Dois amigos uniram esforços e convenceram outros amigos a apoiá-los numa viagem de Viana do Castelo a Catió, sul da Guiné-Bissau. Vão entregar leite de substituição materno num orfanato, a Casa da Mamé Ussai, para filhos de mulheres que morreram a dar à luz. Partem neste sábado às 09.30, com uma segunda paragem em Gondomar, prevendo chegar ao destino a 3 de março. Lá deixarão tudo o que levam, incluindo o jipe utilizado no percurso e que será transformado numa incubadora móvel..David Freitas, de 44 anos, professor de Informática, tirou uma licença de um ano sem vencimento. Há muitos anos que pensava criar um projeto que envolvesse os jovens, os alunos em particular. Teve uma ideia: comprar uma ambulância desativada, carregá-la de brinquedos e entregar às crianças de um país pobre, a que chamou Ambulance for Hearts. Mas conheceu a organização não-governamental (ONG) Na Rota dos Povos e percebeu que a ideia "era ridícula", que havia outras prioridades, como contribuir para diminuir a taxa de mortalidade infantil na Guiné-Bissau. Em mil crianças, 88 não completam os 5 anos, dados da UNICEF para 2016.."Contactei com uma pessoa de Na Rota dos Povos, ONG que tem um orfanato em Catió, no sul da Guiné-Bissau, e soube da realidade deste país, da sua taxa de mortalidade infantil, que é assustadora, o projeto mudou completamente", explica David..Entretanto, tinha-se-lhe juntado Rogério Cruzeiro, de 36 anos, um informático que viveu sete anos na Irlanda (Dublin), onde é a sede da sua empresa de consultadoria informática e que, desde agosto, gere a partir de Portugal. Conheceu o David há um ano. "Envolvi-me, em primeiro lugar, porque o David é uma pessoa genuinamente humana. Quando vim para Portugal, queria fazer qualquer coisa, mas sempre tive problemas em contribuir porque não tinha a certeza de que o meu contributo chegava ao destino, são muitos os exemplos de que isso não acontece, retraía-me um pouco. Neste projeto, tenho a certeza de que o meu contributo chega ao destino, seja tempo, dinheiro, o que for.".A ambulância passou a carrinha, uma má compra de que tiveram de se desfazer e obrigou à aquisição de um jipe, os brinquedos transformaram-se em leite de substituição para bebés, mais de 400 latas de 800 g cada angariadas, o que implica que uma parte terá de seguir por contentor..Amanhã partem numa 4X4 de Viana do Castelo, com uma segunda partida em Gondomar, a terra de David Freitas. Seguem em direção a Tarifa (Espanha), onde apanharão o barco para Tânger (Marrocos), prosseguindo pelo Sara Ocidental, Mauritânia e Senegal, até chegar ao sul da Guiné-Bissau, o destino final, cinco mil quilómetros no total. Onze dias de viajam, se tudo correr como o previsto.."Nunca viajei nestas condições, é a primeira vez que irei pisar África", diz o Rogério, que divide a condução com o David e que lhe ensinaram o básico em mecânica, o suficiente para resolver pequenos problemas. "Não sou nada aventureiro, é a primeira vez que me estou a meter numa coisa deste tipo", acrescenta o David, que, de África, só conhece Marrocos..Casa da Mamé Ussai.A data-limite que tinham para a viagem era março, mês a partir do qual as temperaturas são ainda mais elevadas em África. Organizaram a entrega da viatura e do leite em colaboração com Na Rota dos Povos, uma ONG criada em 2001, com sede em Matosinhos, para apoiar o desenvolvimento dos Países Angolanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Apoiam 210 salas de aulas, dez mil crianças envolvidas, entregaram 60 computadores e criaram cinco bibliotecas. De Portugal, já enviaram 21 contentores com material, os últimos em novembro, com o que aqui têm angariado. Fazem questão de estar um membro da ONG no porto de Bissau para receber diretamente as encomendas e as levar até Catió..Em Catió, cidade que fica a um dia de viagem de Bissau, a capital do país, criaram, em 2018, a Casa da Mamé Ussai, onde vivem 11 órfãos (a capacidade é 15). O próximo projeto é a Tabanca dos Pequenitos, um espaço arrendado que está a sofrer obras para acolher 30 crianças, de 4 a 5 anos..Será no próximo contentor da ONG que seguirão as latas de leite em pó que David Freitas e Rogério Cruzeiro não conseguirem levar amanhã. Também roupa, brinquedos, bicicletas e outros artigos que as pessoas lhes forem entregando durante toda esta campanha para ajudar as crianças da Guiné-Bissau. A maioria das recolhas foram nas apresentações em escolas, o meio do professor de Informática, que percebeu que as pessoas são mais solidárias a nível individual do que coletivo. Não foi grande a adesão por parte das empresas.."Os miúdos organizaram-se, ficaram muito sensibilizados com a situação e começaram a fazer aquilo que defendo, que é o empreendedorismo social dos jovens, acredito que o nosso futuro só será bom se os jovens começarem a atuar", defende o David, para sublinhar: "O mais positivo foram os contributos que conseguimos. Costumo dizer que este não é o meu projeto, é o projeto dos meus amigos, porque todas as angariações são de pessoas que me são próximas. É comovente ver as pessoas a acreditarem na boa vontade dos outros, é o fator positivo disto tudo.".Também o Rogério está sensibilizado: "Foi bastante positiva a solidariedade. Uma lata destas custa mais de 20 euros, ainda é um contributo substancial, e recolhemos mais de 400.".As coisas menos positivas foram a compra de uma carrinha que não estava em condições e também a esperança de viajar com um grupo de missionários, até para os ajudar na missão, mas que lhes disseram que não..Além dos mantimentos, roupas, brinquedos, etc., angariaram cerca de 5500 euros, que deu para as viaturas, um amigo mecânico ajudou nas reparações. Acabaram por encontrar um jipe em bom estado e que será apetrechado com uma incubadora, o que permite uma intervenção mais rápida junto dos recém-nascidos órfãos. Esta incubadora será adquirida por Na Rota dos Povos e enviada via marítima para a Guiné-Bissau..Na Guiné-Bissau junta-se ao duo Sofia da Silva, de 35 anos, médica e farmacêutica, a namorada de David que viajará de avião e vai ficar um mês a trabalhar no hospital de Catió. David irá ficar o mesmo período, em atividades mais dedicadas à formação. Rogério ainda não tem bilhete de regresso a Portugal, mas prevê que a estada na Guiné-Bissau seja curta, uma semana ou pouco mais..Prometem que o projeto Ambulance for Hearts não ficará pela Guiné-Bissau, querem apoiar outras comunidades, que também podem viver em Portugal, estando a pensar constituir uma associação, mas o futuro poderá não passar por aí. "Estamos no processo de criação da associação, mas já percebi que não é fundamental, o que é importante é manter esta rede de amigos. Queremos aproveitar a rede de amigos que fomos formando, vai haver continuidade a nível local. Confesso que foi uma surpresa. Não estava à espera de ter tanta gente solidária comigo", diz.