Pedro tem duas lágrimas tatuadas na face direita. Uma representa a morte do pai, a outra, coisas mal resolvidas do passado. O pai morreu-lhe em maio de 2017 e é a partir desse mês e desse ano que conta a sua história. Como se, com 30 anos de vida, nada mais se tivesse passado para trás. "A 3 de maio a 2017, a minha rapariga traiu-me, soube de mais algumas traições que antes nem queria ver, mas soube; a 4 de maio o meu pai morreu; no dia 5 chateei-me com a minha mãe e saí de casa. Aqueles três dias foram pesadinhos. Depois uma coisa leva à outra..."."Foi complicado saber tudo de choque. Quando uma pessoa leva uma pancadita... pumba, depois pumba... vai aceitando bem, quando se leva com tudo ao mesmo tempo, meu Deus!".A sucessão de acontecimentos naquele mês de maio levou-o a viver na rua, ao consumo desenfreado de drogas, aos assaltos e depois à cadeia. Há um ano e quatro meses que cumpre uma pena de seis anos no Estabelecimento Prisional de Custoias, mas ainda está à espera do cúmulo jurídico que junte esta sentença e uma segunda em que foram pedidos 14 anos..A notícia que dói sempre.E foi na cadeia que soube que terá de cumprir outra pena: é portador de VIH e hepatite C. Já não é uma sentença de morte, mas ainda assim não foi fácil ouvi-lo da boca dos médicos. Era outra vez maio, mas de 2019, aquele mês fatídico na sua vida. Pedro soube que tem VIH no mesmo dia em que soube que a menina que viu nascer e à qual deu o seu nome, afinal, não é sua filha biológica. "Tudo acontece em maio..."."Disseram-me 'você é portador de VIH e hepatite C', à papo-seco. Saí a chorar, mas fui logo trabalhar, nem me quis isolar. Não pedi apoio psicológico, não dá para desistir. Fui lá uma vez... Não me acho muito forte, mas fico a pensar para mim 'como vou resolver, o que é que eu vou fazer?'. Depois tento esquecer um bocado, vamos andado e vamos ver, não vale a pena estar ali 'coitadinho de mim, coitadinho de mim'"..Pedro é um dos cerca de 50 reclusos de Custoias que sofre de VIH. Com hepatite C são mais de uma centena, todos tratados ou em vias de tratamento, dando cumprimento ao protocolo realizado entre a prisão e o Hospital de São João. Foi o primeiro protocolo-piloto antes da lei que define que os reclusos com doenças infetocontagiosas já não precisam de se deslocar aos hospitais (são antes os médicos que vão às prisões) e que prevê que neste ano o tratamento de todos os presos com hepatite C. Uma medida que já mereceu elogios da Organização Mundial da Saúde (OMS)..A nova legislação levou à assinatura de protocolos entre a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais com 26 hospitais. Há ainda três instituições sem protocolo - Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro que deveria servir o Estabelecimento Prisional de Vila Real, Chaves, Lamego; o Centro Hospitalar do Baixo Vouga (Aveiro) e a Unidade Local de Saúde de Matosinhos (Santa Cruz do Bispo Masculino)..Segundo o Ministério da Justiça, estas unidades dizem que ainda não têm recursos para se deslocar às cadeias - os reclusos dos EP abrangidos por estes hospitais de referência estão a ser seguidos nas consultas externas..Receber o diagnóstico de que se é portador de VIH - mesmo que não tenha a carga social do passado e seja encarada como uma doença crónica ainda sem cura - é difícil, muito difícil. "Se calhar, lá fora não me tratavam tão depressa, mas não gostei muito do médico que me disse. Disse-me: 'Da hepatite C vai-se curar, do VIH vamos tratá-lo mas ainda não há cura." Caramba, às vezes é melhor contornar um bocadinho!"