Voltou o marialvismo esquerdista

Publicado a
Atualizado a

Chumbada a proposta de Orçamento do Estado para 2022, e assumida a opção de convocar eleições legislativas antecipadas, preveem-se três cenários de governação como mais plausíveis para o início de 2022: um governo PS novamente apoiado por PCP, Bloco de Esquerda e/ou eventualmente pelo PAN; um governo PSD ou PSD-CDS, eventualmente com apoio parlamentar adicional do Chega e da Iniciativa Liberal; ou um governo de bloco central, assumido por PS e PSD.

Qualquer maioria absoluta parece ser um objetivo muito difícil de alcançar, desde logo para o PS, com o desgaste natural de seis anos de governação e assumida a continuidade da pulverização adicional do eleitorado das últimas duas legislaturas face ao parlamento tradicional provindo do pós-25 de Abril. E, aqui, o PSD, que não tem entusiasmado nas últimas eleições, confronta-se também com a secessão do seu eleitorado mais natural, desde logo por entre Chega e Iniciativa Liberal.

É certo que pode também ocorrer uma concentração de votos ao centro e, nesse caso, PS e PSD serão beneficiados, nos seus resultados e nas suas margens de negociação, caso estas se apliquem. Em todo o caso, cada vez mais o panorama parlamentar em Portugal se orienta para aquela que é a realidade partidária europeia: fragmentação dos projetos políticos representados e esforços reforçados de negociação e concertação para gerar soluções de governo, alternados entre ponderações adicionais e casuísticas à direita, à esquerda ou envolvendo representação que já não se identifica nessa bipartição.

Este é um cenário que penaliza a ideologia em detrimento da decisão concreta e conjuntural e da capacidade de assumir um governo, com limites de atuação sempre em processo de ajustamento, e que valoriza a negociação e o taticismo.

O seu reverso é a incerteza que pode causar quanto à previsibilidade da decisão pública.

E, neste momento, provavelmente há um eleitorado mais disponível para valorizar essa previsibilidade. Num contexto de recuperação económica em curso, num cenário ainda de incerteza pandémica, com disponibilidade financeira de investimento público para o curto prazo e desemprego reduzido, quem dos eleitores quererá assumir o risco de vir a ter o Chega, albergue de desvalidos de um certo CDS e roda excêntrica dos delatores pios do Estado Novo, como fiel da governação do PSD? E que PSD será o de 2022 - o PSD de centro, uma cozinha sempre conveniente e ajustável de interesses privados e públicos, ou um PSD manifestamente à direita, alimentado a contragosto pelo Estado e pelos seus recursos, mas dele sempre desdenhando e apoucando?

Neste momento parece claro que o fim do concerto entre PS e os partidos à sua esquerda se deu basicamente fruto de uma vontade exagerada do PCP e do Bloco de tornar a aprovação de um orçamento anual num exercício de marialvismo esquerdista, em torno de calendários de política laboral e de segurança social. A sua expectativa racional só pode ser, portanto, a de reforço da sua posição negocial junto do PS, após as eleições. Mas tal é francamente incerto... Tal como em 2011. Só que neste momento, num jogo parlamentar em que a direita tem mais dois peões, método de Hondt oblige. E isso pode fazer a diferença, deixando a governação a um bando de corsários da democracia e do Estado social de direito. Se um dia a governação depender de André Ventura, é certo que tal se deve, em primeira linha, ao PSD de Passos Coelho, à CMTV e à normalização que produziram junto dos eleitores - mas será também bom lembrar o papel do Bloco de Esquerda e do PCP. Sempre na defesa "do povo", naturalmente.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt