Yves Leonard: "Ventura é suficientemente inteligente para não recorrer à nostalgia salazarista, tirando quando dá jeito"
Portugal foi fundado há quase 900 anos, mas no seu livro História da Nação Portuguesa desenvolve a tese de que a nação portuguesa só se desenvolveu e consolidou bem mais tarde. Pode explicar melhor?
Diz-se muitas vezes que Portugal é o mais antigo Estado-Nação da Europa. Mas a tese que eu tentei mostrar foi que a Nação no sentido moderno do termo, esse princípio que faz com que em determinado território, com fronteiras estáveis, um sentimento político bastante claro, uma cultura e uma língua comuns, surja um sentimento de pertencer a algo que nos ultrapassa, em Portugal forma-se apenas no século XIX. O que é ao mesmo tempo paradoxal e interessante no caso português é a sua grande antiguidade, ou seja, existe um Estado, existe um reino, que se constituiu muito cedo, no século XII, XIII, e que se forma num território que vai muito rapidamente encontrar a sua estabilidade. E isso, à escala europeia, é muito raro. É a primeira singularidade. A segunda é que Portugal é, certamente na Europa, o país onde a ligação com o ultramar, com a dimensão da expansão marítima, é mais pronunciada. França não tem nada que se pareça. Fala-se num Estado-Nação em França, mas este não se constrói, ou só muito tardiamente, sobre a projeção ultramarina. O mesmo para os restantes países - mesmo a nação britânica não pode ser definida através do império. Portanto isto é algo de muito singular porque temos em Portugal um território europeu, continental, retangular, que se vai dilatar à escala mundial. E para construir um sentimento de pertença depressa se coloca a questão da diáspora, ou seja, dessa população que já não vive no território continental, complicada no caso português pelos decretos de expulsão a partir do século XV. Há uma certa narrativa nacional que se constrói no século XIX e que Salazar e o Estado Novo vão levar ao extremo: a Nação. Mas o que é a Nação? Os cristãos novos são expulsos pelos decretos de D. Manuel. É importante compreender isto, porque esta diáspora vai construir-se também sobre essa entidade judaica, vemos isso no Brasil, na Índia. É interessante integrar esta questão na narrativa nacional. Para concluir o meu raciocínio, o que é importante mostrar, para a construção moderna de nação, é o papel da Revolução Francesa, é com ela que se fala pela primeira vez de soberania da nação. É muito importante porque a partir desse momento as elites, sobretudo as elites liberais, com a revolução de 1820 no Porto, vão apoderar-se do tema da soberania nacional. E vão fazê-lo com esse sentimento de pertença a algo maior. As guerras napoleónicas, como um pouco por toda a Europa, vão reforçar esse sentimento nacional. É a nação em armas, com a ajuda dos ingleses, claro. É interessante mostrar a história com a leitura que durante muito tempo se impôs em Portugal, uma leitura que classifico como providencialista, essencialista. Foi esta leitura à qual Salazar e o seu regime deram relevo. Não podemos dizer que a nação portuguesa começou em 1820, com a revolução liberal, há antecedentes, mas é uma construção muito complexa. Portugal tem a língua que é uma vantagem que os outros países não têm e que é unitária, desde D. Dinis. Isso é algo muito importante, que conta na construção da Nação. Tudo isto faz lembrar o discurso que existia nos anos 1930, de que a nação portuguesa nascera 800 anos antes, como dizia Salazar.
E continuamos a dizer mais ou menos o mesmo hoje.
Dizemos o mesmo hoje, mas é um pouco mais complexo do que isso. Em França tivemos um debate, há uns anos sobre se podemos falar numa nação francesa na Idade Média. Temos tendência para olhar para estes períodos históricos com olhos atuais. Mas para um contemporâneo de Joana d"Arc, em França, ou de D. Afonso Henriques, ou de D. João I, em Portugal, o que é que faz com que a população tenha o sentimento de pertencer a um todo que a ultrapassa, se não a obrigação de servir o seu rei?
É esse sentimento de pertença a algo que nos ultrapassa que o Yves afirma só surgir no século XIX?
Sim. Com as guerras napoleónicas, com a revolução liberal de 1820, com o sentimento de desapropriação com a perda do Brasil, que é considerável para as elites. Como um pouco por toda a Europa assistimos à fabricação da consciência nacional. E um dos pontos é a língua, mas neste caso há uma anterioridade de Portugal. Percebe-se que para justificar a sua existência, é preciso dizer que se é muito antigo.
Olhando para essa ideia de antiguidade, Camões escreveu Os Lusíadas, ainda hoje usamos "luso" como sinónimo de português. Mas se, como escreve no seu livro, "nem a Lusitânia, nem os lusitanos deram nome a Portugal", porquê manter esta ideia de sermos descendentes dos lusitanos e o fascínio por Viriato como herói nacional?
