"Eu nunca editaria o José Rodrigues dos Santos mesmo sabendo que é o português que mais vende"

Francisco Vale, editor da Relógio D'Água, garante que nunca edita um livro a pensar nas vendas.
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O editor da Relógio D"Água garante que só criando uma relação de confiança entre os leitores mais exigentes e o seu catálogo é o único caminho para o sucesso editorial. Francisco Vale acredita que desse modo quando publica um livro que os leitores desconhecem, "partem do princípio que é bom e estão predispostos a adquiri-lo". Uma situação que qualquer editor deseja mas que é uma conquista difícil, porque "implica que se tenha de abdicar de títulos muito vendáveis e seguir o critério do valor intrínseco e não o das vendas previstas". Garante que nunca edita um livro a pensar nas vendas, ou iria deparar-se com "uma espécie de monstro ou de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, em que uma parte do catálogo é de qualidade e a outra parte não tem qualidade nenhuma". Um percurso de 35 anos que começa após uma intervenção política na extrema-esquerda antes e depois do 25 de Abril de 1974, uma tentativa frustrada em ser escritor e o abandono do jornalismo.

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O que diferencia a Relógio D"Água das outras editoras portuguesas?

Nem sempre é fácil fazer a diferença nos tempos que correm, em que é frequente os romancistas terem aulas de escrita criativa, e ser-se capaz de distinguir entre literatura e aquilo a que Umberto Eco chamava paraliteratura. A definição de literatura é uma discussão antiga, que vem desde a Poética, de Aristóteles. Como se trata de noções em que a intuição desempenha um certo papel, fica-se um pouco na situação de Santo Agostinho, que sabia muito bem o que era o tempo quando não lhe perguntavam o que era. Mas definir paraliteratura é mais simples. Dou um exemplo: ao ler A Fórmula de Deus, O Codex 632 e A Mão do Diabo, de José Rodrigues dos Santos, ou os romances de Margarida Rebelo Pinto, sabe-se que não são literatura, porque é evidente que não absorveram o que de melhor até hoje ela produziu, antes buscam o divertimento por si e efeitos emocionais fáceis - para mostrar que uma personagem é sensível põem-na a tocar piano ou a contemplar o pôr do Sol. Os romancistas de que gosto são capazes de tocar no fogo sem medo de se queimarem, causam estranheza, abalam certezas e escrevem livros de que saímos diferentes do que éramos.

Então, não editaria estes autores?

Darei um exemplo com um dos nomes citados: por exemplo, a Gradiva tem um excelente trabalho na área da ciência mas atualmente é mais conhecida como editora do José Rodrigues dos Santos. Eu nunca editaria o José Rodrigues dos Santos, mesmo sabendo que é o autor português que mais vende. Até percebo que isso aconteça, mas se ele desejasse propor-se para publicar na Relógio D"Água iria recusá-lo porque não queria que a editora fosse conhecida como a editora dele. A Gradiva tinha o direito de ser conhecida como editora do Stephen Hawking, do Carl Sagan e de outros autores na área da ciência, mas o que acontece é ser, de facto, conhecida digamos como editora de um best-seller de muito duvidosa qualidade. Que nem acho que seja literatura, é paraliteratura aquilo que Rodrigues dos Santos publica. Mas há outras editoras, por exemplo, a Guerra & Paz que tem um excelente nome - evoca o, talvez, maior romance de todos os tempos - e que é conhecida atualmente por editar o Hitler e por ter em A Minha Luta, o seu maior best-seller. Que nem é uma edição crítica ou, com o produto das vendas, financiar - imagine-se - bibliotecas públicas ou nalguns países grupos de resistência ao fascismo ou à ditadura.

Haveria, no entanto, alguns portugueses que gostaria de ter no seu catálogo?

Sim, e não estão porque há outras editoras que fazem um excelente trabalho. Teria prazer em publicar dez ensaístas, dez poetas e dez romancistas, e não posso porque estão editados noutro lado e, provavelmente, bem editados.

