Olha, como isto está! No meu tempo estava tudo cultivado. Deste lado eram os rapazes; do outro as raparigas; à frente o refeitório. Como isto mudou!", não para de exclamar António Silva , 60 anos. O taxista espanta-se com o que vai encontrando no Centro Educativo Navarro de Paiva, para onde foi viver há 50 anos. Tinha 10. O campo envolvente, agora ao abandono, no seu tempo dava batatas, tomates, couves, alfaces e outros legumes. Restam as árvores de fruto, particularmente uma nespereira, bem carregada. Também não é um instituto como antigamente, que juntava crianças e jovens vítimas de maus-tratos e de negligência com os que cometiam crimes. Agora é uma "prisão" para menores de 16 anos..António caminha devagar como quem saboreia as recordações de infância. Gosta, aponta os edifícios. "Aqui eram as camaratas, ali tínhamos aulas." Pergunta o que é feito do sr. Abílio, mas também do sr. Custódio e do sr. Varela", os monitores de então..Os dois primeiros monitores morreram, Varela ainda lá mora, com a família, tem 88 anos. É ele quem entra pelo portão com um saco numa mão e a bengala na outra. "Lembra-se de mim?", pergunta António..Os monitores do tempo de António viviam nas instalações dos centros de acolhimento, tinham a chamada "casa de função". José Varela tem um apartamento na propriedade, ali criou a família, que já inclui bisnetos. E recorda: "Foram tantos que por aqui passaram, jovens que não tinham quem os amparasse e aqui havia quem os amparasse.".Varela e António caminham par a par, o mais novo recorda as traquinices, o mais velho quer saber se tudo correu bem. "Correu, estou bem, sou taxista", conta António Silva..Cresceu e "fez-se homem" em instituições da Segurança Social, hoje considera que foi muito positivo para a sua formação. Mas também que depende muito da personalidade de cada um, sublinha. E, quanto a isso, Vítor Fróis, 32 anos, não podia estar mais de acordo, ele que foi para a Casa Pia com 5 anos, num período muito mais recente. E o que é que acontece a estes jovens depois de deixarem a instituição? Muitos deixam-se levar pelos vícios, entram no mundo do crime, e há quem faça a diferença, como o António e o Vítor.."Viver e crescer numa instituição não é fácil, aprendemos regras, como nos devemos comportar, mas também lidamos com pessoas muito diferentes, com muitos vícios", diz António. Acrescenta o Vítor: "Uma instituição é sempre muito complexa, educar tantos jovens não é fácil, e muito bom trabalho fazem eles, mas tem muito a ver com o carácter e a personalidade de cada um. Acho que, nesse sentido, sou um privilegiado. Sempre tive uma vida normal, muito linear, fui bem acompanhado.".Seis irmãos, ele escapou à má sorte.A família de António Silva é um exemplo das dificuldades de inserção destes jovens. Ele nasceu em Vila Nova de Ourém, fruto da união entre "uma rapariga de boas famílias" e um agricultor. A mãe engravidou e teve de sair de casa dos pais, acabando por entregar a criança ao padeiro da terra. Conheceu depois o pai de António, "lá fizeram a vida deles". Nasceram seis crianças..O pai era alcoólico. "Mal trabalhava e os filhos foram criados com esmolas, quando vinha a casa era só para bater na mulher e nos filhos. Foi por causa disso que eu e o meu irmão começámos a roubar, a assaltar, mas era para comer. Íamos roubar fruta e legumes às quintas, chegámos a assaltar um talho. Claro que começou a chegar à polícia, aos tribunais, e com 9 anos fui para uma instituição em Coimbra.".Nunca mais viveu com a família, nem sabe ao certo quantos filhos teve a mãe. Treze? Ele conheceu cinco irmãos, que também cresceram em instituições mas com destinos muito diferentes. António foi o que se saiu melhor, não para de justificar: "Tive juízo para não ir por maus caminhos.".A mãe foi presa - "parece que matou um