Vistos gold. Conflito de interesses no empréstimo de Orlando Figueira a Carlos Alexandre
Carlos Alexandre, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), devia ter pedido escusa do processo vistos gold quando Orlando Figueira, o ex-procurador do DCIAP e advogado, se tornou defensor de um dos arguidos do caso, o angolano Eliseu Bumbam, acusado de corrupção. Isto porque o ex-procurador lhe tinha emprestado 10 mil euros, que o juiz ainda não tinha pago nessa altura.
Esta é a opinião de, pelo menos, dois juristas ouvidos pelo DN, a propósito dos factos revelados pelo jornal onlineECO, segundo os quais Carlos Alexandre, titular do processo na fase de inquérito e depois na instrução, tinha, nessa altura, 10 mil euros emprestados de Figueira. A informação do empréstimo já era conhecida - esta conexão temporal, não. O ex-procurador Orlando Figueira foi recentemente condenado por corrupção no processo Fizz. Carlos Alexandre não quis comentar essa coincidência - que pode ser confirmada nos documentos disponíveis no processo - alegando não ter em seu poder "os elementos necessários para tal".
Questionado sobre a situação, o Conselho Superior de Magistratura diz que "para já não há comentários", deixando assim em aberto uma possível reação. Nem a Associação Sindical dos Juízes Portugueses nem Leonel Gaspar, atual advogado de Eliseu Bumba, responderam ao pedido de comentário do DN.
O ECO consultou o processo e confirmou, documentalmente, que a 19 de fevereiro de 2016 Orlando Figueira se constitui como advogado de Bumba. E, seis dias depois, a 25 de fevereiro, o TCIC - por ordem de Carlos Alexandre - notificou Orlando Figueira, na qualidade de advogado de Eliseu Bumba, do despacho de abertura de instrução (iniciada em março desse ano) e da designação de data para o debate instrutório.
Estes factos demonstram conhecimento pelo tribunal do papel de Figueira no processo, sendo que Figueira saberia que Carlos Alexandre era o titular do inquérito, pois tal situação era publicamente conhecida. Contactado pelo DN para esclarecer a situação ou acrescentar alguma nova informação, Carlos Alexandre não respondeu.
"Admitindo que Carlos Alexandre tinha conhecimento que Orlando Figueira era advogado de um dos arguidos de um processo em que tinha intervenção direta, há claramente um conflito de interesses", sublinha Luís Filipe Carvalho, analista e comentador de questões judiciais.
Ressalvando que "não é certo que soubesse, pois tratando-se de um processo tão complexo com tantos arguidos (21) é natural que o juiz de instrução não conhecesse todos os advogados", o advogado criminal entende que "esta situação, a ser do seu conhecimento, implicaria um pedido de escusa da parte do juiz e a garantia de que esse empréstimo tinha sido restituído".
A mesma linha de entendimento tem Magalhães e Silva, advogado e membro do Conselho Superior do Ministério Público. "Devia ter sido deduzido um incidente de escusa, pelo próprio juiz ou por alguns dos arguidos. Havia claramente matéria que se pode enquadrar no que está previsto no Código de Processo Penal (CPP)", assinala este jurista.
De acordo com o CPP "a intervenção de um juiz num processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade". Essa escusa admite que "o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir".
O caso vistos gold- que tem como um dos principais arguidos o ex-ministro Miguel Macedo - teve a maior repercussão pública com a detenção, em novembro de 2014, de altos quadros do Estado, entre os quais o, na altura, diretor do SEF, Manuel Paulos. Carlos Alexandre validou toda a operação.
Orlando Figueira e Carlos Alexandre serão velhos amigo, de há mais de 30 anos, conforme o próprio juiz confirmou em tribunal quando foi ouvido no julgamento do caso Fizz, para esclarecer, precisamente, a transferência bancária no valor de 10 mil euros, feita em outubro de 2015. Em fevereiro de 2016, Orlando Figueira, que tinha saído do Ministério Público (MP) quatro anos antes, era advogado num escritório em Lisboa e foi nomeado para a defesa de Eliseu Bumba. Nessa altura ainda o empréstimo não tinha sido pago, assim como quando o TCIC - a mando do juiz de instrução - o notificou do debate instrutório.
No processo Fizz, Carlos Alexandre explicou que os 10 mil euros tinham sido para pagar obras na sua casa de Mação, e que tinham sido devolvidos a Orlando Figueira a 9 de março de 2016 - ou seja, quando o ex-procurador já era advogado do arguido há um mês.
O Ministério Público acusou Eliseu Bumba de um crime de corrupção ativa e, na instrução do processo, Carlos Alexandre pronunciou o angolano pelo mesmo crime. Em causa estão alegados subornos, relacionados com cooperação na área da Justiça, ao ex-presidente do Instituto de Registos e Notariado António Figueiredo, também arguido no processo. A sentença para este caso será conhecida nesta sexta-feira.