Vias Romanas. Braga candidata-se a itinerário europeu sem cuidar de troço em casa

Ainda a guerra entre agentes culturais e patrimoniais com a Câmara devido à venda da Fábrica Confiança. Movimento cívico pede ao Conselho da Europa que "pressione a autarquia" por causa da possível passagem da Via XVII naqueles terrenos. O arqueólogo Francisco Sande Lemos garante ao DN que não há dúvidas quanto a isso.
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A 2 de outubro, a Câmara Municipal de Braga candidatou as suas vias romanas a Itinerário Cultural Europeu, classificação da responsabilidade do Conselho da Europa. Esta terça-feira, a candidatura foi colocada em causa pela Plataforma Salvar a Fábrica Confiança, que solicitou ao diretor do Instituto de Itinerários Culturais do Concelho da Europa, Stefano Dominioni, que "pressione a autarquia de Braga (...) a cumprir os requisitos de salvaguarda do património histórico". Em causa está a passagem da Via XVII (ligava Braga, por Chaves, a Astorga, em Espanha) pelos terrenos onde funcionou aquela lendária saboeira. "Não há dúvidas nenhumas de que o traçado [da Via XVII] esteja ali, por baixo ou ao lado", garante ao DN o arqueólogo Francisco Sande Lemos, que até 1987 foi diretor da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, com a qual continuou a trabalhar até 2008, quando se reformou.

"Fiz um estudo oficial da Unidade de Arqueologia publicado pela revista Fórum, editada pelo Conselho Cultural da Universidade do Minho no número 29, em 2001, sob o título "Arredores de Bracara Augusta - escavações arqueológicas na necrópole de S. Vítor, no contexto da via romana para Aquae Flaviae"", contextualiza o arqueólogo.

"Não há dúvidas nenhumas de que o traçado esteja ali, por baixo ou ao lado. Esta convicção deriva da circunstância de ter aparecido um marco miliário quando foram feitas obras a menos de 500 metros a Oeste da Fábrica Confiança, no alinhamento de uma rua que vai entroncar na fábrica. De acordo com essa descoberta, a Via XVII passará por baixo das fundações da Confiança", defende Francisco Sande Lemos.

"A Plataforma Salvar a Fábrica Confiança endereçou a Stefano Dominioni, diretor do Instituto de Itinerários Culturais do Conselho da Europa, um pedido de acompanhamento do processo da Fábrica Confiança, depois de o município de Braga ter procedido à entrega da candidatura das Vias Romanas Europeias a Itinerário Cultural Europeu no recente Fórum do Conselho Europeu das Rotas Culturais, que decorreu [a 2 de outubro] em Görlitz, na Alemanha", disse esta terça-feira a plataforma, constituída por agentes culturais, cívicos e da área do património, em comunicado.

A Câmara de Braga respondeu de forma lacónica ao DN, no dia em que se realiza a continuação da Assembleia Municipal (AM) de 4 de outubro, que foi dominada pela votação da venda em hasta pública dos terrenos da antiga Fábrica Confiança, no centro da cidade, na freguesia de S. Vítor. Na agenda está a discussão da candidatura a Itinerário Cultural Europeu e numa sessão que se iniciou às 21:00 desta terça-feira, no pequeno auditório do Altice Forum. "A Câmara já prestou todos os esclarecimentos sobre este tema. As condicionantes arqueológicas fazem parte da tramitação de qualquer processo urbanístico", transmitiu a autarquia. Sobre a aparente contradição de candidatar as vias romanas municipais a Itinerário Cultural Europeu sem cuidar de confirmar se a Via XVII passa, efetivamente, nos antigos terrenos da saboeira, não houve uma palavra.

O marco miliário

"A Fábrica Confiança deverá ter sido instalada sobre a Via XVII ou ao lado. O achar de um marco miliário é um elemento determinante. Nestes casos [de descoberta de vias romanas], há hipóteses diversas, mas quando se encontra um marco miliário é um elemento decisivo", assegura Sande Lemos. "Adjacentes às vias romanas há sempre estruturas anexas, como por exemplo uma "villae" [vila, que são focos de desenvolvimento económico, usualmente de cariz agrícola, que necessitam de vias de escoamento para os seus produtos, quer para as cidades, quer para portos a fim de serem exportados]. À volta de Braga havia uma rede de vilas, muitas vezes uma casa senhorial que detinha a exploração agrícola. Como é lógico, situadas junto à estrada principal. Neste caso, junto à Via XVII", explica.