homem", conta António, já estava ele no Instituto Navarro de Paiva para se juntar ao irmão dois anos mais velho. "A minha mãe meteu-se na bebida, de tal maneira que ficou pior do que o meu pai." Nos últimos anos de vida foi morar na mesma zona do filho, parando em tabernas de Marvila. Conta António que a quis ajudar, não conseguiu. Morreu há 20 anos, tinha 69. O pai também foi parar à prisão, onde morreu..Um outro irmão, "entregue à Casa do Gaiato", no norte, nem o conhece. O que viveu no Navarro de Paiva, o Manuel, também apanhou o vício da bebida. Morreu há sete anos. E já tinha falecido outro irmão. Restam as duas irmãs, a "Lúcia, que andou perdida". E Luísa que tinha uma boa vida e "se perdeu". Morava no bairro das Amendoeiras, em Marvila, com o marido e três filhas, para onde António foi viver depois do lar da Segurança Social e vive ainda hoje. Mas a Luísa acabou por deixar o marido e as três crianças entregues a António. Tinha 18 anos e não tinha condições para as criar. As meninas acabaram por ser adotadas. As irmãs reconstruíram mais tarde as famílias. Recuperaram. Vivem hoje na Grande Lisboa com as famílias, filhos e netos..Ele andou sempre pelo trilho, sabia que era a única forma de conseguir algo que nunca tivera: uma família. "Cada um segue o caminho que quer. A única coisa em que eu pensava era ter uma família, mas para isso não pedia errar", justifica..Quando entrou no Navarro de Paiva, este chamava-se o Instituto Médico Pedagógico. António entrou na lista das crianças institucionalizadas no tempo em que "existiam instituições de reeducação, que se dedicavam quer a jovens que tinham cometido crimes quer a jovens que careciam de uma intervenção e de proteção. O Navarro de Paiva era o único que tinha uma valência psicológica", explica João Coias, diretor do Serviço de Justiça Juvenil. Estes centros misturavam vítimas com agressores, num sistema designado Organização Tutelar de Menores..Com a Lei de Proteção de Crianças e Jovens (lei nº 147/99), passou a haver respostas diferentes. Os centros de âmbito de promoção e proteção passaram para a responsabilidade da Segurança Social, através das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em risco. Os delinquentes até aos 15 anos, inclusive, são considerados inimputáveis e objeto de medidas tutelares e educativas, da responsabilidade do Ministério da Justiça (a lei portuguesa só responsabiliza a partir dos 16 anos). Residem em centros educativos, do qual o Navarro de Paiva é um dos seis no país, que totalizam 144 residentes..A legislação foi revista pela Lei n.º 4/2015, que entre as principais alterações abriu a possibilidade de os jovens cumprirem o internamento em meio natural de vida ou eventualmente num apartamento de autonomia. Há cerca de 2200 com estas medidas..O Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, é um dos dois mistos no país. Tem 24 rapazes e 12 raparigas que residem, agora, no edifício destinado às raparigas no tempo de António Silva. É uma espécie de prisão, com gradeamento e porta trancada, entrada nos quartos às 21.30, hora a que são fechados por fora para só saírem às as 07.30.."Passo aqui tantas vezes que nunca pensei que isto agora fosse uma prisão", comenta António para o diretor do centro, Rogério Canhões. Conta-lhe as boas recordações..Gostava de carpintaria e passou a ir todas as tardes para uma trabalhar. Ganhava 50 cêntimos de cada vez. O dinheiro era guardado pelo monitor Abílio, mais tarde deu para comprar um relógio Sandro, marca que tanto cobiçava..