Viajar ao passado na cadeira do barbeiro
Há dez anos, Bruno Oliveira decidiu pegar numa barbearia centenária em Alfama e torná-la sua. Ao invés de a modernizar, decidiu recuperar e reafirmar a história de um espaço com mais de 100 anos - mais precisamente desde 1879. Um trabalho quase de arqueólogo.
Não só reavivou o aspeto da barbearia de outros tempos, mas também o método. Ali, ainda hoje se corta o cabelo à antiga, de maneira clássica, à navalha - se assim o cliente o desejar. Mas não só. Os barbeiros têm formação e estão preparados para fazerem cortes mais modernos, à vontade do freguês, claro está.
Bruno Oliveira decidiu apostar na sua paixão de sempre que até aí estava cingida a cortar cabelos e aparar barbas a amigos, família e colegas do seu anterior trabalho como funcionário da Câmara Municipal de Lisboa. Tudo aconteceu ainda antes da moda dos barbeiro vintage pulularem por todas as esquinas das cidades. "Na altura quase não existiam barbearias, cortava-se o cabelo em centros comerciais, onde aliás era proibido usar navalhas", recorda.
Encontramos Bruno na sua loja do Rossio, mais concretamente ao lado da igreja de São Domingos, junto ao largo com o mesmo nome que tem o poder invisível de ali levar gentes de várias geografias, credos e estatutos sociais. Desde os taxistas fora dos seus carros a falar a voz alta das últimas da bola e da política aos doutores engravatados que entram e saem da Ordem dos Advogados ali mesmo perto, ou ainda aqueles que logo a meio da manhã pedem uma ginjinha "com ou sem elas" para aquecer o resto do dia.
Num espaço contíguo com paredes de madeira escurecida pelo tempo, caras jovens, de máscara, alinham a preceito cabelo e barba de clientes de várias idades. Tesouras a cortar, navalhas a escanhoar e toalhas quentes molhadas para acalmar o rosto dos clientes após o corte são ações repetidas como um ritual coreografado que certamente seriam familiares a quem frequentava aquele espaço há cem anos.
Bruno conta-nos, com a voz abafada pela máscara e o seu cabelo meticulosamente desalinhado, que esta foi a segunda loja, depois da de Alfama, a entrar para o universo das Barbearias Oliveira, há cerca de seis anos. "Costumava vir aqui falar com o antigo dono", recorda.
O dono era o senhor Cassiano que por ali andou até aos 87 anos a cortar cabelos e barbas a várias gerações, "esteve aqui basicamente até morrer", diz Bruno.
A confirmação destes factos veio de uma cadeira próxima de nós. Ao ouvir a conversa, um cliente acabado de ser atendido diz em voz alta: "Tenho 51 anos e venho cá desde os 5, era o meu pai que me trazia para o senhor Cassiano cortar o cabelo".
A loja do Rossio é de 1920 quando foi pedido um registo à Câmara de Lisboa para se tornar barbearia - na parede está lá, emoldurado, o documento oficial, junto a lâminas e tesouras de outrora e uma coleção de notas que os clientes vão deixando.
"Aqui tudo é antigo e original de outras décadas, não é como nos "novos" barbeiros que compram réplicas modernas a parecer vintage", diz Bruno com orgulho.
Não só por isso, mas esta é uma loja peculiar que atrai as atenções de quem passa - portugueses ou não. Ali há também uma manicura de homens, ou havia, não fosse a pandemia de covid-19. A Dona Porcina - que o proprietário nos mostra numa foto colada na parede - fez esse trabalho em várias barbearias da cidade durante 50 anos, deixou de trabalhar recentemente, aos 84 anos, para se proteger da pandemia.
"Quando ela aqui estava contava-nos inúmeras histórias. Ela conheceu gente muito importante. Aliás, foi a própria a entregar flores à equipa do Benfica nas duas vezes que o clube de Lisboa foi campeão europeu na década de 1960", indica.