."Não deixa de ser um estigma - afirma Rui Morgado, coordenador dos serviços de saúde de Custoias -, e no início pode ser complicado, mas temos psicólogos e psiquiatras para lidar, temos aqui todo o apoio no pós-teste. Há uns anos, quando eu dizia a um indivíduo que ele era VIH estava-lhe a dar uma sentença. Hoje, com o tratamento antirretroviral (e no caso da hepatite C os novos tratamentos que são praticamente 100% eficazes), não é uma sentença. E as pessoas já têm noção disso.".Pedro não sabe como contraiu a doença. "Pode ter sido das duas formas: penso eu que fosse por relações sexuais, nunca partilhei agulha nenhuma nem sequer a usei duas vezes, mesmo a viver mal, na rua, fosse como fosse, até porque são gratuitas. Hoje tem-se informação, mas não ponho de parte, pode ter acontecido. Mas penso que foi a minha mulher, porque fiquei a saber que ela me traiu várias vezes.".Depois do choque, vieram as dúvidas. "Como é que vou ter filhos? Mas os médicos dizem que a carga vírica já está indetetável e posso ser pai. A médica disse-me 'você tem é de se proteger a si dos outros. Não está livre, não há cura, mas não precisa de usar preservativos para ter uma relação com uma companheira que conheça. Não passa, a não ser que interrompa a medicação'.".É este prognóstico que lhe dá esperança para uma nova vida em liberdade. Pediu para sair dos pavilhões e ser integrado na Unidade Livre de Drogas (ULD), onde só se pode entrar como voluntário e completamente limpo, sem consumos. O que é difícil de acontecer a quem está nas celas, onde as drogas, apesar de ser uma prisão, entram e são consumidas com facilidade. A ULD funciona como uma casa dentro do recinto do estabelecimento prisional - tem quartos com duas camas e casa de banho, sala com sofás e televisão, PlayStation, máquina de café, lavandaria, videoteca... Mas neste espaço, onde estão 14 reclusos, tudo se conquista, as regras são muito apertadas.."Tinha uma empresa e fumei-a!".Até ao dia que recebeu o diagnóstico, Pedro nunca sentiu que estava mal: "Tomava e tomo banho de água fria, sou da terra do frio, nunca fiquei doente." Agora livre de drogas, sofreu um bocado. Pensou então que era preciso fazer alguma coisa por si mesmo. "Quis tratar-me, aquilo não é vida.".Antes de maio de 2017 - aquele mês, naquele ano - Pedro estava na empresa de construção civil do pai. Trabalhava muito, mas ganhava bem - 1500, 2000 ou 2500 por mês, conforme o que tinham para fazer. Mas antes já tinha tido problemas com a justiça e esteve preso preventivamente em 2011 por tráfico de droga..Hoje diz que se arrepende. "Culpo-me das decisões mal tomadas, mas naquele momento achava que era uma saída, um escape. Roubava para consumir. Tive bons trabalhos, mas fumei tudo. Tinha uma empresa e fumei-a!".Depois da morte do pai, da traição da mulher e da zanga com a mãe gastava tudo o que tivesse e conseguisse em droga, heroína e cocaína. "Tinha dias de gastar três, quatro, cinco mil euros em droga, mas também tinha dias de gastar 40." Pedro ia a Zamora comprar para consumir e para vender..A deambular pelas ruas, sem trabalho, só mesmo a roubar conseguia dinheiro para os vícios. E fazia assaltos - "são muitos, são pesadinhos", até que chegou à cadeia.."Chego lá fora com os sacos na mão e vou para onde?".O lema de Pedro é focar-se no presente - "se ficarmos presos ao passado não vamos conseguir" -, mas não nega que pensa no futuro. Só que não o vê risonho. "Não tenho apoio da minha mãe, não tenho rapariga, os amigos que tinha eram todos das drogas, os que eram amigos afastaram-se. Avisaram-me uma, duas, três, cinco, dez vezes, até que acabou.".É com mágoa que conta que não tem uma única visita e que decidiu naquele mesmo dia nunca mais falar ao telefone com a mãe, porque se sente enganado. Não queria que ela lhe levasse dinheiro, apenas sentir-se acarinhado. "Não é fácil", repete.."Começar do zero não é fácil se não tiver apoio nenhum lá fora. Vamos lá a ver, uma pessoa anda muitos anos a consumir, vai para um EP, trata-se, tenho na cabeça que não quero consumir, não sei se o vou conseguir fazer, mas vou dar o meu melhor. Mas chego lá fora com os sacos na mão e vou para onde? Ali está logo uma quebra muito grande! Vou para onde? Vou fazer o quê, vou viver de quê? Vou andar a comer aí em associações - que não é problema nenhum, já o fiz, não tenho vergonha disso..."