Domingos Oliveira encenou a própria vida e a vida dos outros e, sabe-se agora, fechou ele mesmo a cortina.Creio que, em Portugal, não conhecem um cineasta, dramaturgo, roteirista e ator brasileiro chamado Domingos Oliveira, falecido na semana passada, no Rio, aos 82 anos. Era um extraordinário artista. Revelou-se em 1966 com uma deliciosa comédia de cinema, Todas as Mulheres do Mundo. Numa época em que o cinema brasileiro só queria saber de filmes de cangaceiros trocando tiros entre catos e caveiras de vacas, Domingos surpreendeu com um filme tão urbano, carioca e moderno - e moderno até hoje - como Todas as Mulheres do Mundo, que, de quebra, ainda nos deu Leila Diniz..Conheci-o pouco depois deste filme. Um amigo meu, morador de Copacabana, me disse que seu vizinho de apartamento, chamado Domingos ou algo assim, não o deixava dormir, porque dava uma festa todas as noites. Mas, então, descobriu que não eram festas, e sim peças que o vizinho e os rapazes e moças seus amigos representavam no apartamento. E não eram peças comuns, de Molière, Ibsen ou Bernard Shaw, mas as que eles iam improvisando e criando à medida que chegavam, ficavam ou iam embora. Sugeri ao meu amigo passar a dormir de dia e, à noite, incorporar-se às peças de seu vizinho e tornar-se um de seus personagens..Domingos Oliveira foi só nominalmente autor de 19 filmes de cinema e 12 de televisão e de 20 peças de teatro nos últimos 50 anos. Isto foi apenas o que ele produziu publicamente. Temendo estar aqui cometendo um acacianismo, o principal palco de Domingos era a própria vida. Não apenas a sua vida, mas a vida em geral e até a vida dos outros. Domingos vivia como se numa peça que fosse ao palco todos os dias e durasse o dia todo, desde o momento em que acordava. E não só ele, mas todas as pessoas à sua volta - quando se davam conta, elas estavam vivendo um sonho de Domingos, um filme ou peça que se passava na sua cabeça e que ele trazia para a vida real. Era impossível estar na sua presença, numa sala ou em qualquer lugar, sem se deslumbrar com sua inteligência, sensibilidade e capacidade de, de repente, encenar uma situação que transformava aquele espaço num palco..Por falta de dinheiro para grandes produções, seus filmes, de muitos anos para cá, como Separações (2002), Feminices (2004) ou BR 716 (2016), tinham-se reduzido a diálogos entre pessoas inteligentes, sobre assuntos que Domingos dominava como ninguém: a arte, o amor e a vida. Sexo, também. O resto, para ele, era conversa fiada. E, se havia uma fronteira entre as falas de seus personagens e as que ele dizia no dia-a-dia e nas suas entrevistas, era uma fronteira invisível. Eis algumas:."A política é importante, mas não é a coisa mais importante do mundo. O amor é mais importante. O amor é a vocação humana, o eixo de tudo, o efeito colateral do sexo.".[Quando lhe perguntavam quantas vezes foi casado:] "Cinco, mas gostaria de ter casado dez. Porque a mulher não é uma vivência, é uma cultura. Todas as vezes que casei achei que fosse para sempre."."Quando você é jovem, você não sente o corpo - você é a sua alma. Quando fica velho, começa a sentir o corpo e isso faz que tenha menos tempo para pensar na alma. Você envelhece só por fora, e isso é cruel, absurdo, louco."."Em lugar nenhum do universo está escrito que a vida tem sentido. Ela não tem. E não tem nenhuma obrigação de ter. Mas enfrentar de cara limpa uma barbaridade dessas não é para qualquer um."."Eu sou contra a morte. Acho uma injustiça, uma sacanagem, uma baixaria.".Domingos morreu de complicações do Parkinson, doença contra a qual lutava havia 30 anos. Lutava é maneira de dizer. Ele trabalhava, amava e vivia como se fosse o homem mais saudável do mundo. E só agora se descobriu que, quando recebeu o diagnóstico, em 1998, e não sabendo quanto tempo teria de vida, escreveu duas cartas - uma para sua filha, Maria Mariana, então adolescente, e outra para sua mulher, a atriz Priscilla Rozenbaum, de quem nunca se separaria. Deixou as cartas com um amigo, com instruções para que só fossem entregues às destinatárias no dia seguinte à sua morte. Foi o que aconteceu. No domingo passado, dia do enterro de Domingos, elas as receberam..Eram suas instruções finais, pré-póstumas, tipicamente Domingos, para as duas pessoas que ele mais amara --- como se a grande peça que encenara na vida tivesse, agora, de dar lugar a outra. Para isso, era preciso que elas o esquecessem o mais depressa possível e se atirassem à vida como tinham feito ao seu lado.."É chegada a hora de você viver sem mim", ele escreveu à mulher, "procurando a mesma glória e o mesmo esplendor. Um outro amor? Sim, porque não? Ame outro, logo que puder. Você não me esquecerá nem um pouco por causa disso. Ame. O amor é a saída, eu sei. (...) Quando, amanhã, minha lembrança vier ao seu pensamento, expulse-a com rigor, como se fosse uma indecência. De amanhã em diante, você começará a viver a maior das aventuras: a vida sem mim. Sei que vou fazer falta e que fui um tremendo animador de festas. Não faz mal, agora você anima a tua própria festa. (...)] Nunca acreditei, mas, se houver alguma vida depois, tenha a certeza, serei o teu anjo da guarda. (...) Ninguém foi tão feliz quanto eu. Teu eternamente, te cuida.".E fechou a cortina sobre si mesmo..Jornalista e escritor brasileiro, autor de O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).