"É uma hipótese que se coloca há muitos anos [a da existência da Via XVII nos terrenos da antiga Fábrica Confiança]", diz ao DN a ASPA - Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural. "A Câmara estabelece preços [para a hasta pública de venda dos terrenos por quatro milhões de euros] sem saber o que lá está. E o comprador pode vir a sofrer um embargo. Pode pensar que pode fazer lá uma cave e não pode por haver lá vestígios da Via XVII. Nunca deveria vender aquilo sem fazer uma primeira prospeção arqueológica. Pode até estar a vender gato por lebre", acusa a associação.

A venda em hasta pública dos antigos terrenos da Fábrica Confiança foi aprovada a 19 de setembro em reunião do executivo (5-4 a favor da Juntos por Braga, coligação entre PSD, CDS e PPM liderada pelo presidente da autarquia, Ricardo Rio, tendo faltado na altura dois vereadores da coligação, Lídia Dias, da Educação e Cultura, e João Rodrigues, da Gestão e Conservação do Espaço Público e Gestão das Instalações Municipais). E legitimada na AM de 4 de outubro, com a aprovação por 44 votos a favor e 29 contra, a tal dominada por esta discussão - a da venda dos antigos terrenos e instalações da Confiança.

Do lado da coligação (PSD/PPD, CDS/PP e PPM), destacaram-se duas posições. A do vice-presidente Firmino Marques, que em tempos defendeu a propriedade pública e a utilização do equipamento para fins culturais e de preservação da memória industrial (o que, defende, fica assegurado pelas salvaguardas do caderno de encargos). O também vereador com os pelouros das Obras Municipais, Políticas Sociais, Polícia Municipal, Proteção Civil, Bombeiros Municipais e Cemitério lembrou que foi sempre contra a compra pelo valor pago em 2012 (3,550 milhões de euros). E a de Miguel Bandeira, que antes de chegar à câmara em 2013 foi rosto da associação ASPA por duas décadas, defendendo que a Confiança era fundamental como património industrial. O Vereador da Regeneração Urbana, Património, Relação com as Universidades, Urbanismo, Planeamento, Ordenamento e Mobilidade lembrou que foi contra a compra da fábrica e que ficam salvaguardadas as valências de memória patrimonial no caderno de encargos.

Caderno de encargos sob vigilância

"O caderno de encargos para a venda do complexo industrial a privados apenas exige a salvaguarda de três fachadas, omitindo qualquer referência ao valor histórico e arqueológico do edifício, bem como referência à preservação do troço da Via XVII que muito provavelmente se encontra no subsolo e que deveria ser estudado e musealizado. Além disso, a venda a privados impede a realização de um projeto público de valorização da Via XVII num troço que pertence ao Município e que, ao contrário do restante traçado, não coincide com uma via pública aberta ao trânsito automóvel", acusa a Plataforma Salvar a Fábrica Confiança.

Já Francisco Sande Lemos recorre a um estudo efetuado em 2014 por Mafalda Isabel Mendes Guimarães, como tese de doutoramento na UM ("Industrial heritage in Northern Portugal. The example of Fábrica Confiança" - Património Industrial no Norte de Portugal. O exemplo da Fábrica Confiança), para dizer que "o estado de conservação da fábrica é muito bom, tanto das fachadas como do interior". "Muitas vezes, estas unidades apresentam bom estado de conservação das fachadas, mas o interior encontra-se totalmente comprometido. Não é o caso da Fábrica Confiança", alega.

No dia da reunião do executivo que aprovou a hasta pública, ratificada na AM de 4 de outubro, o presidente da autarquia bracarense garantia que o caderno de encargos protegia o legado da Confiança. "Havia muitas insinuações sobre uma estratégia para vender ao Braga Parques [shopping], mas ficou esclarecido que o PDM não admite planos comerciais ou residenciais, apenas projetos de dimensão hoteleira e residências universitárias, como já foi referido", disse na altura Ricardo Rio, sublinhando que também assegurava que fosse construído um núcleo museológico de, no mínimo, 500 metros quadrados.

"Parece que a câmara quer despachar a Confiança rapidamente para evitar um problema. Devia ter-se esclarecido primeiro se havia ou não ali a Via XVII. Mas o senhor João Granja da Silva, membro da Assembleia de Freguesia de S. Vítor [que votou favoravelmente pela venda, contra a posição do próprio presidente da Junta, Ricardo Silva], que é uma espécie de braço direito de Ricardo Rio e do PSD Braga disse que o caderno de encargos é muito exaustivo e pesado. Pelo contrário, é um caderno de encargos leviano e despachado", aponta a plataforma ao DN.

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