[citacao:Definir paraliteratura é mais simples. Dou um exemplo: ao ler A Fórmula de Deus, O Codex 632 e A Mão do Diabo, de José Rodrigues dos Santos, ou os romances de Margarida Rebelo Pinto, sabe-se que não são literatura, porque é evidente que não absorveram o que de melhor até hoje ela produziu, antes buscam o divertimento por si e efeitos emocionais fáceis]

Por exemplo?

Desta nova geração o Bruno Vieira Amaral, o Valter Hugo Mãe, o João Tordo, a Ana Maria de Carvalho; numa ainda anterior, o Mário de Carvalho, o António Lobo Antunes, o Eduardo Lourenço, o Frederico Lourenço...

Entretanto, conquistou Agustina...

Sim, e a Agustina, com a Sophia de Mello Breyner, é talvez a maior escritora portuguesa do século XX. Quando soube que estava a ser considerada indesejável pela Guimarães/Babel chegou a oportunidade de a editar e, obviamente, não a perdi.

O pretexto para "deitarem fora Agustina" é o de não vender muito. Foi uma má avaliação?

Sim, digamos que não se pode fazer uma avaliação demasiado estática sobre um autor vender ou não. Este tratamento a um grande clássico como a Agustina, ou José Cardoso Pires entre outros, deve-se ao facto de a Guimarães/Babel ser dirigida por uma pessoa que vinha do meio bancário e não ter experiência editorial, nem uma estratégia. Agustina está retirada da vida pública há mais de dez anos, portanto não aparece e atualmente os autores que não aparecem tendem a ser rapidamente esquecidos. Essa evocação não existiu na Guimarães, e na Relógio D"Água isso poderá ser feito porque temos a experiência dos clássicos que não estão aqui para poderem falar das suas obras, ir a festivais, a sessões de autógrafos ou dar entrevistas.

Qual é a estratégia para Agustina?

Como fizemos a Cardoso Pires. Para os primeiros dez livros dela encontrar prefaciadores que são escritores com uma certa empatia com a obra da Agustina e que têm públicos de leitores de todas as idades. É o caso do Gonçalo M. Tavares, do António Lobo Antunes, do Mega Ferreira, do Pedro Mexia, da Hélia Correia e de outros autores da nova geração que podem chamar a atenção para a importância da obra da Agustina. Além disso vamos ter outras iniciativas, como uma exposição sobre o Douro da Agustina com fotos do António Barreto, uma reposição de filmes que o Manuel de Oliveira e o João Botelho realizaram sobre obras da Agustina, uma representação teatral e uma ópera do João Lourenço sobre as personagens femininas da Agustina. Isso permitirá que se fale de novo da Agustina.

Não espera que Agustina seja uma Elena Ferrante a nível de vendas?

Certamente não será - não é que não mereça -, mas a Elena Ferrante é um caso muito singular por ser uma grande narradora e com características narrativas muito particulares. É uma obra bastante mais acessível do que a da Agustina.

[citacao: Não atribuo grande importância ao Nobel da Literatura. Proust, Borges ou Tolstói não o receberam e foi atribuído a dezenas de pessoas que hoje não sabemos quem são]

A nossa literatura do século XX está erradicada da ementa editorial atual. Há razão para tal esquecimento?

Para mim não está, mesmo que não apresente vendas espetaculares, apenas significativas. Os livros de Cardoso Pires estão a ter um número muito apreciável de novos leitores. Creio que houve autores do século XX que tiveram um certo destaque e que dificilmente chegam aos leitores de hoje, mesmo que haja um bom trabalho nesse sentido, mas há outros que podem e devem ser lidos.

Como editor que autores gostaria de recuperar entre esses esquecidos?

Estou a tentar todos os que possa: Raul Brandão, Teixeira Gomes, Florbela Espanca... Há ainda outros escritores, alguns deles reeditados, que têm obras de que gostei muito quando as li pela primeira vez há já bastantes anos, mas não sei se resistiram à passagem do tempo. É o caso de A Noite e o Riso, de Nuno Bragança, Maina Mendes, da Maria Velho da Costa, Aparição, de Vergílio Ferreira, e os romances e contos de Maria Judite de Carvalho.

