A Europa do século XVI não estava preparada para as informações que o português Fernão Mendes Pinto trouxe do Extremo Oriente e coligiu na obra Peregrinação. Daí a apodarem-no de mentiroso, brincando-lhe com o nome ("Fernão, Mentes? Minto"), foi um passo, o que não impediu que este seu livro fosse rapidamente traduzido e publicado em diversas línguas ocidentais. Entre os relatos mais difíceis de tragar pelos leitores europeus estaria possivelmente a notícia da grandeza do Império Chinês, que o autor, antigo mercador e irmão laico da Companhia de Jesus, descreve nestes termos: "Entre estas grandezas que se acham em cidades particulares deste império da China se pode bem coligir qual será a grandeza dele todo junto, mas para que ela fique ainda mais clara não deixarei de dizer (se o meu testemunho é digno de fé) que nos vinte e um anos que duraram os meus infortúnios [...] em algumas partes vi grandíssimas abundâncias de diversíssimos mantimentos que não há nesta nossa Europa, mas em verdade afirmo o que há em todas juntas não tem comparação com que há disto na China somente.".Textos como este (e muitos milhares bem menos conhecidos do que este) fazem parte da biblioteca do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM ) (Rua da Junqueira, 30, Lisboa), que ontem, segunda-feira, inaugurou novas instalações, depois de um longo período de obras e reestruturação dos serviços, em boa parte devido ao apoio mecenático da Fundação Jorge Álvares, que, em comum com o CCCM, tem a missão de aprofundar o intercâmbio cultural entre Portugal e a China. Ou não fosse o seu patrono um antigo mercador que, ainda na primeira metade do século XVI, ia de junco a Taimão, porto chinês da zona de Cantão, para levar pimenta, e voltava a Malaca com o pagamento feito em sedas, porcelanas e almíscar..Neste espaço, que doravante se chamará precisamente Biblioteca Fundação Jorge Álvares, o leitor tem acesso a uma vasta coleção de documentos, fundamental para os estudos asiáticos, num arco de tempo que vai da época de Fernão Mendes Pinto à atualidade. Na visita guiada que fizeram para o DN, a bibliotecária Helena Coelho, a investigadora Isabel Pina e o responsável pelo museu, Rui Abreu Dantas, chamam a atenção para os "tesouros" documentais que aqui se podem encontrar. Isabel Pina salienta o facto de a biblioteca ser preciosa para quem trabalha o período moderno (justamente aquele que estuda) e o relacionamento intercultural com a China: "Nos anos 90, quando eu fiz a minha dissertação de mestrado, não havia em Portugal uma biblioteca que tivesse essa bibliografia (a Biblioteca Nacional tinha algumas coisas, mas não estava atualizada), o que me levou a ir para Paris com uma bolsa de investigação. Hoje, nesta biblioteca do CCCM encontramos documentação preciosa, muita da qual não está sequer disponível nas maiores e melhores bibliotecas online do mundo.".Um dos destaques destes fundos vai naturalmente para os espólios particulares que vão sendo doados ou aqui deixados em depósito. Helena Coelho chama a atenção para um em particular: "O principal espólio que nos foi doado é o de monsenhor Manuel Teixeira, que era um padre, historiador e sinólogo. Era natural de Freixo de Espada à Cinta, foi muito novo para Macau e voltou para Portugal no final da vida. Entregou o seu espólio ao Centro, o que inclui a sua biblioteca e tudo o que ele escreveu, incluindo obra publicada e manuscritos." Os vários volumes da sua obra Macau e a Sua Diocese, editados pela Agência Geral do Ultramar, estarão em breve disponíveis na biblioteca online do CCCM, para cuja constituição veio a ser decisivo o apoio da Fundação Jorge Álvares, que permitiu a aquisição do software necessário para o efeito. A este espólio juntaram-se outros, como os do professor Graça de Abreu, que ainda está por tratar, do advogado Francisco Gonçalves Pereira (este em depósito) ou do arquiteto Manuel Vicente. Helena Coelho não esconde a ambição de vir a receber em breve um espólio que decerto traria ao CCCM muitos investigadores nacionais e estrangeiros: "Com o apoio da Fundação