."Quando se está perdido não se pensa que se é pai".Apoio familiar nunca faltou a Rui, 37 anos. A mulher e a mãe nunca lhe viraram as costas. Quando descambou e caiu na rua só não as procurava por vergonha, para não ver o sofrimento delas - "abusei muitas vezes da confiança, do amor que têm por mim". De vez em quando ia à casa dos pais tomar banho, dormir dias seguidos, mas voltava à rua..Rui e Pedro têm os mesmos problemas: estão infetados com VIH e hepatite C, ambos estão detidos em Custoias condenados por furtos que praticavam para conseguir dinheiro para o consumo de heroína e cocaína. Mas separa-os algo muito importante: a ajuda e o carinho da família que Rui continua a ter e que Pedro perdeu. Rui tem uma filha de 8 anos, Pedro pensava que também era pai de uma menina até ao dia em que recebeu na prisão um teste de paternidade que não pediu com uma sentença: a criança é filha biológica de outro homem..Foi o acumular de casos judiciais que levou Rui a descambar. "Há quatro anos, começaram a aparecer muitos processos e fui-me abaixo, comecei a entrar em paranoias. Depois as companhias, o desgaste no trabalho..." Trabalhava na cozinha de um restaurante até virar as costas à vida que levava e sair para a rua..Está detido há ano e meio, quase dois anos, se contarmos com o tempo em que esteve com pulseira eletrónica. Foi condenado uma primeira vez a 3,9 anos e uma segunda a 4,9 anos e está a aguardar o cúmulo jurídico por furtos em casas, na rua, de bens pessoais, de carros....Precisava de muito dinheiro. Os valores do que consumia são absurdos - uma média de 1500 euros diários em cocaína e heroína. Desde os 16 anos que consumia. Na rua era o vício que comandava. "Só se pensa na droga. Quando se está perdido não se pensa que se é pai.".Tinha saudades da filha, mas só as sentia quando estava mesmo sem nada, sem dinheiro, quando lhe começava a falhar a droga e lhe caía a ficha. De vez em quando ligava para a mulher, mas não falava com a filha - ainda hoje a menina não sabe que está detido, embora vá visitá-lo de vez em quando. "Procurei ajuda, tratamentos, mas já não tinha força nem vontade.".Foi nos tempos de rua - "quando tinha uma fezada ia dormir a um hotel ou a uma pensão" - que descobriu ser portador de VIH, da hepatite já tinha conhecimento e estava à espera do tratamento. E descobriu por causa de uma queda: durante um assalto saltou de um segundo andar e partiu o fémur. Foi hospitalizado e teve de ser operado..Não há um padrão. Tal como Rui, muitos reclusos já sabem que são portadores de doenças infetocontagiosas, mas como Pedro há quem o descubra na prisão. Outros, diz o médico Rui Morgado, têm noção de que poderiam ter as doenças devido aos comportamentos de risco. Mas sublinha: "Muitas vezes, o primeiro contacto destes homens com os serviços de saúde é quando são presos.".Voltemos a Rui. "Saber que tinha VIH foi uma facada, caiu-me o mundo em cima. Tinha cuidado com as seringas, mas depois de cinco e seis dias de direta perde-se o controlo da situação. Estamos com outras pessoas, "prepara tu, preparo eu"... Se quer que lhe diga, não sei como é que apanhei. Basta fechar os olhos um bocado, adormecer na parada...".Rui garante que os médicos tiveram muito cuidado a dizer-lhe que era seropositivo e começou a fazer os tratamentos no Hospital de Santo António dois meses antes de ser detido. Nem este diagnóstico lhe afastou a mulher, sempre presente, ora a pagar tratamentos ora a visitá-lo