Mais uma vez isto reenvia para a narrativa nacional. Camões nunca chamou ao seu livro Os Portugueses, escreveu Os Lusíadas. E porque o fez? Tem a ver com certas referências. E como mais tarde fizeram dele o poeta nacional, fixou essa ideia na consciência das elites e, por extensão, numa parte da população. Depois para os portugueses os lusitanos são um pouco como os "nossos antepassados gauleses" em França. Aqui também é uma construção, não existiu verdadeiramente. Vercingétorix, tal como Viriato, nunca teve o papel que lhe foi atribuído. Mas ambos resistiram ao invasor. E isso, claro, é algo mobilizador e que é muito cómodo de ser usado numa narrativa heróica do passado. Quem era Viriato? Onde é que vivia exatamente? Não importa. O que importa é que tenhamos um herói puramente português, puramente lusitano. É uma construção da narrativa nacional bastante precoce, que também se encontra noutros países europeus. Mas não é História. Essa, no sentido moderno, só aparece no século XIX. Homens como Alexandre Herculano perceberam que não podiam fazer História como se fazia até aí. Vão querer sair do providencialismo, consultar arquivos, encontrar fontes e não contar uma coisa só porque passou de geração em geração.
Uma das diferenças em Portugal é que pode perguntar a qualquer português, ninguém tem dúvidas que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal.
É a realidade. Foi ele que fundou o reino de Portugal.
Sim, é a realidade, mas se perguntar a um espanhol, a resposta não é linear, ou mesmo a um francês também não.
Sim, quando é que começa a França? Quem foi o primeiro rei? Hugues Capet, o rei dos capetos? Clovis, o rei dos Francos? Carlos Magno? Aqui também se trata de narrativa nacional e esta construiu-se sobre a ideia de que França nasce, de certa forma, com a coroação de Hugues Capet, o primeiro capeto. Mas a coração de Clovis também tem os seus adeptos, é complicado. Mas no caso de Portugal não há dúvidas, nasce com D. Afonso Henriques, antes era outra coisa.
Não termos dúvidas sobre o nosso primeiro rei ajuda a explicar a ideia que os portugueses têm de sermos diferentes, de termos há muitos séculos essa unidade geográfica, étnica, religiosa, linguística, etc?
Sem dúvida. Mas haveria desde o início uma consciência coletiva popular? Na sociedade da época, os nobres seguiam o seu senhor, mas o que pensava o conjunto da população? Já tinha o sentimento de ser portuguesa? Não sabemos. Mas há grande probabilidade que não quisesse saber. Em França temos uma expressão muito utilizada até finais do século XIX que é o país das "pequenas pátrias", a ancoragem a nível local, com as pessoas a regerem-se dentro de um perímetro muito pequeno. Porque as comunicações eram difíceis, as deslocações demoradas. O rei podia estar em Guimarães, Lisboa, Viseu, etc, as pessoas humildes não faziam ideia, nem queriam saber. Quando Salazar em 1940 comemorou oito séculos da fundação de Portugal e três séculos da restauração da independência foi fácil. Deu um sonho ao povo - com a ideia de que Portugal não é um país pequeno, mas sobretudo é um país com uma longa história. E isso os seus amigos franceses, espanhóis ou italianos não podiam dizer.
O hino português começa com "Heróis do Mar, Nobre Povo", saudando a expansão marítima. A ideia que ainda hoje temos em Portugal de que o nosso império foi diferente dos outros, misturámo-nos muito mais com as populações locais do que os ingleses ou os holandeses, é verdade, sim, muito também é o resultado da propaganda salazarista?
As duas coisas. Portugal, além da interação entre o retângulo europeu e a expansão marítima, tinha uma base demográfica muito pequena. E era preciso estar presente em todo o lado. Mas mais tarde a crença que se desenvolveu e que no século XX ganhou o nome de lusotropicalismo já é algo extremamente pernicioso, porque é uma deformação da realidade. Gilberto Freyre inventou esta ideia com base em alguns casos específicos. É uma leitura muito cómoda, que lisonjeia o ethos português. Mas houve sociólogos, etc que vieram tentar dar-lhe uma base científica. E ainda hoje muita gente está convencida que a colonização portuguesa foi diferente, que foi muito mais suave e que passa por um certo respeito e mestiçagem com as populações colonizadas. É o problema dos pontos escuros da História. Durante muito tempo falou-se muito pouco do tráfico de escravos e da escravatura, que para uma colonização "suave" é difícil de explicar. Eram assuntos de que não se falava no Estado Novo.
Hoje começa a haver um debate sobre essas questões.
Sim, está a surgir porque há uma onda de choque na Europa. Estive recentemente na Bélgica e o debate está a aquecer, nos Países Baixos também. Em Portugal tem-se varrido o lixo para debaixo do tapete. Hoje já não é tanto assim, mas ainda é preciso muito trabalho. Eu não fiz um exercício de desconstrução, mas simplesmente um exercício histórico que permita refletir sobre o passado com o maior rigor. É importante não deformar esse sentimento nacional, porque algumas pessoas podem usá-lo para idealizar esta construção como o regime de Salazar fez.
