças do Flui Coletivo face à crise de água em São Paulo, no ano de 2014. Tupyguá é o mel produzido por duas tribos indígenas, os Tupiniquim e os Guarani, que pediram à designer brasileira Anna Paula Diniz que os potes fossem dourados: "Porque para nós o mel é o sol", argumentaram As Havaianas e as Melissas, logo reconhecíveis pelo cheiro na sala que quem já as calçou não esquece. "Tem qualquer coisa de infância, não é?" pergunta Joana, também designer, e colega de Frederico. Há também a Casa Vila Matilde, que uma mulher a dias encomendou depois de se reformar à Terra e Tuma Arquitetos e que, pela polémica que causou (como se vê pelos recortes de imprensa ali em exposição), põe a Frederico a pergunta: "O design é para quem?"

O curador lembra que "as cotas começaram em 2002 na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Muitas das pessoas que eu entrevistei são professores e disseram-me: eu nunca tive um aluno negro, indígena, até às cotas. É diferente teres 30 alunos de meios favorecidos a discutir como é trabalhar para a favela, e teres miúdos da favela. Há um verdadeiro debate ideológico que acontece nas universidades por causa disso." E lembra: "Há 40 milhões de pessoas saíram do nível de pobreza e estão a consumir."

Frederico Duarte foi convidado pela diretora do MUDE, Bárbara Coutinho, para fazer um segundo capítulo da exposição que ela própria comissariara em 2015, Como se Pronuncia Design em Português. Na última sala estão os livros, fazendo da exposição também uma livraria, já que todos estão à venda.

Como se Pronuncia Design em Português: Brasil Hoje. Até dezembro no Palácio dos Condes da Calheta, no Jardim Botânico Tropical, Lisboa. Entrada livre