na cadeia - já têm direito a visitas íntimas. Agora, Rui dá valor ao que tem e diz que "só tem medo de a perder"..Depois da cirurgia à perna, esteve três meses de cama. "Ao quarto mês já estava a pensar o que ia ser da minha vida e acabei por ir outra vez para a rua, com a perna engessada, cheia de pontos, de muletas... Já não tinha amor-próprio, amor pela vida. Coragem para me matar também não tinha, mas sempre que podia metia grandes quantidades para ver se conseguia.".Entre o regresso à rua, a detenção e a pulseira eletrónica que tirou três vezes, a família não só continuava a apoiá-lo e até a encobri-lo. Quando foi preso em Custoias ainda caiu mais fundo, pôs a mãe em risco ao pedir-lhe para introduzir droga na cadeia. "Agora tenho noção do perigo que eu corri, que a minha mãe correu... a minha mulher nem sonha que ela fazia isto.".Rui diz que a sua vida dava um filme. "Foi tanta coisa que eu já vivi, e o mal que já fiz a muita gente. Não sou um santo. Tenho o meu lado bom e o meu lado mau, mas o lado mau só vem quando consumo.".Sobre o tratamento do VIH, diz que já tinha afinidade com a médica do Santo António, mas também reconhece que é melhor os médicos deslocarem-se à cadeia, resolve a questão de serem precisos meses para se conseguir uma consulta nos hospitais. Elogia o processo, a medicação a tempo e horas, mas tem palavras críticas no que diz respeito ao apoio psicológico.."É mais dar medicação para o pessoal andar a fechar o olho. Se for falar com o enfermeiro Jorge ele ouve-me. De resto, dizemos sinto isto, sinto aquilo e dão medicação para andarmos a dormir o dia todo. Cheguei ao ponto de dizer que estava a sentir-me mal com a medicação, que as palavras já não me saiam pela boca. Sabe o que fizeram? Aumentaram-me a dose! Chama a isto psicólogo ou psiquiatra? São pessoas desumanas, como os guardas. Somos animais para eles. Eu não fiz mal a ninguém, peguei num telemóvel, numa carteira, mas nunca usei violência contra ninguém.".Rui também se voluntariou para ir para a Unidade Livre de Drogas. Porque quer mudar de vida, ajudar a mulher e criar a filha. E quer aproveitar o tempo na prisão para voltar a estudar - tem o 7.º ano incompleto - talvez tirar um curso de padeiro para abrir um negócio. "Vou fazer o que não fiz durante o tempo que estive aqui fechado. E vou ajudar as pessoas que me apoiaram até agora. Quero levar a minha filha à escola, à piscina, a todo o lado que ela quiser.".Já Pedro gostava de ser polícia, mas isso sabe que lhe está vedado e pensa tirar um curso de psicologia forense, porque já viveu o outro lado do crime..Os ganhos da ida dos médicos à prisão.Para o enfermeiro Jorge Tavares, gestor dos serviços de saúde de Custoias, "a vantagem dos médicos se deslocarem às cadeias é sobretudo humana. Ninguém gosta de estar algemado na sala de espera do hospital. Os reclusos não têm prioridade e ficam ali expostos." Há também as vantagens materiais, diz, porque levar um preso a uma consulta fora da cadeia exige uma logística monstruosa - 12 guardas para seis reclusos, carros, motoristas, equipa de vigilância..Esta parceria entre a DGRSP e o Ministério da Saúde veio garantir, segundo o Ministério da Justiça, que toda a população reclusa fosse diagnosticada e acompanhada por especialistas, otimizando-se assim o tempo de reclusão para fazer o tratamento. E o acesso a meios complementares de diagnóstico é mais rápido e há uma maior adesão ao tratamento e ao acompanhamento dos reclusos doentes, com ganhos em saúde para o próprio, para o sistema e para a comunidade. Reduzem-se ainda as faltas às consultas de especialidade..Do total de quase 13 mil presos, em julho de 2019 estavam diagnosticados 1122 com hepatite C e 441 com VIH. A fazer tratamento para a hepatite encontravam 96% dos casos e 82% para o VIH.