Visita à Lisboa do jesuíta do filme de Scorsese

Uma viagem à Lisboa vivida por Cristóvão Ferreira, personagem interpretada por Liam Neeson em Silêncio, é a proposta da Santa Casa da Misericórdia. Um itinerário pela memória das casas jesuítas que começa no Hospital de São José.
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O fio da conversa durante o acesso ao segundo andar do edifício principal do Hospital de São José, em Lisboa, parte-se assim que é aberta a porta do atual Salão Nobre. Ricardo Máximo, guia dos passos de quem quer conhecer as memórias de Cristóvão Ferreira, não resiste: "Estamos num sítio mágico." Esta era a Aula da Esfera, do Colégio de Santo Antão-o-Novo, desde 1775 transformado em hospital.

Era nesta sala do colégio jesuíta que um grupo restrito de apenas 20 alunos, de um universo de mil ou 1500, tinha acesso ao conhecimento de ponta aí ministrado por "alguns dos melhores professores do mundo católico ocidental, no final do século XVI, início do século XVII". "Um desses nomes maiores foi Giovanni Paolo Lembo, amigo de Galileu", revela o técnico da Santa Casa da Misericórdia, entidade que organiza estes percursos com duração de duas horas e meia.

Nesta sala, os azulejos do século XVIII preservam a memória dessas classes de topo que aqui foram formadas ao longo de "150 anos ininterruptos de ensino matemático e das artes de marear". A presença desses intelectuais em Lisboa e na Companhia de Jesus, fundada em 1534 e consagrada em 1540, ano em que chegaram a Portugal os primeiro jesuítas, é explicada por Ricardo Máximo através de uma metáfora ouvida a um professor: "A Companhia de Jesus nasce em Paris, são vassalos de Roma, têm o Coração em Jerusalém, e têm as pernas em Lisboa. E as pernas têm de andar."

Têm de andar porque a demanda era "o espírito do que vai ser verdadeiramente a Companhia de Jesus em Portugal, algo trazido por Francisco Xavier logo em 1540". E a "Província Portuguesa tinha esta característica muito particular - era um transatlântico que ligava ao Oriente, a África e às Américas". Uma ideia que Ricardo Máximo volta a relembrar no Noviciado da Cotovia, atual Museu de História Natural, onde um em cada dois noviços tinha como certa a ida para longe e quase garantido o não regresso dessa missão.

"É esta Lisboa que Cristóvão Ferreira [personagem interpretada por Liam Neeson no filme Silêncio] conhece: é uma das cidades de ponta do mundo católico. Fervilhante de gentes, e para além dos navegadores e comerciantes que sempre associamos a este período, também havia estas elites do conhecimento." Natural de Torres Vedras e estudante em Coimbra, é certo que passou por Lisboa neste período, onde esteve até embarcar para o Oriente.

Ainda na sala, Ricardo chama a atenção para os painéis: "São pequenas lições matemáticas." Num, por exemplo, veem-se anjos que com a ajuda de roldanas conseguem levantar o mundo, provocar vapores de água, nuvens e com esta técnica conseguem fazer avançar o mundo. Mais: conseguem provocar ventos para fazer avançar a Armada Portuguesa por mares nunca dantes navegados.

Desce-se à antiga sacristia, atual capela do hospital, onde, sentados, Ricardo Máximo aproveita para explicar como nasceu este colégio, com muitas doações de mães de alunos oriundos de famílias nobres.

Tempo de enfrentar o frio e, seguindo pela Rua do Arco da Graça, breve paragem no Rossio, junto ao número 85 onde, na montra de uma loja, resta um dos pilares do Hospital Real de Todos-os-Santos, muito danificado pelo terramoto de 1755, primeiro local onde dois dos fundadores da Companhia estiveram instalados em Portugal (Francisco Xavier e Simão Rodrigues).

A visita prossegue com a subida até à Igreja de São Roque. Aí chegados e já sentados, Ricardo centra o discurso nos mártires do Japão cujos retábulos se encontram junto ao altar-mor, atestando a sua importância. Já na sacristia, destaque para as pinturas de 1619 de André Reinoso que contam a vida de Francisco Xavier. A visita volta à rua para breve passagem pelo já referido Noviciado da Cotovia, e termina, de forma simbólica, junto ao Mercado da Ribeira, numa alusão à partida dos jesuítas em missão pelo mundo.

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