Vila de Rei e Mação. Os dias em que o fogo consumiu o que restava de verde
"Quando os incêndios entram com esta violência, não há prevenção nem mecanismo que resistam. Estamos num concelho que cumpriu tudo aquilo que era possível à volta das estradas, na limpeza, e mesmo assim as coisas são o que são." O presidente da Câmara de Mação, Vasco Estrela, ajeita o colete que o identifica como responsável máximo da Proteção Civil e entra na Renault Kangoo branca que o leva de aldeia em aldeia. São 16.30 de segunda-feira e há cerca de uma hora que os reacendimentos não param, por toda a parte, no que restava de floresta verde daquela região do interior, entre Vila de Rei e Mação. À porta do posto de comando, na sede de freguesia de Cardigos, o cenário é múltiplo: uma espécie de base militar com vários elementos do Exército, carros de comando e bombeiros, homens e mulheres da Cruz Vermelha Portuguesa, da GNR, do INEM e da Autoridade Nacional para a Proteção Civil.
Uma mistura de rostos cansados e preocupados com aquela gigantesca coluna de fumo negro, que faz uma espécie de parede de cinzas na antiga vila. Chegam caixas de fruta. Um bombeiro entrega uma delas no posto de comando instalado dentro de um carro dos Bombeiros Voluntários de Pernes.
Santarém, distrito que faz fronteira com o de Castelo Branco, nesta região. Vamos a caminho das 48 horas do árduo trabalho de combate ao fogo, e tudo depende da coordenação que ali é feita.
No centro da aldeia, os populares dividem-se entre os que observam (numa espécie de miradouro) as chamas, que avançam ferozmente, vale abaixo, encosta cima; os que regam casas e jardins com pequenas mangueiras, e os que esperam, em silêncio, que o fogo não chegue ali. As chamas do dia anterior deixaram marcas aqui e ali, nos terrenos contíguos às casas de Cardigos. Mas o incêndio estava controlado desde domingo, pelo que os populares assistem agora incrédulos ao reacendimento.
Jorge Martins é um dos mais inconformados. Desde manhã não faz outra vida a não ser molhar tudo à volta de casa. "Isto não há coincidências... esta parte era a única que faltava arder aqui em Mação. Mas a mim ninguém me consegue explicar porque é que os aviões Canadair não começaram mais cedo a largar água. Mal a luz do dia se viu, era logo!", diz o homem. A camisola está coberta de pó e cinza, mãos e braços negros de carvão, de andar na encosta a tentar enganar o fogo. Só que o fogo "é cada vez mais manhoso", como constatam alguns populares. Por outras palavras, "tem um comportamento cada vez mais violento e agressivo", como têm vindo a alertar os responsáveis da Proteção Civil e diversos especialistas.
São 16.30 e os termómetros marcam 39 graus. O ar é quase irrespirável, o vento (forte, cada vez mais forte com a dimensão das chamas), muda agora de direção. Ao posto de comando chega a informação de que o fogo se encaminha para o concelho de Proença-a-Nova, é preciso evacuar uma aldeia no vale, onde moram vários idosos. De resto, o DN cruza-se em Cardigos com a filha de um desses casais que hão de resistir até à última hora. A mulher consegue chegar até à moradia e assistir ainda ao trabalho hercúleo que vão fazendo os elementos da Proteção Civil, que é o de convencer os idosos a deixar as suas casas. Foi assim no lugar de Roda, por exemplo, ou de Casalinho, ambos no concelho de Mação.
Afinal, a exemplo do que sucedera já no ano passado em Monchique, essa tem sido a preocupação primordial da Proteção Civil: evacuar as casas, defendê-las na medida do possível, e permitir o regresso apenas quando o fogo passa. Até ao final do dia de hoje não havia registo de desalojados, arderam casas devolutas ou anexos de arrumos e alfaias agrícolas. De resto, também não há a figura de chefe de aldeia, nem sequer o abrigo de segurança que consta do programa Aldeia Segura - Pessoas Seguras, uma vez que o concelho não aderiu ainda à iniciativa criada pelo governo em 2018.
