Vistos gold: a investigação de corrupção que atingiu o topo do Estado laranja

Será conhecida esta manhã sentença do processo Vistos Gold, uma das investigações de corrupção mais marcantes do mandato da ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal. Um ex-ministro e um ex-diretor de polícia estão no banco dos réus.
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Poucos se lembrarão do nome da operação policial que esteve na origem do que ficou conhecido como "caso dos VistosGold": Labirinto. Porque o que estava em causa, na tese do Ministério Público (MP), era uma alegada rede de corrupção, labiríntica, infiltrada ao mais alto nível do Estado, com várias ramificações de interesses, tendo nos "vistos dourados", no favorecimento em negócios e na escolha de dirigentes públicos à margem das regras, os seus principais tentáculos.

"Há uma rede que utiliza o aparelho de Estado para concretizar atos ilícitos, muitos na área da corrupção", afirmou Joana Marques Vidal, ex-procuradora-geral da República (PGR), na sua primeira entrevista após a detenção de José Sócrates, na Operação Marquês, e de três altos dirigentes do Estado na Operação Labirinto - resumindo bem a acusação deste último caso.

O Labirinto atingiu em cheio o então governo de direita, liderado por Pedro Passos Coelho, lançado suspeitas sobre altos quadros e um dos ministros mais populares da altura, Miguel Macedo - um dos arguidos que vai ouvir a sentença nesta sexta-feira. Juntamente com o ex-governante vão estar no banco dos réus o ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Manuel Palos - nomeado por Macedo, o ex-presidente do Instituto de Registos e Notariado (IRN), António Figueiredo, e a ex-secretária-geral do Ministério da Justiça Maria Antónia Anes -, ambos nomeados pela então ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz. Os outros arguidos são empresários portugueses, angolanos e chineses, que terão sido beneficiados por estes dirigentes e funcionários do IRN.

Nem as secretas escaparam ao Labirinto. Acidentalmente, alguns dos seus chefes máximos foram apanhados em vigilâncias do MP aos suspeitos - o ex-secretário-geral Júlio Pereira, num jantar privado com alguns dos arguidos; o ex-diretor do SIS numa operação para detetar escutas telefónicas no gabinete de outro arguido. Nenhum era alvo da investigação nem suspeito, mas esta proximidade serviu para ajudar a consolidar a tese do MP, no que diz respeito à dimensão da rede de influência dos suspeitos e às suas ligações potencialmente privilegiadas.

O que das suspeitas é verdade, ou o que o tribunal considerou provado, será conhecido nesta sexta-feira, quando o coletivo anunciar a sentença para os 21 arguidos (17 pessoas e 4 empresas). O MP não tem dúvidas sobre a existência do Labirinto e quer ver todos condenados pelos crimes de corrupção ativa e passiva, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, peculato de uso, abuso de poder, tráfico de influência e branqueamento de capitais.

Investigação marcante

Logo a seguir à Operação Marquês, que tem como arguido o ex-primeiro-ministro José Sócrates, este será mesmo o caso mais importante da era anticorrupção que marcou o mandato da ex-procuradora-geral. Foi substituída em outubro antes de ser conhecida a sentença - que chegou a estar anunciada para 21 de setembro, mas foi adiada para 21 de dezembro e depois, devido à greve dos funcionários judiciais, remarcada para este dia 4 de janeiro - que avaliará a capacidade de investigação e recolha de provas dos procuradores do do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), liderado por Amadeu Guerra.

O caso explodiu há pouco mais de quatro anos, a 13 de novembro, com a detenção de Manuel Palos - foi a primeira vez que o chefe máximo de polícia foi preso. Com ele foram também detidos o então presidente do Instituto de Registos e Notariado (IRN) António Figueiredo, e a secretária-geral do Ministério da Justiça, Maria Antónia Anes. Estiveram alguns meses em prisão preventiva, com pulseira eletrónica.

Mas o dano de maior peso - a nível político - aconteceu logo três dias depois, quando, na sequência de suspeitas que se foram tornando públicas, se demitiu o então ministro da Administração Interna Miguel Macedo - um dos quadros mais populares do governo e em ascensão no PSD de Passos Coelho. Macedo seria só constituído arguido quase seis meses depois, quando foi interrogado no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) - cujo vídeo seria depois divulgado ilegalmente por um órgão de comunicação social que vai ser por isso julgado.

Um "carnaval" que irritou o juiz

Durante o julgamento, que durou 14 meses (de fevereiro de 2017 a abril de 2018), a defesa dos arguidos - que conta com advogados conhecidos como Castanheira Neves, Rogério Alves ou João Medeiros - tentou contrariar a tese do MP, perante um coletivo presidido pelo juiz Francisco Henrique, que não escondeu, algumas vezes, sinais de exasperação. "Se é para continuar com este Carnaval, não", atirou o magistrado durante uma inquirição a Miguel Macedo, mandando suspender a sessão.

Nas alegações finais, o procurador do MP, José Niza, reconheceu que a prova pessoal e testemunhal prestada em julgamento foi fraca, com alguns arguidos a optarem pelo silêncio ou a entrarem em contradição e testemunhas que podiam ter sido decisivas a escudarem-se em lapsos de memória, face ao que haviam dito em inquérito.

Mas, no seu entender, as interceções telefónicas, sms e e-mails entre os arguidos e a prova documental existente no processo são "claras" e bastantes para provar os factos imputados, ditando a condenação dos arguidos. José Niza invocou mesmo jurisprudência no sentido de que nada obsta a que as transcrições de escutas telefónicas funcionem como único meio de prova para condenar os acusados. Declarações que deixaram os advogados à beira de um ataque de nervos.