É a primeira vez que percorre a alameda que une o portão da Navarro de Paiva ao primeiro edifício, agora a parte administrativa. Saiu tinha 16 anos. "Fui para um lar na Luciano Cordeiro que, agora, é uma pensão. Moravam numa cave nove rapazes, nem todos vindos da Navarro de Paiva. Tínhamos um monitor e dormia lá também um casal que tomava conta de nós." Havia estudantes universitários. António travou uma boa amizade com um, de Faro, que estudava contabilidade e que ele chegou a ajudar. "Gostava muito de o encontrar mas não sei como.".António era dos que "tinham juízo". "Não fumava, não bebia, era bem-comportado. "Conheci lá cocaína, liamba, haxixe e, como eu não consumia, davam-me a guardar." O único vício era a dança. Ainda hoje quando a mulher o acompanha vão aos Alunos de Apolo ou aos Bombeiros Voluntários da Ajuda..Conheceu a mulher, Palmira, tinha ele 19 e ela 16, e um filho de ano e meio. Moravam no mesmo bairro. Estão casados há 38 anos. "Vivia no 7.º andar e vinha à janela, um dia veio à rua e eu disse que queria falar." Estava lançada a semente para construir a família que tanto desejava desde miúdo. São pais do Nuno, de 38 anos, da Iolanda, 29, e da Beatriz, de 16 , têm três netos. "Consegui ter a minha família e tenho orgulho. Tive cabeça para não me meter por caminhos por onde não devia, hoje olho para os outros e vejo o caminho que levaram.".Depois de sair do lar trabalhou dez anos numa loja de eletrodomésticos, depois numa carpintaria/serração, até ir como cooperante para a Guiné, onde viveu cinco anos e tirou a carta de condução "de pesados para amadores". Mais tarde substituiu-a pela de pesados e conduziu camiões durante 24 anos. A empresa entrou num processo de insolvência há sete anos e ele dedicou-se à condução de táxis..Até conquistar uma profissão.Todos os anos, cerca de três mil jovens deixam as instituições de acolhimento. A grande maioria com mais de 15 anos. A idade-limite para proteção legal são os 18 anos, podendo ir até aos 21 ou até aos 25, se estiverem a estudar ou a trabalhar, a pedido do próprio..Vítor Fróis, 32 anos, entrou nas instalações da Casa Pia em 1992. Tinha cinco anos. Eram cinco irmãos, ele era o mais novo. Com ele uma irmã, a Neuza com 8 anos.."Tinha 5 anos e os outros 11/12 anos, era uma grande diferença de idades, mas talvez por ser o mais novinho sempre fui muito acarinhado", recorda Vítor, numa conversa feita na Residência JJ Aguiar, na Ajuda. Este é um apartamento de autonomia onde residiu até aos 20. São usados para quem tem mais de 16 anos e prova ter a maturidade para assumir mais responsabilidades..Os pais morreram cedo, vítimas de anos de toxicodependência. As crianças ficaram com a avó paterna, que tinha poucas condições para os criar. Vítor não sabe a razão pela qual não foi adotado, também nunca se questionou sobre isso. "Nem era uma questão para mim, a verdade é que nunca tive pais, portanto, não sei o que é isso", argumenta. Sublinha que tem esta questão resolvida, não percebendo porque é que os outros consideram isso uma falha. E crescer numa instituição, com muitas outras crianças e funcionários, até pode ser uma vantagem. "O facto de lidarmos com tantas pessoas ao mesmo tempo dá-nos uma certa estrutura para nos integrarmos na sociedade e conseguirmos lidar com muita coisa.".E há uma pessoa que considera essencial em todo o seu processo de crescimento e com quem mantém contactos, a educadora Maria Helena Domingos. Além da avó, mãe do pai, entretanto falecida.Vítor Fróis viveu entre os 18 e os 20 num apartamento de autonomia. Tirou um curso técnico-profissional e terminou o secundário como técnico de ótica ocular, a profissão que lhe garante uma remuneração "acima da média". Deixou a Casa Pia quando "já estava no mercado de trabalho. Podia ter a minha independência e saí"..Alugou um apartamento com outro colega da mesma residência, depois o amigo seguiu a vida dele e Vítor foi viver com a namorada. Argumenta, quando lhe perguntamos quem é a sua família? "Honestamente, são várias, dou-me com muita gente: amigos, ex-namoradas, família de ex-namorada."