"Mas não foi a questão de haver ou não haver que ajudou a resolver os problemas", afirmou ao DN o presidente da Câmara de Mação. "Ninguém sofreu nada dentro das aldeias, apesar de muitas estarem sem um único bombeiro, sem ninguém para as proteger a não ser os moradores", acrescentou Vasco Estrela, que desde sábado colocou no terreno cerca de 50 trabalhadores do município.
A verdade é que, nesta segunda-feira, terceiro dia do incêndio mais grave deste ano, chegaram a estar no terreno mais de 1200 bombeiros, vindos de todo o país, apoiados por 332 viaturas e 17 meios aéreos. A meio da tarde, o governo português pediu ajuda a Espanha, que disponibilizou dois aviões Kamov.
Ainda no concelho de Vila de Rei - onde o fogo foi entretanto dominado - um grupo de meia dúzia de bombeiros (apoiados por duas viaturas) observava, à hora de almoço, as chamas que se veem ao longe. São quase três da tarde e ainda esperam pelo almoço, que tarda em chegar. Valeu-lhes a solidariedade de uma moradora, numa aldeia onde as chamas tentaram entrar mas foram controladas a tempo. São alentejanos e fazem parte de um grupo de 30 que veio de Beja, Alvito e Serpa. O subchefe Edgar Ramos já conhece o interior da região centro de outros fogos, e por isso estava preparado para o que iria encontrar. Depois de Pedrógão Grande, só a velocidade do fogo ainda consegue surpreender os bombeiros.
Os serviços de saúde contabilizaram 11 feridos, além de cerca de 20 pessoas assistidas por causa da inalação de fumo e cansaço. Na maioria eram ferimentos ligeiros. A exceção aconteceu no lugar da Vale da Urra, Vila de Rei. Um homem de 55 anos ficou gravemente ferido, quando tentava deslocar-se de trator para a aldeia. Permanece internado em Lisboa, numa unidade de queimados. A família recusou-se a prestar declarações. À porta da moradia são visíveis os sinais do fogo, que acabou por consumir as hortas em toda a aldeia, bem como os anexos de uma habitação, na mesma zona que em 2003 foi completamente devastada pelo fogo, e que em 2017 voltou a ser ameaçada.
Dulce Natário já viveu as duas experiências, ainda para mais com a angústia da distância. Tal como a maioria dos habitantes de Vale da Urra, uma das aldeias de Vila de Rei mais afetadas pelo fogo, esta enfermeira mora em Lisboa e faz daquela a casa de férias e fins de semana. O quintal e as árvores de fruto estavam entregues ao vizinho que se tornou o ferido grave de que falam as notícias. Ao telefone com as vizinhas foi acompanhando o drama. Preocupou-se mais quando uma delas lhe disse: "Dulce, pede a São Sebastião que nos ajude, que isto está um pandemónio." Mas o padroeiro da aldeia haveria de poder muito pouco em face da violência das chamas, das alterações climáticas, dos ventos fortes, do débil ordenamento do território e - sobretudo - da monocultura de eucalipto. Desaconselhada a fazer a viagem durante o dia de domingo, Dulce chegou a Vale da Urra na segunda-feira de manhã. Quando o DN a encontrou ainda não tivera coragem de subir ao primeiro andar da velha moradia que comprou ali, naquele lugar, há mais de dez anos. Quedou-se nas árvores de fruta carbonizada, na vinha que ardeu, no fogo que parou à porta de casa. A segunda vez em dois anos, a terceira desde 2013.
De Vila de Rei e Mação restava muito pouco verde, desde então. Ao longo deste dia 22 de julho as chamas consumiam boa parte dos últimos três mil hectares que ainda resistiam, dos cerca de 40 que pintavam a região no mapa. O presidente de Mação foi sendo paulatinamente mais comedido nas críticas, com o passar das horas e do fogo. Mas a meio da tarde deste terceiro dia do fogo ainda sublinhou ao DN que "houve uma altura em que as coisas poderiam ter seguido um outro rumo", em matéria de distribuição de meios.
"Tentaremos apurar, saber o que aconteceu e por que razão os meios estiveram mais de um lado e menos de outro. Não vale a pena entrar por aí." Mas Vasco Estrela já entrara, quase 48 horas antes, logo na noite de sábado, quando o fogo lhe bateu à porta. Outra vez.