"Ou a prova do MP é concludente ou, havendo dúvida, tem de se decidir a favor do arguido", sustentou Rogério Alves, criticando que o MP pretendesse condenações, principalmente a do seu constituinte, António Figueiredo, com base nos dados recolhidos na investigação e sem fazer prova dos mesmos em fase de julgamento. Isso traduziria uma "inutilidade superveniente do julgamento", sublinhou.

As acusações

Miguel Macedo, que abandonou a política e está atualmente a fazer consultoria jurídica num escritório privado, tem imputados três crimes de prevaricação de titular de cargo público e um de tráfico de influências.

Está acusado de ter favorecido um grupo de pessoas que pretendiam lucrar de forma ilícita com os Vistos Gold, realizando negócios imobiliários lucrativos com empresários chineses que pretendiam obter autorização de residência para investimento.

Desse grupo faziam parte alegadamente Jaime Gomes, empresário e seu amigo, António Figueiredo, e o empresário chinês Zhu Xiaodong, também arguido. Em causa estão também alegados favorecimentos a uma empresa de Paulo Lalanda e Castro, ex-patrão da farmacêutica Octapharma, e ao Grupo Bragaparques.

A acusação a Miguel Macedo aponta ainda o envolvimento do ex-ministro na nomeação de um Oficial de Ligação para a Imigração para Pequim, supostamente destinada a beneficiar uma empresa com interesse em captar investidores chineses, através dos Vistos Gold.

Miguel Macedo teve Rui Rio, atual presidente do PSD, como testemunha abonatória. "A minha perceção é que a atuação de Miguel Macedo foi sempre determinada pelo interesse público", declarou por videoconferência.

A defender a idoneidade de Macedo estiveram ainda em tribunal a antiga ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes, e antigo vice-presidente da Assembleia da República Guilherme Silva e o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Jaime Marta Soares.

Manuel Palos, coordenador superior do SEF, esteve mais de dois anos suspenso do serviço, sem direito a qualquer remuneração. Está a fazer pareceres, na dependência direta do diretor nacional desta polícia. Está acusado de um crime de corrupção passiva e um de prevaricação.

Logo na fase inicial do processo era acusado de ter recebido duas garrafas de vinho Pêra Manca de um empresário chinês, por ter agilizado autorizações de vistos dourados - o que não ficou provado em tribunal e levou o MP a recuar nesta imputação. Sem provas consistentes de que tivesse recebido dinheiro, o MP alegou que Palos tinha sido corrompido de forma não material, anuindo aos pedidos de Miguel Macedo, para se manter no cargo.

No entanto, um relatório que a defesa entregou ao tribunal demonstrou que os processos despachados pelo ex-diretor do SEF não foram mais rápidos do que a média de todos os outros - tentando com isso demonstrar que não tinha havido "agilização" ou "favorecimento".

Os antigos ministros Nuno Morais Sarmento e Daniel Sanches, o general Newton Parreira, ex-comandante-geral da GNR, e o padre António Vaz Pinto testemunharam a favor de Manuel Palos.

O procurador-geral adjunto Daniel Sanches, antigo diretor do SEF, primeiro diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e antigo ministro da Administração Interna, disse não acreditar que Jarmela Palos se "deixasse corromper", lembrando que quando soube da detenção do arguido a sua primeira reação foi dizer que era "impossível" e que ao final do dia o equívoco estaria esclarecido.

O padre António Vaz Pinto, antigo alto-comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, depôs também em abono das qualidades pessoais e profissionais de Manuel Jarmela Palos, recordando que quando soube que o ex-diretor do SEF estava implicado no caso Vistos Gold comentou que "não podia ser verdade".

António Figueiredo voltou de novo à "casa" IRN e está a trabalhar numa conservatória em Vila Nova de Gaia. É considerado pelo MP como o principal protagonista do processo, cuja rede de influências era transversal a todos os arguidos.

Foi acusado de 12 crimes: quatro de corrupção passiva, dois de recebimento indevido de vantagem, um de peculato de uso, três de tráfico de influência, um de prevaricação e um de branqueamento de capitais. O procurador do julgamento chegou a ironizar, dizendo que Figueiredo "transformou uma parte do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) numa agência de vistos gold".

Segundo a acusação do MP, Figueiredo terá acordado com um empresário chinês (também arguido) ajudá-lo, a troco de dinheiro, na angariação de casas para os candidatos a Vistos Gold e conseguir, com o apoio de Manuel Palos, que estes processos fossem facilitados. Também se terá servido de funcionários do IRN para tratar das escrituras dos imóveis.

Maria Antónia Anes regressou também à sua "casa", a Polícia Judiciária, onde é quadro superior, estando colocada no apoio administrativo. Foi julgada por corrupção ativa para a prática de ato ilícito, corrupção passiva para a prática de ato ilícito e dois crimes de tráfico de influência.

O MP alega que a ex-secretária-geral manipulou concursos para a contratação de dirigentes dos serviços do Ministério da Justiça, entre os quais António Figueiredo. Segundo noticiou na altura o DN, de acordo com informações da CRESAP (a comissão responsável pelos concursos dos dirigentes da administração pública), Maria Antónia Anes foi júri em dez concursos e valorizou a nota de 12 nomeados para cargos de direção daquele ministério.

Em tribunal negou ter favorecido algum candidato, mas admitiu ter dado esclarecimentos a António Figueiredo sobre o preenchimento do inquérito de autoavaliação e que se limitou a "cortar coisas" que não estavam incluídas no seu currículo.

Maria Antónia Anes disse também que a ministra da Justiça da altura, Paula Teixeira da Cruz, queria que António Figueiredo continuasse no IRN, tendo em conta que era "um excelente dirigente" e "mantinha o IRN em paz social".

(Notícia originariamente publicada a 21 de dezembro)

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