Entre os escritores de linguagem muito complexa está Joyce e o seu Finnegans Wake. Será traduzido?

Penso que Finnegans Wake é um pouco uma logomaquia joyceana, mas estamos neste momento a trabalhar no sentido de o publicarmos para, pelo menos, a obra ficar ao alcance dos leitores portugueses. Devo dizer que na China esse livro foi um best-seller! Em todo caso, acho que não é uma obra essencial mesmo entre as obras joyceanas.

Quando fala em obras essenciais e vemos o Prémio Nobel ser entregue a Bob Dylan, que tem os poemas editados na sua editora, também não se imaginava que fosse nobelizável?

A atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan criou a polémica previsível, mas revela o que já era sabido das intenções da Academia: alargar o âmbito da atribuição do prémio. Em todo o caso, deve recordar-se que a literatura começou com a poesia, que depois foi musicada. Ou seja, o Nobel foi às raízes da literatura. A maior parte das letras de Bob Dylan - e eu não gosto de todas - tem um núcleo muito narrativo, que contam histórias do dia-a-dia da sociedade americana. Não se deve ignorar que a escolha de Bob Dylan levou também a uma reação de alguns romancistas que estão sempre à espera de receber um Nobel...

O próximo poderá voltar a ser uma surpresa, como já o foi Svetlana Alexievich e Bob Dylan?

Isso não sei, mas também não atribuo grande importância ao Nobel da Literatura. Proust, Borges ou Tolstói não o receberam e foi atribuído a dezenas de pessoas que hoje não sabemos quem são. Apesar de tudo, é o prémio literário mais prestigiado do mundo.

Quando Saramago recebeu o Nobel houve uma parte dos portugueses que não ficou feliz....

... Saramago tinha adversários por razões literárias e políticas, uma boa parte delas injustificadas. Em relação ao mérito intrínseco da obra literária de Saramago, não sei se é um dos vencedores que vai perdurar, mas espero que sim, pois tem uma obra mais importante do que a de muitos outros prémios Nobel.

Na língua portuguesa existirá algum nome atualmente capaz de ser escolhido para o Nobel?

A Academia tem critérios não só geográficos como políticos e linguísticos, embora haja casos singulares como o da Irlanda - que tem mais prémios Nobel por metro quadrado do que qualquer outro país -, mas não é provável que nos próximos anos seja atribuído o prémio a outros autores de língua portuguesa. Se os há, creio que podia citar dois ou três nomes, um deles é um candidato reiterado mas, mesmo na nova geração, começa a aparecer um ou outro autor que adquire um estatuto suficiente. No entanto, não creio que seja provável, pelas razões de alternância geográfica e linguística da atribuição do prémio.

O reiterado é António Lobo Antunes?

Sim. Mas, note-se que o Nobel tem outros critérios ainda, pois embora a Academia tenha tradutores, é evidente que existe mais possibilidade de ganhar por parte dos autores que sejam traduzidos na Suécia, Dinamarca e Noruega. Também os que tenham um certo perfil, pois nos próprios estatutos do Prémio está dito que o Nobel deverá ser atribuído a escritores que tenham algum tipo de humanismo. É por isso que autores de grande qualidade são excluídos, ou seja, é necessário que se preocupem com o bem-estar da humanidade e que apresentem posições politicamente corretas. Borges pode não ter recebido o Nobel por ter apoiado Perón numa dada fase, embora se tenha demarcado depois dele. Há critérios não apenas literários mas também políticos.

Surpreendeu-o o e-book ter falhado?

É prematuro dizê-lo, mesmo que haja uma certa regressão. O livro digital não cumpre as funções que o impresso em papel tem. Há tecnologias, e o livro é uma delas, que têm uma capacidade de resistência: andamos a comer com colher e garfo há milhares de anos.

É um escritor que ficou pelo caminho por ter desistido. Isso facilita-lhe o relacionamento com os autores?

Devo dizer que sempre tive uma relação muito forte com a escrita, mas por razões que remetiam para a própria realidade política do país, entre os anos 60 e meados dos anos 70, dediquei-me à vida política ativa em organizações ditas de extrema-esquerda porque achei que eram mais eficazes para mudar o sistema existente neste país.