A loja tem ainda um primeiro andar, local onde se jogava à batota até às tantas, escondido dos olhares da maioria dos clientes. Foi também por lá que Bruno descobriu um recipiente com pedra de potássio para desinfetar, fabricada na loja. "Infelizmente nunca pedi a receita ao senhor Cassiano."
E a juntar às barbearias de Alfama e do Rossio há quatro anos instalaram-se também no bairro da Lapa, numa loja inaugurada em 1962. "É das barbearias mais bonitas que já vi, e olhe que conheço muitas em todo o mundo", conta Bruno Oliveira. O processo foi o mesmo: recuperar o espaço como antigamente.
Com esse negócio veio o senhor Batista que há quase 50 anos por ali fez barba e cabelo a muitas gerações. O verbo é dito no passado porque depois de se ter retirado do dia-a-dia da loja por causa da pandemia, o senhor Batista morreu faz pouco tempo com um problema de saúde, aos 88 anos, conta Bruno com os olhos a brilhar
E com estes testemunhos, de quem lida com uma clientela que vai dos 8 aos 80, não há forma de evitar o assunto da pandemia. O dono das barbearias conta que a covid-19 tem feito mossa. "Aqui na loja do Rossio, por exemplo, perdemos cerca de 70% da faturação, mas mantivemos todos os postos de trabalho."
Explica que tanto nesta como na barbearia de Alfama a grande maioria dos clientes eram turistas. Atualmente, e com a pandemia e os raros turistas a visitar a cidade, são mais os portugueses a frequentar as barbearias. "Aqui no Rossio vão desde os poucos habitantes da zona a clientes que vêm cá de propósito, aos trabalhadores dos restaurantes aqui à volta ou mesmo os funcionários da Ordem dos Advogados que tem sede aqui perto." Para ajudar os clientes mais idosos, que se resguardam em casa por causa da covid, Bruno e a equipa têm feito serviços ao domicílio. "É uma verdadeira alegria para eles, ficam mais alegres." Ainda sobre o impacto da pandemia, Oliveira reconhece que é um tipo de negócio que não sofre tanto como outros e resiliência parece ser a palavra de ordem: "As nossas barbearias já aguentaram a gripe espanhola, portanto vamos aguentar esta."
Entre o barulho de secadores e bocas clubísticas entre os clientes, Bruno Oliveira aproveita para falar do trabalho social e comunitário que tem feito com os sem-abrigo da cidade - que recebe nas suas barbearias para lhes cortar cabelo e barba.
Conta a história de Ricardo, um desses casos. Bruno encontrou-o na rua e convidou-o a cortar o cabelo e a ser ajudado. "Mal cortou o cabelo ficou logo outro. É uma pessoa que há uns anos veio dos Açores à procura de uma vida melhor mas não correu bem. Estivemos uns tempos sem saber dele, mas um dia entrou aqui na barbearia e contou-nos que hoje trabalha, tem carro, tem namorada, tem casa. Uma coisa brutal! Contudo, e apesar de o foco no presente serem os projetos sociais, não nega que pode haver mais barbearias Oliveira espalhadas pelas zonas históricas da capital.
Mesmo a terminar a conversa ainda há tempo para nos dizer que também há mulheres que vêm cortar o cabelo nas suas barbearias. "São sobretudo senhoras idosas com cabelo curto que aqui vêm cortar. E gostam muito. Tratamos toda a gente bem. Do primeiro-ministro ao cidadão mais simples."
E todas estas linhas poderiam resumir-se de uma forma muito simples: era uma vez um funcionário público que tinha o sonho de cortar cabelo e ter uma barbearia como antigamente. Hoje não tem uma mas sim três, espalhadas por Lisboa, e todas elas com muitas histórias que atravessam gerações para contar e ouvir enquanto se está no "baeta". Todas elas com história, numa cidade que também se faz de memórias.