O anúncio correu há uma semana os principais órgãos de comunicação social: em 2024, o sistema público de videovigilância da cidade de Lisboa vai ser novamente ampliado. Às 33 câmaras de vídeo já instaladas no Bairro Alto e em Santa Catarina irão somar-se mais 97 no Cais do Sodré, Restauradores, Ribeira das Naus e Campo das Cebolas. Além disso, será lançado um concurso para a instalação de mais 112 câmaras nas restantes praças e avenidas do centro da cidade. O presidente da câmara, entrevistado pela SIC, reconheceu que não há registo de um aumento da ocorrência de crimes em Lisboa, mas insistiu que o reforço da videovigilância -- ou da "videoprotecção", como prefere chamar-lhe -- representa um "salto qualitativo" na política de segurança municipal..A ausência de reacções críticas a este anúncio não é, infelizmente, uma novidade. O recurso generalizado à videovigilância para fins securitários, introduzido em Portugal há pelo menos duas décadas (1) tem vindo a ser progressivamente normalizado. E tal não se deve apenas à sua disseminação, mas também à neutralização das instâncias responsáveis pela sua regulação. Recorde-se que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) indeferiu sistematicamente os primeiros projectos de instalação de sistemas de videovigilância nos concelhos da Amadora, Lisboa e Porto, por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais. Em entrevista ao Público, José Magalhães, o ex-secretário de Estado socialista que geriu o processo, recordou que os embates com a CNPD foram "úteis" para "perceber que politicamente não era possível dar poder vinculativo aos pareceres da Protecção de Dados sobre questões de estratégia policial". (2) No início do governo de Passos Coelho, a CNPD perdia definitivamente o seu poder vinculativo, tornando-se num órgão meramente consultivo..Se a crescente aceitação da vigilância de massas não é surpreendente, é-o pelo menos a fragilidade do discurso público que a sustenta. Como compatibilizar, por exemplo, o actual ímpeto securitário com os rankings internacionais, tão caros ao governo, que colocam o país entre os mais seguros do mundo? E como não desconfiar da suposta eficácia destas novas formas de controlo? A correlação entre o reforço da videovigilância e a redução da criminalidade não foi demonstrada, nem se espera que venha a sê-lo, pois o efeito dissuasor das câmaras de vídeo não é quantificável. De resto, mesmo nos casos considerados de sucesso, a videovigilância limita-se a redistribuir geograficamente a insegurança e o crime, sem atacar as suas causas. Ainda assim, mais de 800 câmaras terão sido instaladas em espaços públicos entre 2013 e 2021, sem contar com os milhares que surgiram, entretanto, nas escolas, universidades ou hospitais de todo os país. (3) Em 2021 foi também aprovada uma nova lei da videovigilância, que a CNPD não hesita em considerar inconstitucional e antidemocrática.4 Para além de alargar radicalmente os critérios de utilização de câmaras de vigilância, a lei passa a autorizar o uso generalizado de câmaras portáteis, transportadas pelas forças de segurança (bodycams) ou por drones equipados com tecnologias de inteligência artificial e reconhecimento facial..Esta escalada securitária traduz-se na eliminação progressiva do direito à privacidade e num reforço desproporcionado dos poderes repressivos do Estado, mas também numa reconfiguração sistemática do espaço público. A primeira vaga de videovigilância centrou-se, não por acaso, em bairros suburbanos pobres, densamente povoados, com maiores índices de criminalidade. À falta de uma solução para os problemas daquelas populações, as câmaras de vídeo procuravam conter as tensões sociais existentes. Tratava-se de disciplinar a ocupação do espaço de modo económico e indiscriminado, instaurando um regime de suspeição generalizada em que todos são potencialmente culpados. O que se passa hoje em Lisboa e noutros centros urbanos é algo diferente. Se o pretexto continua a ser a violência criminal, o verdadeiro motor do controlo securitário é a violência socioeconómica do processo de gentrificação instalado. O afluxo sem precedentes de investimento internacional especulativo, favorecido por um mercado imobiliário desregulado, um sistema fiscal permissivo e a inacção deliberada do poder político, conduz a uma transformação acelerada do espaço público. E o principal papel da videovigilância já não é, como nos guetos pobres da periferia, garantir a reprodução pacífica da ordem social, mas acelerar o processo de substituição social em curso..Em ruas, avenidas e praças onde o preço das casas já não tem qualquer relação com o rendimento médio da população, as câmaras de vídeo aumentam na proporção directa da expulsão dos residentes, do êxodo de serviços públicos e do silenciamento das vozes críticas a eles associadas. Embora as câmaras exerçam ainda o seu poder sobre a população local, é sobretudo aos novos investidores e proprietários que elas se dirigem. E a sua mensagem é clara: Venham, o caminho está livre, o vosso dinheiro está em segurança..1 https://setentaequatro.pt/enfoque/videovigilancia-em-portugal-quando-nem-todos-os-corpos-sao-iguais 2 https://www.publico.pt/2021/09/20/politica/noticia/aprovou-sistemas-videovigilancia-governos-ps-1978019 3 https://www.publico.pt/2021/09/20/politica/noticia/desde-2013-videovigilancia-rua-passou-38-850-camaras-autorizadas-1978004 4 https://www.cnpd.pt/comunicacao-publica/noticias/videovigilancia-massiva-e-sem-limites/.Investigador na Universidade de Coimbra.O autor utiliza a grafia anterior ao novo acordo ortográfico.