Zelensky faz limpeza no governo face ao velho inimigo: a corrupção

"O Estado não vai mostrar fraqueza", disse o presidente sobre a maior remodelação desde a invasão da Rússia. O problema não é novo, mas a guerra tem tendência para o piorar.
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O vice-ministro ucraniano das Infraestruturas terá recebido um suborno para facilitar a compra de geradores a preços inflacionados. O da Defesa terá feito a mesma jogada com as rações alimentares para os soldados. O vice-líder do partido no poder terá comprado uma casa em Kiev acima das suas posses e um vice-procurador-geral foi passar férias a Espanha num Mercedes de um proeminente empresário, quando a saída do país de homens em idade de combater é proibida. Também o número dois do gabinete presidencial foi apanhado a conduzir um carro enviado pela General Motors para o resgate de civis nas zonas de combate e para missões humanitárias.

Os cinco fazem parte do grupo de pelo menos 15 altos responsáveis que se demitiram ou foram demitidos pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, nos últimos dias, numa tentativa de limpar a casa em plena guerra contra a Rússia e quando milhões de dólares e euros em ajuda estão a chegar a Kiev. "Quero que fique claro. Não haverá um regresso à forma como as coisas costumavam ser", disse Zelensky após a detenção do vice-ministro das Infraestruturas, Vasyl Lozinskyi, que é o único oficialmente acusado pelas autoridades.

A corrupção não é algo novo e já existia na Ucrânia ainda antes da invasão - o país era o segundo mais corrupto da Europa (atrás apenas da Rússia) no índice de perceção da corrupção da Transparência Internacional de 2021. Zelensky foi eleito em 2019 em parte com a promessa de reformas alargadas para lidar com o problema endémico - apesar de em outubro de 2021 ter sido revelado, nos Panama Papers, que o antigo ator também teria usado contas offshore e que não as teria declarado.

Apesar das promessas, no final de 2021, numa altura em que já havia avisos de que as tropas russas estavam a concentrar-se junto à fronteira, os EUA e a União Europeia mostravam-se "desapontados" com os atrasos para a nomeação de um procurador-geral anticorrupção - o cargo ficou vago de agosto de 2020 até julho do ano passado, quando tomou posse Oleksandr Klymenko (após uma outra limpeza nas instituições). Antes, em junho de 2022, quando a Ucrânia ganhou oficialmente o estatuto de país candidato à União Europeia, uma das exigências de Bruxelas foi o reforço da luta contra a corrupção.

Nessa altura, o país já estava em guerra. "Nenhuma circunstância é mais propícia à existência e ao desenvolvimento da corrupção do que um conflito armado", escreveu o especialista esloveno, Drago Kos, numa análise em junho, quando liderava o Grupo de Trabalho sobre Subornos na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Kos lembrava que, em caso de conflito, "o sistema estatal de controlo social - aplicação da lei e judiciário - é incapaz de desempenhar as suas funções essenciais; na ausência de bens básicos, como comida, medicamentos, etc., os níveis de comportamento predatório e desrespeito pelas normas legais e princípios éticos aumentam; e nunca se dá atenção suficiente ao combate à corrupção durante um conflito no consequente caos". A somar a isto, referia o especialista esloveno, "o influxo potencialmente significativo de ajuda estrangeira, e o resultado é uma mistura de circunstâncias e condições objetivas e subjetivas, que podem muito bem levar a uma explosão da corrupção a todos os níveis".

A remodelação feita nos últimos dias por Zelensky, depois de várias notícias de escândalos de corrupção, é a maior reorganização desde a invasão russa, a 24 de fevereiro. Representa uma tentativa do presidente de limpar a imagem do país que quer fazer parte da União Europeia e da NATO e que aguarda uma decisão sobre o envio dos tão desejados tanques pesados Leopard 2. "Congratulamo-nos por as autoridades ucranianas levarem a sério as suspeitas de corrupção", disse uma porta-voz da Comissão Europeia.

"A Ucrânia não vai mostrar fraqueza. O Estado não vai mostrar fraqueza", escreveu Zelensky na mensagem no Telegram em que anunciava que tinha feito umas "decisões sobre pessoal" que envolviam "oficiais de vários níveis em ministérios e outros órgãos governamentais, em regiões e no sistema de aplicação da lei". Em lado nenhum na mensagem falava em corrupção, mas anunciava que nenhum oficial estava autorizado a viajar para o estrangeiro para qualquer motivo que não seja governamental - após o vice-procurador ter ido de férias para Espanha.

A nível dos governos regionais, foi anunciada a saída de Valentin Reznichenko, de Dnipropetrovsk (centro), Oleksandr Starukh, de Zaporíjia (sul), Dmytro Zhivytsky, de Sumy (norte), Yaroslav Yanushevich, de Kherson (sul), e Oleksiy Kuleba, da região da capital, Kiev. Este último, segundo o Kyiv Independent, vai assumir um cargo no Gabinete Presidencial após a saída de Kyrylo Tymoshenko.

susana.f.salvador@dn.pt

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