Muito radicais, diga-se!

Foram organizações que estiveram na origem do PSR (Partido Socialista Revolucionário), que é uma das componentes do Bloco de Esquerda, e fui um dos fundadores da LCI (Liga Comunista Internacionalista), sendo em 1975 da direção da Liga. Depois, enveredei pelo jornalismo no Diário de Lisboa, que foi uma experiência feliz e onde convivi com José Cardoso Pires e Fernando Assis Pacheco e trabalhava ao lado da Maria Judite de Carvalho. A seguir, passei para o semanário O Jornal, com o José Carlos Vasconcelos, o Beça Múrias e outros. Portanto, foi uma experiência muito feliz de escrita, de que recordo o ato de escrever um texto e passado umas horas vê-lo multiplicado por dezenas de milhares de exemplares.

E no âmbito da literatura?

Escrevi alguns livros, dois de ficção e um de ensaio. Só que era incompatível manter a atividade de jornalista com a de editor no início dos anos 80, além de entretanto ter-me tornado agricultor.

Enquanto autor fazia bom juízo de si?

Para mim, um autor deve ter uma relação obsessiva com a sua obra, porque é daquelas artes onde se é muito bom ou mais vale estar quieto. Posso revelar que uma razão que me levou a desistir de ser escritor foi ter lido certos fragmentos da obra de Tolstói. Lembro-me de num dos meus livros ter uma cena em que a personagem estava na iminência de morrer e esforcei-me muito por tornar aquilo uma cena importante do livro. Nesse momento estava a ler Guerra e Paz, onde existe uma cena durante a invasão napoleónica da Rússia, com o drama pessoal do príncipe, em que o mesmo era retratado de uma maneira de que eu nunca me aproximaria. Portanto, ou tinha uma relação obsessiva e tentava mesmo ser um bom escritor ou desistia e dedicava-me a ser uma espécie de escritor por procuração, que é ser editor. Assim, revejo-me um pouco através das obra dos autores que publico.

No site da editora tem conselhos para um primeiro livro, datados de 2009. Um é afirmar que há o risco de nunca viver do que escreve. Isso mantém-se?

Mantém-se, até porque a maior parte dos escritores portugueses não o consegue. A pequena dimensão do mercado acentua o problema, mas mesmo em Espanha, França, Alemanha ou até na Grã-Bretanha, poucos vivem da escrita. Daí que o jovem escritor deva ter uma ideia clara de que terá de acumular essa atividade com outras.

Voltemos atrás. Guarda boas memórias desses tempos da PSR e da LCI?

Sim, excelentes memórias porque coincidia com a juventude e o ímpeto vital que tínhamos nessa época com atividade política revolucionária. Cheguei a ter anos muito duros de clandestinidade e, como a organização de que fazia parte não tinha grandes meios, vivia em condições precárias, tendo passado muito frio nalguns invernos. Lembro-me de que a única vez em que comi bem nesse período foi quando um conhecido fez anos e conseguiu-se desviar o que sobrou dessa festa para a pessoa que tinha os contactos comigo. Era uma ditadura, devia-se acabar com ela, e o que me parecia mais eficaz era o trabalho político. Não acreditava no PCP nem na Ação Socialista (PS). Claro que atualmente tenho uma visão bastante crítica das minhas ilusões dessa altura, embora fosse um pouco heterodoxo.

Essa visão crítica começa a partir do 25 de Novembro de 1975?

Não, já vinha de antes. Estava numa organização trotskista e isso criou-me alguns problemas porque nunca achei que o Trótsky fosse o melhor. Gostava do Trótsky porque escrevia muito bem, como a Rosa de Luxemburgo ou Marx, numa dada fase. Mas não teve que ver com o 25 de Novembro, antes uns tempos depois quando pude parar, pensar e ler nas minhas primeiras férias em muitos anos, que me abriram um espaço de reflexão. Quando se está numa organização é-se muito condicionado em termos de pensamento, quer se queira ou não.

