Viseu: a cidade que está a aprender a viver sem água
Maria Clara tira da mala do carro dois garrafões de água para regar as plantas. "Trouxe-os da fazenda de Felgueira Velha, no concelho de Oliveira do Hospital, porque lá não há falta de água". Vive junto ao depósito da água de Nelas, no distrito de Viseu, onde na semana passada foi declarado estado de emergência devido à seca. "Depois de ouvirmos dizer que havia problemas com a água, deixámos de regar. E também nunca mais lavámos o carro", conta o marido, Mário Neves. Ambos trazem as mãos sujas de cinza. "Andámos de volta dos pinheiros queimados pelo fogo lá na quinta. Azar? Eu sei lá o que é isto."
Fustigada pelas chamas, a região debate-se agora com uma seca extrema. A água continua a chegar às torneiras, mas com menos pressão do que outrora. As fontes luminosas foram desligadas; não se lavam carros com água da companhia; só se regam jardins com água do poço. E há quem não queira arriscar gastá-la. Entre os habitantes, há agora a consciência de que a água é um bem escasso. "As pessoas sabem que têm de consumir menos. Nunca se viu uma seca assim", diz Maria Clara, de 66 anos, que passou a lavar a loiça apenas na máquina, porque "segundo dizem, é como se gasta menos". E "só se tomam duches mesmo quando é preciso".
Viseu, Mangualde, Penalva do Castelo e Nelas são abastecidos pela barragem de Fagilde, que na quarta-feira estava apenas com 8.4% de capacidade. É estimado que tenha dado mais de um milhão de metros cúbicos para combater os incêndios que assolaram a região, o que faz com que os concelhos vivam agora preocupados com a falta da água. Por toda a região, repetem-se os apelos: "Deus queira que chova. E a sério!"
Para corrigir a situação, os camiões cisterna dos bombeiros devolvem agora alguns milhares de metros cúbicos de água à albufeira. São 52, no total, e trazem a água da barragem da Aguieira. A estrada molhada no final do percurso - de cerca de 60 quilómetros - denuncia algumas perdas pelo caminho. Isabel Almeida, chefe de divisão na Câmara Municipal de Viseu, diz que a água da barragem, que deveria chegar aos 10 metros de altura, não passa dos três. Nas margens, as pedras estão a descoberto. À medida que nos afastamos, o curso de água torna-se cada vez mais estreito. "Vai ficando um fio", lamenta a engenheira. Onde sempre se viu líquido, só terra seca, gretada.
Enquanto a água não potável é vazada para a barragem, há 28 camiões-cisterna a transportar um total de 3300 metros cúbicos de água potável para o Reservatório do Viso. Vem maioritariamente da estação de tratamento de Balsemão, junto a Lamego. Às 10.30, quando chegamos, há cinco camiões a descarregar, mas o transporte começou bem cedo, por volta das 06.00. "Cada camião faz três a quatro circuitos por dia. São 50 quilómetros para cada lado. Aqui, o processo demora 20 minutos", explica Isabel Almeida. Na quarta-feira, Almeida Henriques, presidente da autarquia de Viseu, aguardava ainda o reforço de "15 a 20 camiões de água potável" de uma ação coordenada pelas Águas de Portugal. Operações que devem continuar, uma vez que a chuva prevista para os próximos dias não irá corrigir a situação.
Empresas e escolas atentas
Na Escola Básica do 2º e 3º ciclos de Mundão, freguesia do concelho de Viseu, as restrições começaram muito antes de se ouvir falar em seca, mas a escassez de água obrigou a reforçar cuidados. "Apesar de termos poço para regar os jardins, no verão só regávamos de vez em quando porque podemos vir a precisar dessa água", adianta Benvinda Silva, diretora do agrupamento, onde já não se usam aspersores para a rega. "Em algumas zonas até deixámos de ter relva. Não queremos deixar morrer tudo, mas não nos podemos dar ao luxo de ter uma escola toda relvada".
Dos três bebedouros que existem na escola, apenas um está a funcionar. Apesar de a autarquia ter diminuído em 25% a pressão da água, Benvinda diz que não se sentem os efeitos naquele estabelecimento de ensino. Contudo, em casa - ali perto - "é uma diferença abismal": "É pouca quantidade e tem pouca pressão". Em cada chuveiro, a professora colocou um balde para recolher a água que corre antes de aquecer. "Uso-a para as sanitas e para fazer limpezas". Já a água que fica nos copos, é usada para regar as plantas.
É hora de almoço. Pais e avós aguardam pelos estudantes junto ao portão da escola. Marciano Almeida, de 76 anos, espera dentro do carro pela neta. "Por enquanto, ainda não sinto nada de muito anormal por causa da seca. Mas isto não está nada famoso. Nesta altura, já era para ter chovido e bastante. Nunca vi uma seca assim". Só usa água do poço, mas mesmo assim "tenta-se gastar o mínimo", até porque alguns poços já secaram. Inês Rocha, a neta, conta que há professores que falam da seca e, em casa, há restrições. Entre um sorriso envergonhado, adianta que a mãe "usa a água que sai fria nos banhos para o autoclismo e para lavar as varandas". Lá em casa, "os duches passaram a ser rápidos e para-se a água quando não é precisa".
As empresas da região também adotaram medidas para diminuir o consumo de água. É o caso da Caminhos Cruzados, empresa produtora de vinho de Nelas. "Dentro das nossas necessidades, consumimos o menos possível. A situação está a ficar dramática", assume Joana Gonçalves. Segundo a engenheira, as folhas das videiras começaram a ficar amarelas bem mais cedo do que é normal. "Antes da colheita, devíamos ter regado, mas isso implicava usar muita água. Não o fizemos". Admite que isso poderá ter algum impacto, mas nesta altura é difícil antecipar qual a sua dimensão.
Falta comida para os animais
Da freguesia de São João das Lampas, em Sintra, chegam fardos de palha para alimentar os animais da região, que ficaram sem pasto devido aos incêndios e à seca. São distribuídos na Zona Industrial de Nelas, onde encontramos Maria Jesuína Castanheira, de 56 anos. O rosto espelha o cansaço de "longas semanas de desespero, sem dormir". Há mais de um mês que não tem alimento para as 120 ovelhas que cria em Carvalhal Redondo, naquele concelho. "É a segunda ou a terceira vez que venho cá, mas o alimento só dá para dois ou três dias. Nos outros, o meu marido anda com as ovelhas a tentar rapar o pouco que resta no campo", conta ao DN, enquanto os militares enchem a carrinha com palha. Não só não há pasto, lamenta, como, consequentemente, "não há leite".
A preocupação revelada por Jesuína estende-se aos restantes habitantes da região e decisores políticos. "É uma situação sufocante para quem está à frente da decisão. Todos os dias temos que fazer com que a água chegue à casa das pessoas", afirma Almeida Henriques, que acredita que, quando "o sufoco terminar", a população sairá reforçada pelas medidas que adotou.