O regime salazarista foi muito eficaz a recuperar figuras como D. Afonso Henriques ou o infante D. Henrique, mas também a assumir essa ideia de Nação - "tudo pela nação, nada contra a nação". Um passado imperial era ainda mais importante para um homem como Salazar que raramente saiu do país?
Salazar tinha uma visão construída por um conhecimento enviesado da História. As crenças coloniais, o mito civilizacional, era a sua forma de criar o tal sentimento de pertença a algo que nos ultrapassa. E funcionou, porque lisonjeava o senso-comum. Somos pequenos mas somos antigos, somos pequenos mas estamos presentes em todo o lado. Tudo isto era um discurso de propaganda, que não se traduziu em atos no terreno. Até aos anos 1950, não se enviou muita gente para as colónias, não há muito investimento. Só com o colonialismo tardio há um investimento. E a visão de Salazar foi dizer que esta era uma estratégia de sobrevivência - se perder as colónias, Portugal desaparece.
A verdade é que Salazar não investiu em Portugal, não investiu na educação. 50 anos depois do 25 de Abril ainda andamos a pagar o preço por esses erros?
A Revolução dos Cravos, pela rapidez da rutura que representou, foi uma mudança radical de paradigma. O Portugal salazarista via-se como nação una. E depois de séculos a falar no esplendor de Portugal, foi preciso encontrar um substituto. O espaço compensatório foi a Europa. Quanto ao regime salazarista, passou ao lado de muita coisa, a começar pela liberdade pública, mas também escolhas económicas e geopolíticas. Mas a lógica de Salazar era intocável. Logo, só um golpe de Estado, só uma revolução como o 25 de Abril, podiam derrubar isso.
Escreveu uma biografia de Salazar, agora editada em Portugal, ficou a ideia que muitos têm que era um ditador diferente de Mussolini, Hitler ou Franco?
Há um fundo comum, todos se veem como os salvadores, que encarnam uma forma de ascetismo pelo bem da nação. Mas o que diferencia Salazar é ser um homem das Finanças, mas sobretudo um académico. Ele próprio considera-se muito mais inteligente do que os colegas. A outra diferença é ser um ditador que dura. Morre na cama e o regime sobrevive-lhe. O outro caso parecido, mas com diferenças, foi Franco. Os outros acabam mal. Ainda hoje o seu tropismo, católico, tradicionalista, inspira. Na América do Sul, em países da Europa central, oriental, do Norte, o modelo salazarista é muito forte. Salazar reproduzia esquemas de pensamento frequentes na época, mas não usava uniforme, não montava a cavalo, e quando discursava não era muito bom. Mas era um sábio, um doutor e as pessoas respeitavam-no.
Durante muito tempo, os portugueses acharam que a memória desta longa ditadura os protegia da extrema-direita. Mas com o Chega percebemos que era apenas uma questão de tempo?
O 25 de Abril criou uma barreira e a vaga começou mais tarde mas vem aí. E aqui é importante a história da nação, porque a narrativa da nação valente pode ser apropriada por algumas forças da extrema-direita. André Ventura é suficientemente inteligente para não recorrer à nostalgia salazarista, vai demarcar-se, tirando quando dá jeito assumir algumas das suas ideias.
Neste momento estão em (pré) campanha para as legislativas de março em Portugal, um dos temas em cima da mesa tem sido o das contas certas, tão caras a Salazar. Esse é um legado que todos parecem aceitar, da esquerda à direita?
Foi uma temática que Salazar usou muito, que encarnou. Mas o que muitas vezes nos esquecemos é que Salazar deixou prosperar a corrupção - o clientelismo, as boas contas fazem os bons amigos, as pequenas vantagens, um emprego, uma casa para um amigo, etc. A diferença é que Salazar não enriquece, nisso é muito diferente de Franco. Mas esta pode ser uma ideia destrutiva, com as operações mãos limpas e o aproveitamento que daí pode ser feito pela extrema-direita.
Fez a biografia de Salazar, se pudesse escolher outro português para biografar, quem escolheria?
É difícil! Há uns tempos fiz uma fotobiografia de Mário Soares, na coleção dos museus da presidência, mas não a vou retomar. Talvez me interessasse por uma figura do século XIX, na fronteira entre o mundo intelectual e a política. Almeida Garrett ou assim. A certa altura pensei em fazer uma biografia de Eusébio, porque é uma personalidade interessante. E como tenho outra paixão que é a volta a França em bicicleta, gostaria de fazer uma biografia de Joaquim Agostinho, que era muito, muito conhecido em França e que morreu de forma dramática após uma queda na volta ao Algarve. Penso que é um herói desconhecido.