O período entre o 11 de Março e o 25 de Novembro serviu à nossa história?

Teve um papel objetivo de varrer muito da estrutura ditatorial com os laivos fascistas - embora não fosse propriamente um regime fascista - e os aspetos fascizantes de uma ditadura burocrática militar muito acentuada e que era irreformável com a guerra colonial em curso. Também se cometeram muitos erros: as nacionalizações como foram feitas da banca e da indústria, até das pequenas barbearias, e que Portugal esteve a pagar durante muitos anos. Até a dinâmica que havia na altura por parte da extrema-esquerda era no sentido de instaurar uma ditadura popular, projeto em que não me revejo já há muitos anos.

Se tivesse continuado a ser escritor hoje em dia teria muitos festivais literários para ir. Acha que é uma escapatória para os autores nacionais?

Serve para conviverem e mostrarem-se, mas acho que é prejudicial para os escritores e para a literatura no seu conjunto. Pelo menos nos termos em que são organizados e com a proliferação que hoje têm, pois geram uma certa dispersão. Alguns festivais são interessantes, o LeV em Matosinhos, mas há outros que não. Por outro lado, as autarquias têm um papel pouco correto e há até uma agência literária que tem em carteira vários autores que os faz chave na mão. No caso da Póvoa de Varzim, a autarquia atribui-se um papel que não tem, que é o de juízos literários.

Acha que a maioria dos júris dos prémios literários são suspeitos?

Depende, há alguns júris que são confiáveis e quando escolhidos pela autarquia viciam-se as regras do jogo. Os prémios valem aquilo que é o júri que os atribui e o prestígio que vão adquirindo deve-se também aos critérios utilizados, mesmo que já não tenham a importância de outros tempos. É o caso do da Associação Portuguesa de Escritores, que foi um prémio altamente prestigiado e atualmente está bastante banalizado. Antigamente, quinze dias antes, só se falava desse prémio e após ser atribuído havia trabalhos constantes sobre ele, agora passa despercebido.

Houve uma edição em que estiveram em competição Balada da Praia dos Cães e o Memorial do Convento e José Cardoso Pires ganhou. Era o melhor?

Essa é uma pergunta complicada porque fui bastante amigo do José Cardoso Pires, que foi meu sogro durante bastantes anos, e Balada da Praia dos Cães é um dos seus melhores romances. Eu gosto muito do Memorial do Convento, que para mim é de longe a melhor obra de José Saramago e é um dos grandes livros da literatura portuguesa de sempre: Portanto, tenho muito dificuldade retrospetiva em fazer justiça nesse caso. Além do mais, o Memorial do Convento criou uma das poucas personagens da literatura portuguesa que ficam - toda gente sabe quem é Blimunda. Que personagens mais há? A Sibila da Agustina talvez, o Delfim do Cardoso Pires, o Malhadinhas do Aquilino... Claro que há também as personagens criadas por Eça em Os Maias, Carlos da Maia e Ega, ou em A Relíquia, Teodorico Raposo, bem como as de Camilo no Amor de Perdição, Simão e Teresa, na Brasileira de Prazins e Maria Moisés, ou as que saíram do universo ficcional de Júlio Dinis e, muito antes dele, do teatro de Gil Vicente.

Porque se inibem hoje em dia os escritores de ter uma opinião pública?

O que se passa é que os escritores são muito pouco ouvidos comparando com o que se passava nos anos 50 e 60. Em França, com Camus e Sartre, nos EUA, com Arthur Miller e Chomsky. Em Portugal quem é que temos? Eduardo Lourenço...

[citacao: Tenho pelo menos dois casos que me arrependi de não ter editado imediatamente.]

Os próprios fogem a ter uma opinião!

