"Zelensky não é propriamente um líder de guerra, mas sim um chefe de Estado que ajuda o país com o que faz de melhor: comunicar"
Têm sido várias as biografias de Volodymyr Zelensky publicadas em Portugal desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro, o que mostra curiosidade dos leitores portugueses pelo antigo ator que agora, como presidente, tem de liderar a resistência do seu país à máquina de guerra de Putin. Este Volodymyr Zelensky: na cabeça de um herói esforça-se por nos dar a conhecer como um candidato presidencial ingénuo, que acreditava que podia dialogar com o presidente russo, teve de corrigir o erro inicial de perceção e transformar-se no grande obstáculo simbólico às ambições de Putin. Régis Genté, aqui entrevistado, é correspondente em Tiblíssi do Figaro, da RFI e da France 24, e as suas duas décadas de vivência na Geórgia, cobrindo todo o ex-espaço soviético, permitem-lhe uma visão quase única, até porque testemunhou em 2008 a guerra russo-georgiana. Em complemento, aprofundando a análise ao presidente ucraniano, o livro conta com a coautoria de Stéphane Siohan, jornalista francês que é correspondente em Kiev do Libération, e que testemunhou de perto a evolução de Zelensky nestes três anos e meio desde a vitória eleitoral.
Foi surpreendente para si, como especialista nas ex-repúblicas soviéticas, a eleição de Volodymyr Zelensky em 2019 para presidente? Ele era, como candidato, totalmente diferente dos políticos tradicionais da Ucrânia e da própria região?
Sim e não. Não, porque tive conhecimento de que algumas pessoas bem informadas, em redor dos oligarcas, já pensavam uns dois anos antes da eleição que Zelensky poderia ser um candidato sério. Os oligarcas, para manterem a sua posição no jogo político, fazem muitas sondagens de opinião. E acho que pelos resultados que obtiveram, eles entenderam que o povo ucraniano estava pronto para eleger alguém de fora da política. Mas honestamente, no dia 1 de janeiro de 2019, eu não pensava de todo que ele pudesse vencer. Na verdade, ele era totalmente diferente, não era um político. Vinha da comédia, dos programas de televisão. E o mais extraordinário é que ele desempenhou o papel numa série de televisão de uma figura não-política que se torna presidente da Ucrânia... a história era extraordinária demais para ser verdade. Como um comediante que fez o papel de um não-político que se torna chefe de Estado pode tornar-se presidente de verdade. Aconteceu...
O projeto político de Zelensky naquele momento era realmente diferente do de Petro Poroshenko, presidente desde 2014 e candidato à reeleição, especialmente no que diz respeito às negociações com a Rússia e os separatistas pró-Rússia no Donbass?
Sim, era. Porque Zelensky era incrivelmente ingénuo. Ele pensou que poderia falar com Vladimir Putin e obter algumas concessões. Zelensky não entendeu, no início, que Putin não faria nenhuma concessão e continuaria a pedir a Kiev basicamente que esquecesse a sua soberania. Zelensky pensava assim porque, na realidade, sentia que a sociedade ucraniana estava cansada da guerra e queria a paz. Ele pegou nesse sentimento e fez dele uma promessa de campanha. Mas se os ucranianos queriam paz, isso não significava que eles se queriam render à Rússia. No fim de contas, observamos que Zelensky acabou por seguir uma política não tão diferente assim da de Poroshenko, que foi rotulada como "nacionalista", mas que provavelmente era mais realista e sabia desde o início que Putin queria apenas que a Ucrânia perdesse a sua soberania.
Como vê a transformação de Zelensky após a invasão russa de 24 de fevereiro deste ano? Foi agora uma surpresa para si a coragem e determinação que mostrou?
Eu não diria que fiquei surpreendido com a sua coragem e determinação. A Ucrânia é uma espécie de democracia, muito imperfeita, mas uma democracia, no sentido em que a legitimidade do presidente vem do povo, da eleição. Entre a profunda mutação que o país sofre desde há 30 anos, 2014 desempenha um papel muito importante. Porque quando no fim de 2013 o então chefe de Estado Viktor Yanukovich decidiu sozinho, sem consultar ninguém e por pressão do Kremlin, que a Ucrânia não assinaria um acordo de associação com a UE, as pessoas correram para as ruas. Na Ucrânia de hoje, o presidente não pode decidir sozinho sobre o destino do país. Os acontecimentos subsequentes, aquilo a que chamamos Maidan, Euro-Maidan, são a ilustração disso. Assim, atualmente, o presidente está realmente a atuar sabendo que é ele o representante do povo ucraniano. Zelensky não podia deixar o país depois de 24 de fevereiro, depois de Putin ter lançado uma guerra em larga escala contra a Ucrânia. Sim, Zelensky transformou-se, agora enfrenta a realidade. Até ao último dia, até 23 de fevereiro, ele não queria acreditar que Putin avançaria com os seus tanques pelo território ucraniano.
Acha que ele está realmente a definir as opções do país ou é mais uma figura simbólica da resistência de uma nação?
É difícil afirmar com segurança, mas pelo que vejo, ele não é uma figura simbólica. Mas, entretanto, ele não pode decidir sozinho o que fazer, especialmente nos assuntos de defesa e segurança. Sinto, aliás, que Zelensky não é propriamente um "líder de guerra" como tal, mas mais um chefe de Estado que ajuda o seu país com o que faz melhor, comunicando, "criando mensagens" como ele próprio diz por vezes.
