O governo, sucessivamente, exerce uma cosmética sobre a verdade, nos mais diferentes assuntos e aos mais diferentes níveis. Facilmente, encontram-se exemplos de omissões, versões enviesadas e invenções sobre factos em diversas áreas de governação. Por exemplo, ficaremos por saber o que correu mal com a festa do Sporting, porque é que, quando a Alemanha e a França fechavam a porta aos ingleses, nós a abríamos, as duas faces de um governo que se abstém na União Europeia sobre a lei húngara de censura aos temas LGBTI. Venho lembrar algumas verdades inconvenientes, concretamente, na área do património cultural..No passado dia 7 de junho, na presença do Presidente da República, o primeiro-ministro, a ministra da Cultura e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa inauguraram a obra da ala poente do Palácio Nacional da Ajuda e a instalação do Museu do Tesouro Real. A obra foi apresentada como um glorioso e exclusivo feito da governação socialista nacional, em articulação com a governação socialista de Lisboa. Mas não é assim..A invenção do passado é coisa que os regimes totalitários procuram promover. Infelizmente, cada vez mais, a democracia que vivemos é mais frágil (com estudos internacionais a demonstrar a queda de Portugal no ranking das democracias desenvolvidas). Esta situação é impulsionada por atitudes governamentais com muitas cumplicidades (silêncios) na sociedade portuguesa, num país mais habituado, na sua história, ao autoritarismo do que à força da sociedade civil..Vamos, então, aos factos..Em 2013, perante a situação de ruína da ala poente do Palácio Nacional da Ajuda, e enquanto membro do XIX Governo Constitucional com a tutela da Cultura, tomei a decisão de avançar com a obra de conclusão da mesma. Discuti com a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) se devia, meramente, fazer uma fachada falsa, que retirasse o ar de ruína instalado há mais de dois séculos, ou se se devia, efetivamente, construir a fachada do edificado. A minha decisão, sufragada pelo governo, foi convidar um arquiteto qualificado da estrutura da Direção-Geral do Património Cultural para construir a nova fachada - o arquiteto João Carlos Santos, que tinha liderado, com sucesso, a requalificação do Mosteiro de Tibães, e que tinha um anteprojeto para o fecho da ala poente do Palácio da Ajuda. Foi uma decisão discutível, depois dos muitos projetos ao longo de dois séculos de indecisões ou decisões sem continuidade. Colocava-se a eventual oportunidade de abrir um concurso de ideias e posterior concurso público. Mas a decisão tomada foi uma opção célere e económica para o Estado - o arquiteto em causa (agora, diretor-geral) é funcionário da DGPC - e o seu trabalho é reconhecido. Ganhou-se anos em procedimentos, poupou-se em concursos e projetos. Decidi também, sempre respaldado pelo governo, instalar nessa ala poente o Museu do Tesouro Real, e alocar os 4,4 milhões de euros remanescentes do seguro das joias da coroa portuguesa roubadas na Holanda em 2003. Destas decisões dão conta notícias e reportagens dos jornais nacionais de 2014 e de 2015. Dos respetivos despachos, que proferi à data, naturalmente, há registos no Ministério da Cultura e na DGPC..Contactei, em 2015, com a Câmara Municipal de Lisboa - com Fernando Medina como presidente, e com a CCDR de Lisboa e Vale do Tejo - com João Teixeira como presidente, para encontrar o financiamento para o valor remanescente da obra, que, à data, se afigurava abaixo dos 20 milhões de euros. Começaram os procedimentos formais para o desenvolvimento do projeto de arquitetura..O XXI Governo, de António Costa, decidiu - e bem - continuar o trabalho iniciado. Mas se a decisão estava tomada, o arquiteto escolhido, o conteúdo da ala poente - a instalação das joias da coroa - decidido, a alocação de 4,4 milhões do seguro das joias roubadas feita, os contactos para fechar o desenho financeiro da operação efetuados, como pode dizer-se, em verdade, que foi o governo socialista que tomou a iniciativa de fazer esta obra como foi dito por António Costa na inauguração?.Em democracia, há um dever institucional de verdade por parte dos poderes públicos. E, em democracia, como é natural, há alternância. Por isso, as coisas não começam e não acabam, normalmente, no mandato de um único governo. E nada diminui um governo que conclui um projeto, reconhecer quem tomou a iniciativa do mesmo..Se os governos falham o dever institucional da verdade, é natural que os cidadãos, cada vez mais, estejam descrentes do que os políticos dizem - sabem que, em geral, não se pode confiar nas suas declarações. Assim, omitir o percurso das decisões públicas, contar só parte da verdade ou até, como neste caso, inventar uma nova "verdade", contribui de forma ativa para a erosão da autoridade do Estado e da democracia..Falo com à-vontade. O novo Museu Nacional dos Coches foi inaugurado em maio de 2015, no meu mandato governativo. Fizemos questão de convidar os governantes anteriores envolvidos, durante anos, no processo, e no meu discurso inaugural fiz questão de os referir. E foi uma verdadeira inauguração - no dia a seguir à inauguração, o edifício abriu ao público. Não como esta "inauguração" do passado dia 7 de junho da ala poente do Palácio Nacional da Ajuda - é que o espaço só abre ao público, pasme-se, em novembro!.Quanto à solução encontrada para financiar esta obra, tenho muitas dúvidas. Ir buscar dinheiro às taxas turísticas de Lisboa para financiar a fatia maioritária das obras de um palácio nacional é matéria que nos deve fazer refletir sobre as competências do Estado e das autarquias na reabilitação do património nacional..E que seja um governo dito socialista que não retira do Orçamento do Estado dinheiro para financiar uma obra eminentemente estatal causa alguma perplexidade sobre a opção tomada..Também a solução de gestão encontrada está sujeita a interrogação: é a Associação de Turismo de Lisboa que vai gerir o Museu do Tesouro Real? Não devia a sua gestão ser da responsabilidade da equipa museológica do Palácio Nacional da Ajuda? Como não se conhece - e devia conhecer-se - os termos do protocolo assinado sobre esta matéria pelo governo e pela Associação de Turismo de Lisboa, não sabemos bem o que se está a passar numa matéria que é relevante para o interesse público..Mas este caso - a invenção da exclusividade socialista sobre a obra de remate do Palácio Nacional da Ajuda - não é único..Só para dar outro exemplo, foi também no tempo em que estive no governo que se decidiu e fez a alocação da verba para a reabilitação dos carrilhões de Mafra. Mas fez-se mais: decidiu-se dar estatuto de museu nacional ao Museu da Música e decidiu-se a sua transferência para o Palácio Nacional de Mafra. Para esse efeito, celebrou-se um protocolo entre o governo e a Câmara Municipal de Mafra que libertou uma área do palácio para a instalação do museu. E também com a câmara, criou-se um espaço para um arquivo nacional de partituras de bandas filarmónicas, associado ao museu. Mas se tais acordos se fizeram com a câmara, em momento algum nos ocorreu pedir à câmara que financiasse a obra!.Quando, em fevereiro de 2020, se inaugurou o restauro dos carrilhões, pois - e bem - a governação socialista deu continuidade ao trabalho iniciado, a ministra da Cultura, no discurso inaugural, fez questão de ignorar, completamente, a história..E assim, convenientemente, vai Portugal..Comissário de Oeiras 2027 e ex-secretário de Estado da Cultura