A artista cria, a peça diz, o espectador faz

Dança, voz e teatro comandam há 20 anos o trabalho de Lígia Soares, uma criadora que altera as fronteiras entre cena e espectador a cada espetáculo que põe de pé

Enunciar as valências artísticas dela é um exercício à escala dos nomes demasiado longos para caberem no Cartão de Cidadão: Lígia Soares é dramaturga, coreógrafa, encenadora, performer, programadora (e artista visual e produtora). "Dança, voz, texto - é tudo a mesma coisa e o corpo está ao serviço de todas estas funções, como aquelas fotocopiadoras que são scanners e enviam faxes", explica, com a ironia que atravessa os espetáculos que concebe. Tem obra feita (20 anos de criação em teatro e dança), obra a fazer (peças escritas à espera de coprodutores) e uma intervenção continuada na programação independente, a meias com Andresa Soares, gémea e cofundadora da associação Máquina Agradável (desde 2002) e parceira de criação regular (como Miguel Castro Caldas ou Sílvia Pinto Coelho).

Começou num tempo e lugar onde tudo parecia possível no teatro português - a meio dos anos 90, na Companhia Sensurround, de Lúcia Sigalho - onde a prática da performance, da escrita, e a própria invenção do sítio-cenário (o Armazém do Ferro) lhe alargou o horizonte que entrevira nos workshops de teatro de António Feio e na escola António Arroio - o pai era artista plástico e desenhar sempre lhe foi natural. Tinha 19 anos. Aos 22, ao arrepio da prática, entrou na Escola Superior de Dança. "Achei que a dança era um campo de liberdade maior do que o teatro, mais profícuo para a escrita. Ainda hoje é."

Nela, a necessidade de experimentação andou amiúde a par com a afirmação da responsabilidade do artista independente. "Sempre tentei procurar contextos tanto para me programar como para programar colegas. É crucial o que o artista quer dizer, além do que as instituições, a DGArtes, os programadores e agentes culturais valorizam." DemiMonde, o Ginjal ou o cinema Nimas foram só alguns dos espaços que a Máquina Agradável coprogramou, "sítios sagrados de encontro e desenvolvimento, onde os artistas não são produtos em competição uns com os outros". O programa Very Typical (até dia 13 no espaço Ribeira) participa desta filosofia, ao mesmo tempo que "aponta ao público que está a fazer crescer a restauração ou a hotelaria mas não a arte contemporânea" com três espetáculos falados em inglês, para turista ver e ouvir - Today Is It a Squirrel?, de Sónia Baptista, Rang-a-Dang, de Ricardo Vaz Trindade, e Romance, dela. Este é um trabalho a solo mas que envolve completamente o público na sua representação: "Quis escrever uma peça a dizer "diz". Não tem que ver com teatro interativo, mas com a inclusão do espectador na criação de um mundo. Percebi que esse compromisso é simples mas raro na atual prática teatral e na maneira como o espectador consome o teatro. E é, para mim, a forma mais contemporânea e urgente que o teatro tem de mudar a sociedade."

No espetáculo Turning Backs, criado com Rita Vilhena e Diogo Alvim (que em setembro ocupa o Museu de Serralves), já não existem performers. Esse lugar é ocupado pelo público que, costas contra costas, se entrega a jogos fonéticos enquanto se ouve a si próprio respirar, em coro. "As pessoas já não se juntam porque desconfiam muito de realidades comuns. E no meio deste cinismo o teatro pode ter esse papel, questionar o que representa a voz de cada um." Também em Ato da Primavera - em outubro, no TNDMII - Lígia há de voltar a chamar o espectador ao lugar do performer para dar voz a "sete peças para telepontos e microfones", cada uma escrita por um dramaturgo convidado e encenada sem ensaio prévio.

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