Consegue imaginar Zelensky e Putin sentados à mesma mesa a discutirem a paz?
Ao contrário do que Putin diz, Zelensky estava e está sempre pronto para se sentar à mesa com ele. Fá-lo-á se for preciso, e se sentir que tem um mandato do povo para isso, mas não para abrir mão da soberania ucraniana, exceto se a Ucrânia nos próximos meses estiver a perder totalmente a nível militar e não tiver outra escolha. Claro, as atrocidades cometidas pelo Exército russo tornam cada dia mais difícil para Zelensky sentar-se à mesma mesa que Putin. Está claro para todos que esta guerra é sobre a própria existência da Ucrânia como Estado.
Foi fácil concordar com o outro coautor da biografia, Stéphane Siohan, sobre Zelensky, ou o facto de ele estar radicado em Kiev deu-lhe uma perspetiva diferente da sua?
Boa pergunta, obrigado. Nós conhecemo-nos muito bem e concordamos nas coisas básicas sobre a região. Muitas vezes falamos para compreendermos juntos os acontecimentos na zona, como por exemplo, em 2020, durante a guerra em Nagorno-Karabakh, que eu estava a cobrir especialmente para a Radio France Internationale. Então, Stéphane ligava-me para ouvir as minhas impressões e análises no terreno. Mas sim, o facto de ele morar em Kiev e eu em Tiblíssi torna o nosso ponto de vista um pouco diferente e, também, porque eu estou a cobrir mais toda a região - Sul do Cáucaso, Rússia, Ásia Central -, enquanto Stéphane está mais focado na Ucrânia, porque há muitas notícias para relatar desde 2014. Assim, nesse sentido, somos muito complementares.
Qual é a importância de Zelensky e da resistência ucraniana em geral contra a Rússia para países como a Geórgia?
É extremamente importante. Os georgianos sabem que se a Rússia estiver a ganhar na Ucrânia, imediatamente a seguir Moscovo pedirá a Tiblíssi que esqueça os seus sonhos euro-atlânticos. Na realidade, observando o que está a acontecer na Geórgia nos últimos meses, acho que a Rússia já está a pressionar muito a liderança georgiana para que o país faça uma inversão geopolítica e volte à esfera de influência russa.
A Geórgia foi atacada pela Rússia em 2008. Vê alguma semelhança entre Mikheil Saakashvili naquele momento e Zelensky agora?
Sim, porque os dois países estão numa situação muito semelhante. Eles têm a mesma determinação de deixar o mundo russo e juntarem-se ao ocidental. Mas as personalidades de Saakashvili e Zelensky são diferentes. Saakashvili é mais de confronto, de ausência de compromisso com Moscovo, enquanto Zelensky está mais disposto a conversar mesmo com o Kremlin, a sua história pessoal torna-o também mais próximo do mundo russo. Mas a verdade é que quer se esteja pronto para conversar com Putin ou não, obtém-se o mesmo resultado: a guerra.
A paz e a estabilidade na Ucrânia, Geórgia e Moldávia dependem de uma adesão à União Europeia ou o ponto crítico é uma mudança de liderança e política na Rússia?
É uma pergunta ampla e difícil. Como responder? Vamos por aqui: se olharmos para a Geórgia, veremos que o país se tornou "vítima" do separatismo apoiado pela Rússia muito antes de Putin chegar ao poder. A guerra "secessionista" na Abcásia e na Ossétia do Sul, as duas regiões separatistas da Geórgia, ocorreu em 1991-1993. Muito antes também de a Geórgia ter decidido concordar com alguma parceria com a NATO. Isso significa que quando Putin diz que tem de lançar uma guerra na Ucrânia porque a NATO ameaça a Rússia, como se qualquer pessoa no mundo se atrevesse a atacar um país que é uma grande potência nuclear, ele está a mentir. A questão não é a NATO. Para a Rússia a questão é manter o seu regime político autocrático ou ditatorial. E, para isso, ele precisa que os países vizinhos, sejam da mesma natureza que a Rússia. Se a Ucrânia, a Moldávia ou a Geórgia se tornarem membros da NATO ou da UE, isso significa que terão de se tornar realmente democracias. Isso, na opinião de Putin, ameaçaria o regime político da Rússia... e o regime pessoal de Putin. Não tenho a certeza de que uma mudança de liderança em Moscovo afetasse profundamente o comportamento geopolítico da Rússia. Putin está, em muitos aspetos, a continuar a política de Ieltsin, ou pelo menos a política que foi conduzida por Ieltsin sob a pressão de parte do sistema (os siloviki, as estruturas de aplicação da lei como o FSB, o GRU etc.).
Escreveu outro livro alguns anos atrás sobre Putin e o Cáucaso. Qual a importância da Geórgia, Arménia e Azerbaijão para as ambições geopolíticas de Putin?
A guerra na Geórgia em 2008 é a mesma guerra que observamos desde há 6 meses na Ucrânia. É a continuação da mesma guerra, sem dúvida. Nesse sentido, os três países do Sul do Cáucaso também são cruciais para as ambições e visão de mundo de Putin. Mas a Ucrânia é provavelmente mais importante, porque há uma componente de identidade que não temos no sul do Cáucaso.
Régis Genté e Stéphane Siohan
Esfera dos livros
136 páginas
14,90 euros
leonidio.ferreira@dn.pt