Que impacto está a ter a pandemia nos rastreios feitos pela Liga Portuguesa contra o Cancro? Temos três tipos de rastreios para a liga: cancro da mama, colo do útero e colorretal. No caso da mama, norte, centro, Lisboa e vale do Tejo e Alentejo, é feito pela Liga, em articulação com as administrações regionais de saúde [ARS], e no Algarve com outra associação oncológica. Na Madeira e nos Açores é feito pelo governo regional. O que aconteceu foi que todas as regiões pararam a 13 de março e estivemos três meses parados. Neste momento a participação é de 80% a 85% do que era dantes, sendo que a taxa de participação era de 70%, das mulheres convocadas, em cem mulheres iam 70 e agora vão 56. Depois há variações regionais..E quantos casos de cancro detetam, normalmente? São detetados aproximadamente 2,5 cancros por cada mil mulheres rastreadas. Quer dizer que devido à paragem em todo o lado teremos 240 cancros que não foram diagnosticados por rastreio. No caso do norte (que parou mais três meses) serão menos 250..E no ano passado, 2019, qual foi o número global do rastreios ao cancro da mama? Foram 350 mil mamografias realizadas. Terão sido à volta de 875 cancros detetados. As mulheres que vão pela primeira vez têm aquilo a que nós chamamos de taxas de deteção de aproximadamente 4. Nas repetições andam à volta de 2. Porque repetindo aos dois anos só apanhamos aqueles que têm uma evolução de dois anos, no máximo..Porque o rastreio é feito de dois em dois anos. Exatamente, e para mulheres dos 50 aos 79 anos. E a única coisa em que nós dependemos dos centros de saúde é eles fornecerem-nos as listas. Ou seja, a nossa operacionalização do rastreio está muito pouco dependente dos centros de saúde..Mas no caso do cancro do colo do útero isso já não acontece. Nesse caso é feito especificamente nos centros de saúde. Ora, na medida em que estão muito assoberbados com os problemas de covid... praticamente os centros de saúde não retomaram..No país inteiro? A nossa dificuldade em falar do país inteiro é sempre grande, porque temos Lisboa e temos Vila de Rei ou Mogadouro, e são realidades totalmente diferentes. Mas os centros de saúde estão com extremas dificuldades em retomar as atividades ditas normais. Haverá alguns que conseguiram retomar, mas a maioria está assoberbada com o SARS-CoV-2, sem tempo para fazer estas atividades de medicina preventiva..Há ainda outro tipo de cancro cujo rastreio a liga tem vindo a fazer, o colorretal. Imagino que aconteça o mesmo... Ele está muito pouco desenvolvido a nível nacional. Muito poucas ARS estavam a fazer. O que quer dizer que a retoma foi muito pequena. Mas nesse caso temos ainda outro problema: uma deteção de sangue nas fezes obriga a uma colonoscopia; é um procedimento com anestesia, que demora pelo menos meia hora, e neste momento as colonoscopias estão dirigidas para aquelas pessoas que têm sintomatologia..Mas isso deixa de fora esse conjunto de pessoas que eram precisamente "apanhadas" no rastreio. Exatamente. Por isso é que a minha estimativa é a que falei na semana passada, dos mil cancros que ficaram por detetar..Correndo o risco de ser uma estimativa por defeito? Em termos de rastreio talvez não. Em termos de diagnóstico... talvez. Olhando para aqueles números da Ordem dos Médicos, por exemplo, que falam num milhão de consultas presenciais a menos; o IPO de Lisboa falava por estes dias em menos 20% de referenciação, Coimbra menos 5% e Porto falava em menos 40% (o que eu também acho demais); 16 milhões de exames complementares de diagnóstico a menos - e aí não sei qual é a percentagem de doenças oncológicas, obviamente. Mas é preciso dizer que os hospitais oncológicos até têm estado a trabalhar dentro da anormalidade. Agora, com tanta consulta presencial que não é feita, com tanto exame complementar de diagnóstico que não é feito, é evidente que a referenciação diminui. Há muitos diagnósticos precoces que não estão a ser feitos. Só estão a ser feitos os que apresentam sintomas..E como é que se consegue inverter a situação e retomar o curso do diagnóstico de cancro? Há aqui um problema muito grande de falta de organização, estruturação e operacionalização das coisas. Porque nós temos realidades diferentes em todo o país. Eu gosto muito do nosso Sistema Nacional de Saúde, mas o que nós temos já há muitos anos são aspetos de coesão social do nosso país, que é muito desigual. A questão é que temos os privados, os serviços de apoio social, e poderíamos utilizar toda essa complementaridade do sistema social e do sistema privado para colmatar as dificuldades óbvias e naturais do Serviço Nacional de Saúde. Aliás, as próprias autarquias, com a sua força e capacidade, poderiam perfeitamente complementar as normas e as instruções nacionais. Não estou a falar dos centros urbanos como Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro ou Viseu, mas nas zonas rurais seria perfeitamente possível arranjar uma estrutura de resposta que melhorasse estes problemas..Está a pensar num serviço que fosse coordenado pelas comunidades intermunicipais? Por exemplo. Nem é preciso que seja uma coisa de cada concelho. Mas teria certamente uma resposta muito mais adaptada àquilo que é a realidade local e regional. Porque o nosso país tem disparidades regionais brutais. Eu gosto de utilizar aquela imagem que muitas vezes nos aparece na net, dos chineses em engarrafamentos nas autoestradas. A imagem serve para explicar isto: se temos seis vias numa autoestrada, temos de ter seis cabinas de portagem. E aquilo que está a acontecer é que neste momento temos uma ou duas cabinas de portagem para seis