Ventinhas: "Afastar pessoas do DCIAP é o suficiente para descarrilarem algumas investigações"
Nestes últimos dias, depois de o sindicato ter anunciado uma greve de magistrados para fevereiro contra as possíveis alterações ao Conselho Superior do Ministério Público, houve várias vozes que se levantaram, nomeadamente a do líder do PSD, Rui Rio, mas também a do presidente da Assembleia da República e a do presidente da bancada do PS, a acusar a estrutura que lidera de pressão sobre o Parlamento. É isso que pretende?
Bem, em primeiro lugar o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é um sindicato. Se não temos um sindicato que reivindica alterações legislativas, mais vale ser extinto, porque as funções de todos os sindicatos são, precisamente, que haja uma transformação da sociedade e dos setores onde se inserem. Iremos pugnar para que o Estatuto do Ministério Público seja o melhor possível para o Ministério Público, para a justiça portuguesa e para a democracia. Aliás, seria estranho é que o sindicato estivesse calado num momento tão importante para a definição do regime democrático e do sistema de justiça, isso é que seria muito estranho.
O facto de ter sido anunciada a greve para fevereiro, ainda sem haver uma decisão ou um movimento do Parlamento no sentido da alteração da composição do conselho, não é uma pressão injustificada?
Mas foi anunciado...
O que há é uma proposta do PSD.
Não, não, a proposta é dos dois, foi dos dois, PSD e PS.
O deputado socialista Jorge Lacão abriu a possibilidade de poder rever a composição do conselho, mas não disse que há um entendimento formal entre PS e PSD...
Gostava de saber qual é que é a posição do PS acerca disso, do grupo parlamentar.
A própria ministra da Justiça já disse que é um "não assunto". O PS também já veio dizer, pela voz de Carlos César, que não vai haver nenhuma alteração e o primeiro-ministro também já o assegurou...
Disseram que não haverá alterações no sentido de haver maioria ou que não vai haver nenhuma alteração?
As palavras de todos foram no sentido de rejeitar qualquer alteração à composição do Conselho Superior do Ministério Público...
Não foi isso que disse o Dr. Jorge Lacão, por duas vezes já.
Mas Jorge Lacão é apenas um deputado do PS.
Mas foi a pessoa que representou o PS no debate na Assembleia da República. Ou seja, no momento formal, onde vale. As pronúncias valem é nos sítios certos. Se uma testemunha disser algo aí no meio da rua e chegar à sala de audiências e contar uma história diferente, a história que vale é a história que disse na sala de audiências, não é a história que disse fora. Por exemplo, na Lei de Organização do Sistema Judiciário, já contei esta história várias vezes, foi-nos dito por várias vezes e em várias ocasiões que seria aprovado um determinado diploma. Mesmo no dia da votação, o PS, contra a proposta do governo, aprovou uma proposta do PSD que contrariou acordos com o Ministério da Justiça. Só no dia da votação é que se soube, ou seja, quando já tinha sido assumido e nos transmitiram que ia ser ao contrário. O processo de discussão estatutária dura há cinco ou seis anos e nunca tinha sido discutido na Assembleia da República, portanto passaram cinco ou seis anos em discussões, primeiro com a Paula Teixeira da Cruz, depois o processo caiu. Começou agora com este ministério, há dois anos e tal, um processo de discussão, múltiplas reuniões, múltiplas alterações do texto. E há um dia em que chega a discussão solene à Assembleia da República e a pessoa que representa o grupo parlamentar do PS e que sobe à tribuna disse o que disse.
Jorge Lacão admitiu foi a hipótese de discutir esse assunto, não formalizou nenhuma proposta.
Disse que assumia uma posição que era controversa e que admite discutir equiparar o Conselho Superior do Ministério Público ao Conselho Superior da Magistratura, mas são duas estruturas diferentes. A ministra da Justiça deu-nos várias garantias de que essa questão não iria ser discutida, não iria ser uma questão na revisão, porque o governo não apoiava essa situação e que o PS apoia a proposta do governo. E o que é que o Partido Socialista diz? Que vai ser discutida a questão.
A greve é então uma medida profilática?
Não é uma medida profilática, o que nós tivemos foi uma negociação que durou dois anos com o Ministério da Justiça e o PS diz que vai discutir todos os pontos do estatuto. Ou seja, não temos garantia de que fique pedra sobre pedra de tudo o que nós acordámos com o governo. Aliás, o Dr. Jorge Lacão disse-o, ainda nesta semana, e disse que estava acompanhado pelas posições do grupo parlamentar do PS. Portanto, das duas, uma: ou o Dr. Jorge Lacão anda à revelia e tem de ser punido pelo grupo parlamentar pelo que anda a dizer, ou então há aqui qualquer coisa que está muito mal.
O que é preciso para que não haja greve dos magistrados? O PS fazer uma declaração formal no Parlamento contra as alterações ao conselho?
A senhora. ministra disse-nos que existia consonância entre o governo e o grupo parlamentar do PS. Claro que cada um tem o seu âmbito de visão, mas que existe convergência de opiniões, o que é normal, sendo o partido que apoia o governo. No dia 12 de janeiro temos uma assembleia de delegados sindicais, para estabelecer, desde logo, os termos da greve, as condições da greve, e em que também iremos pronunciar-nos novamente sobre esta matéria e, por isso, reservo-me para essa altura.
Mas o facto de o próprio Presidente da República ter dito publicamente que vetaria o estatuto se ele tivesse essas alterações não chega como garantia?