A maior parte deles estão sempre disponíveis para falar quando são convidados para a televisão, mas em geral não o são muito porque a sua audiência é pequena e o prestígio social e cultural não abrange a sociedade no seu conjunto. Também conheço alguns que recusaram a partir de uma certa altura, o Fernando Gil, por exemplo, porque achava que não tinha essa vocação e prejudicava o seu trabalho de investigação. Aliás, aqui em Portugal já não assistimos a uma polémica ou a uma intervenção pública de um escritor há muito tempo. Exclui-se o Eduardo Lourenço ou o António Lobo Antunes, também com alguma dimensão. De resto, há escritores com muitos leitores e que, provavelmente, serão escutados mas não acho que sejam escritores literários. Um dos últimos que era ouvido foi José Saramago, curiosamente não veio da televisão como a maior parte dos escritores que vendem muito, que começaram por ter audiência através da profissão. Saramago tinha leitores ligados ao PCP, que sempre leram, mas nunca teve um acesso à televisão.

Também houve Fernando Gil, que é o best-seller máximo da sua editora.

Sim, devem ter sido publicados cerca de 80 mil exemplares do seu ensaio.

Tem-se notado um aumento disfarçado do preço dos livros. Até que ponto não é prejudicial para a venda?

Essa deve ser a reação de algumas editoras ao decréscimo das vendas, pois quanto menor é a tiragem mais altos os custos unitários. É errado compensar com o aumento do preço dos livros, tanto que uma das coleções que atualmente temos com maior crescimento é a dos clássicos - que comemoram os 35 anos da editora - e custam entre 5 e 10 euros, mesmo os com 300 páginas ou até mais, como é o caso de Proust.

Deve ter muitos autores que lhe entregam originais para apreciar e que não aceitou. Já lamentou alguma recusa?

Sim. Só para referir autores portugueses tenho pelo menos dois casos que me arrependi de não ter editado imediatamente.

Não quer dizer quem são?

Posso dizer, um foi um livro do Gonçalo M. Tavares. Ele encontrou-me na rua e disse: "Quero editar o livro na Relógio D"Água." Eu não o conhecia de lado nenhum, disse-lhe para enviar o original. Ele mandou, mas na altura não achei bom e, de facto, mesmo hoje é um dos seus livros sobre o qual tenho algumas reservas. Outra, foi a Margarida Vale de Gato, que me propôs um livro de poemas há relativamente pouco tempo e que na altura decidi não editar. São dois casos em que tentei reverter a situação. Mas devo dizer que cometi outros erros em relação a livros estrangeiros, ou seja, sou um editor que cometeu bastantes enganos ao longo da sua vida.

Tem algum livro que preferia não ter editado?

Há livros que não editaria hoje entre os quase 1800 que publiquei. Talvez, uns 50. Era o meu gosto na altura.

[citacao:Estatisticamente, temos um best-seller a cada 150 livros]

Foi o seu gosto literário que fez a editora crescer 5% no ano passado?

Foi bastante mais do que isso e, mesmo durante a crise, não baixámos, porque conseguimos uma fidelização de leitores. Há pelo menos 600 mil leituras de livros da Relógio D"Água por ano.

600 mil leituras equivale a quantos exemplares vendidos por ano?

Cerca de 400 mil.

Não receia perder o controlo da editora com este crescimento?

Não, o risco maior numa editora que cresce é aumentar a estrutura e despesas inerentes e, ao fazê-lo, tem de andar à procura do best-seller. Estatisticamente, temos um best-seller a cada 150 livros, mas mantemos sensivelmente a estrutura entre 10 e 14 pessoas.

Não pensa criar chancelas?

Não excluo essa possibilidade, a não ser se houver uma editora de grande qualidade que tenha dificuldades e se associe à Relógio D"Água. Não o excluímos, mas nunca para editar lixo.

A intenção é competir com os grandes grupos editoriais portugueses?

Em Portugal há dois grandes grupos: a Porto Editora, que tem uma estrutura familiar, e a Leya. Ambos têm fragilidades por causa do livro escolar em que assenta a sua atividade. Além disso a Leya tem outra, que é o seu empresário, Pais do Amaral, em dificuldades no seu diversificado grupo financeiro. Existe uma editora intermédia, a Presença, que tem tido uma evolução híbrida por se desdobrar em chancelas que misturam lixo com obras de qualidade. A Relógio D"Água é, pelo ritmo de edição, uma média editora e muito estável.

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