vias. Portanto, está tudo a engarrafar. Podemos não conseguir abrir as seis mas temos de ter pelo menos quatro, se me faço entender..E como é que seria possível fazê-lo? Veja que nós temos Misericórdias em todo o país, por exemplo. Era uma questão de ver qual é a capacidade instalada que têm. Os hospitais têm muitas pessoas que não necessitam de cuidados diferenciados e poderiam passar para lá. Haveria mais camas, nos diferenciados, e os profissionais poderiam dedicar-se de outra maneira e a resposta melhorava a todos os níveis. Porque é evidente que nós não conseguimos normalizar a situação..Enquanto especialista em epidemiologia e saúde pública, como é que vê a evolução da pandemia? Confesso que neste momento não me admira isto. Na história das pandemias elas não são muito diferentes, são até muito semelhantes. Nós temos quatro fases numa pandemia: a primeira, que é de urgência e quase pânico, depois a retoma, a seguir a recuperação e por fim a normalização..Estamos em qual, neste momento? Na minha opinião estamos entre a segunda e a terceira. Entre a retoma e a recuperação. Mais para a terceira, até. Porque se conseguiu retomar muita coisa mas ainda não se conseguiu recuperar..Quer dizer que este aumento de casos a que estamos a assistir todos os dias não é para si uma admiração? O que eu dizia é relativo a uma primeira vaga. Esta é uma segunda vaga. E todas as pandemias passaram por uma segunda vaga com uma incidência muito maior. E como em qualquer pandemia, a primeira vaga é bastante mortal e a segunda vaga é menos. Ou seja, uma segunda vaga atinge muito menos os que estão em maior risco. E isso já se verificou: pessoas infetadas mais jovens, com menos problemas clínicos. Os que foram infetados numa primeira vaga e que tinham comorbilidades, muitos deles morreram. Por isso, apesar de ser agora muito mais gente infetada, a gravidade é menor. O problema tem estado sempre na capacidade do sistema de saúde, na capacidade de resposta. E o que vai acontecer muito provavelmente são miniconfinamentos, nas regiões mais afetadas, para evitar o colapso. Além disso hoje sabe-se muito mais da fisiopatologia e os tratamentos já são muito mais eficazes. E realmente vamos ter de esperar até chegar a vacina ou vacinas, com diferentes níveis de eficácia. Porque na imunidade de grupo nem vale a pena pensarmos..A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima em dois anos o tempo médio da pandemia. Qual é a sua opinião? Vamos demorar mais ou menos? Em janeiro e fevereiro já estavam a aparecer muitas pneumonias atípicas nos hospitais. Já aí estava qualquer coisa. Ora, eu acredito que no que respeita a vacina, talvez em janeiro tenhamos já resultados. Mas imagine o que é a produção e a lógica das farmacêuticas até chegar a Mogadouro. E depois é evidente que a eficácia não será de 100%, e poderemos ter algum problema de segurança. Em suma, acho a estimativa da OMSé ligeiramente exagerada. Entretanto temos toda a ciência a trabalhar na covid. Para mim, a estimativa é de ano e meio. Até porque temos neste momento fábricas na Europa preparadas para fazer a vacina. O que quer dizer que a OMS falava em dois anos, mas com todo este investimento se calhar já conseguimos reduzir para ano e meio..Nos últimos anos tinha sido grande o investimento no diagnóstico e tratamentos do cancro. Uma vez que integra o grupo de peritos europeus para o rastreio do cancro, qual é a perceção que tem? Como é que está Portugal comparativamente aos outros países? Aquilo que se passa neste momento em termos europeus é exatamente o que se passa em Portugal. De qualquer forma, o trabalho que tem sido feito em Milão, no JRC [Joint Research Centre] ao nível da Europa, tem continuado. Reunimos agora online, desde março. Em termos do cancro da mama - que é aquele que está mais adiantado - penso que talvez no princípio do próximo ano haverá novidades boas. Em termos do colo do útero não precisa de grandes coisas mais, está só dependente dos testes. É apenas um problema de implementação de técnicas, basicamente. Estava a começar-se agora um grupo de trabalho para cancro colorretal, e esse está parado..Porquê? Aí o problema é diferente: tem que ver com a falta de capacidade instalada de colonoscopias. E todos os países europeus têm tido muitas dificuldades. E enquanto agora estão dirigidos sobretudo para o diagnóstico sintomático e menos para o assintomático, tem de haver aqui um desvio cada vez maior de um tipo de colonoscopia para o outro. E isto obriga a muita organização. Na maior parte dos países, pelo menos no norte da Europa, as coisas estão a ser organizadas. No sul, como sabemos, os países têm menos capacidade de organização. Por isso espero que dentro de dois anos também aí possam aparecer resultados. E isso vai ser um passo fundamental de estruturação..Estamos sempre a falar de um tempo em que primeiro é preciso controlar a pandemia, em detrimento das outras áreas? Eu estou confiante porque a parte oncológica, em termos de doenças, é talvez a área mais bem organizada em termos de patologia..Quer dizer que, na sua opinião, é perfeitamente possível - havendo organização - responder aos rastreios e diagnósticos em simultâneo com a pandemia? Se não houver confinamento, em termos de mama vamos continuar sem problemas. Em termos de colorretal e útero só quando os centros de saúde se organizarem melhor, e tiverem menos necessidade de fazer o acompanhamento dos contactos, como fazem agora. Depois da pandemia estou convencido de que vamos retomar todo o esforço que estava a ser feito antes. Mas não é amanhã, nem daqui a um mês, nem na Páscoa.