Jorge Álvares, temos a expectativa de instalar aqui o arquivo do último governador de Macau, general Rocha Vieira. Seria um enriquecimento muito grande para a nossa instituição.".Ao todo, o catálogo da biblioteca tem cerca de 27 mil registos, que, segundo Helena Coelho, "correspondem a mais de 100 mil documentos" com as mais diversas proveniências, desde o Leal Senado ao Arquivo Histórico Ultramarino, passando pela diocese (livros de assento de batismo, por exemplo) ou Santa Casa da Misericórdia. Também existe um vasto espólio de documentos microfilmados vindos do Arquivo de Goa, Vaticano, Países Baixos ou Espanha, todos relacionados com Macau, e muitas fotografias em diapositivos. Helena Coelho destaca, pelo seu valor documental, a coleção de Jorge Veiga Alves e Margarida Branco, fotógrafos amadores que trabalharam em Macau nos anos 80. Em breve poderemos vê-la também na biblioteca online..A importância mundial deste fundo é realçado também pela muito entusiasta presidente da Fundação Jorge Álvares, Maria Celeste Hagatong, que no site da instituição escreve: "A valia das publicações e demais espólio depositados nesta biblioteca, que agora será posto à disposição do público nestas novas instalações, em especial de investigadores nacionais e estrangeiros ligados a estudos asiáticos, é reconhecida a nível nacional e internacional." Ao DN, confidencia que gostaria muito que, em breve, se juntassem aos espólios já doados ou depositados outros capazes de reforçar ainda mais a relevância histórica desta biblioteca..A direção do CCCM (desde 2020 assumida por Carmen Amado Mendes) aposta ainda em ligar-se a várias redes de investigação nacionais e estrangeiras relacionadas com estudos asiáticos. Para que isso aconteça, tem vindo a realizar as chamadas "Conferências da Primavera", para mostrar o que se faz em Portugal sobre relações Europa/Ásia e sobre estudos asiáticos, promovendo o contacto entre instituições e centros de estudos que estejam a desenvolver projetos nas áreas da história moderna e contemporânea ou das relações internacionais. Para complementar este trabalho também disponibiliza no seu site (www.cccm.gov.pt) uma listagem dos investigadores portugueses envolvidos nestes temas, com os respetivos contactos. Ainda em desenvolvimento está o Portuguese Asian Digital Archives Network - PADAN, que pretende ser um portal agregador de documentação existente em várias instituições portuguesas..Não se pense, porém, que o CCCM se destina apenas a um público universitário. Aqui também se disponibilizam cursos livres como os de Língua e Cultura Chinesa ou os que se debruçam sobre o passado e presente de Macau, e, em matéria de edições de livros, foram recentemente lançadas três coleções novas: Línguas e Culturas, Estudos Históricos e Estudos Contemporâneos (recorde-se que o centro tem edições próprias a partir de 2006)..Uma visita ao CCCM não fica completa sem uma passagem atenta pelo seu museu, onde é possível encontrar um acervo de mais de três mil peças, incluindo uma importante coleção de porcelanas e terracotas chinesas de épocas profusas, mas também pratas, leques, biombos, gravuras, mapas e objetos relacionados com aspetos tão diversos como o consumo de ópio. Para além de uma reconstituição da antiga Nau do Trato (ou "O Grande Navio de Amacau", como lhe chama o historiador Charles Boxer), navio de três ou quatro cobertas, que ligava Malaca à China e ao Japão, para o altamente rentável comércio de produtos de luxo, como tapetes persas, ou a melhor seda chinesa, pagos, na chegada a Nagasaki, com prata japonesa..Embora tenha sido criado, como o próprio CCCM, no final do século XX, há novidades. Para além da preparação de um novo catálogo do museu, está a ser formado um circuito asiático de Lisboa, que se propõe pôr em rede todas as instituições museológicas da cidade com coleções relevantes para o conhecimento do Extremo Oriente: Sociedade de Geografia, Museu do Oriente, Museu da Farmácia, Casa-Museu Medeiros e Almeida, Museu de Marinha, Museu Nacional de Arte Antiga e Fundação Calouste Gulbenkian..dnot@dn.pt