Há aqui dois planos e é importante clarificar esses dois planos: um plano é a questão do conselho, e que é a questão mais emblemática; mas a questão do conselho corporiza outra coisa, que existe uma visão diferente, substancialmente diferente, em pontos-chave entre o grupo parlamentar do PS e o governo, e em consonância até em algumas com o PSD. Aliás, o facto de termos tido a senhora ministra da Justiça a promover um acordo com o PSD mostra que há aqui uma aproximação. E, sabemos, não poderei adiantar, que provavelmente também irão estar de acordo relativamente a outros pontos do estatuto. Para que serviram estes dois anos de negociação com o governo?
E já conversou novamente com a ministra da Justiça sobre isto?
Já.
E teve as mesmas garantias que tinha tido antes?
Sim! Mas isto não vai acabar por aqui. Já percebemos que o grupo parlamentar do PS tem uma agenda própria e que fez, no comunicado, questão de dizer que não vai sair daquela agenda que "não abdicará de discutir".
Mas porque é que há tanta relutância em mexer na composição do Conselho Superior do Ministério Público? O sindicato diz que a "independência" do órgão poderá estar em causa e o combate à corrupção. Mas não é ao conselho que estão adstritos os processos.
Não, não estão. Mas discute-se muito quem é que irá ser o próximo diretor de DCIAP. Quem é que escolhe o diretor do DCIAP? O Conselho Superior do Ministério Público. Discute-se, por exemplo, quem é que irá ser o diretor do DIAP distrital de Lisboa. Quem é que escolhe? O Conselho Superior do Ministério Público. Discute-se quem é que serão os procuradores coordenadores de comarca. Quem escolhe? O Conselho Superior do Ministério Público. Mas isso vai mais longe, porque o Conselho Superior do Ministério Público vai ao ponto de escolher, nominalmente, as pessoas que integram o DCIAP, por exemplo. Se o Dr. Rosário Teixeira for lá para renovar a comissão, o Conselho Superior do Ministério Público pode dizer que não, tem poder para isso.
Mas se nesse equilíbrio de membros do conselho, entre magistrados e não magistrados forem escolhidas pessoas com credibilidade, fora dos partidos, isso põe em causa o funcionamento do MP?
Vou dar-lhe um exemplo, basta que não se renove a comissão de serviço a algumas das pessoas com maior know-how do DCIAP, basta afastá-las, que é o suficiente para descarrilarem algumas investigações. Não é indiferente termos o Dr. Rosário Teixeira a investigar este tipo de criminalidade ou termos um procurador que não é especializado a fazê-lo. Ou seja, a escolha da pessoa e a possibilidade de renovação ou não da comissão de serviço depende do Conselho Superior do Ministério Público.
E porque é que esse problema, já agora, não acontece no Conselho Superior da Magistratura, que já pode ter maioria de não juízes?
Há diferença na forma de colocação dos magistrados. Gosto de dar exemplos diretos para se perceber mais facilmente aquilo que estou a dizer. Há um concurso, abre vaga para o Tribunal Central de Investigação Criminal, vulgo "Ticão". O Dr. Carlos Alexandre concorreu, era a pessoa que tinha uma boa nota e mais antiguidade, ocupou o lugar e o Dr. Ivo Rosa a mesma coisa. Como é que se ocupam os cargos no DCIAP? É através de comissão de serviço do Conselho Superior do Ministério Público, ou seja, este nome é escolhido nominalmente. É esta a diferença de designação para cargos, tribunais e departamentos. Um é por concurso direto, global, qualquer pessoa concorre; o outro é por escolha direta, nominal, através do conselho. Portanto, o poder de intromissão e de escolha do Conselho Superior do Ministério Público é muito superior. Mas também noutra situação: por exemplo, os procuradores-gerais distritais são escolhidos também pelo Conselho Superior do Ministério Público, o equivalente dos juízes é o presidente do Tribunal da Relação, em que o presidente é escolhido entre os pares. Nem sequer existe intervenção de qualquer político, nem de qualquer membro estranho à magistratura, enquanto por nós é escolhido pelo Conselho Superior do Ministério Público. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça é escolhido entre os pares do Supremo Tribunal de Justiça, mas o procurador-geral da República é um processo de nomeação política. A forma como se chega a determinados lugares-chave, na magistratura judicial e no Ministério Público, é completamente diferente. E como a fórmula de escolha dos lugares-chave do Ministério Público passa toda pelo Conselho Superior do Ministério Público, se houver um controlo político do conselho controla-se a forma de acesso a todos os lugares-chave do MP.
Há perigo de politização do conselho?
Exatamente. Aliás, existiria um controlo da investigação por via do conselho. Além disso, o Estado português, no âmbito do GRECO, das suas avaliações, tem recebido recomendações para alterar a composição do Conselho Superior da Magistratura. Não compreendemos que, quando temos entidades internacionais a fazer recomendações ao Estado português, se queira fazer o movimento oposto. E o GRECO é a entidade que, digamos, faz as avaliações das medidas legislativas eficazes no combate à corrupção. Não se compreende que se queira divergir dos standards internacionais.
Mas o sindicato decidiu impugnar o movimento de magistrados para 2019, alegando falta de "transparência" do conselho. Isso não é contraditório?
Não.
Não?
Entendemos que muitas das decisões, muitos dos critérios não são devidamente fundamentados e não são conhecidos pelos seus destinatários e, portanto, decidimos impugná-lo. O perigo ainda seria muito maior se houvesse uma maioria política.
Há falta de transparência?
Há e não se conhecem as decisões, se tivéssemos uma maior contaminação política, então aí seria complicadíssimo.
Mas neste movimento de magistrados será plausível explicar todas as mudanças que são feitas?
Há determinadas decisões em que não se percebe qual é a lógica, qual foi o critério. Vamos impugnar o movimento porque entendemos que não estão fundamentadas as razões por que se tomaram aquelas decisões, porque é que se distinguiram determinados lugares de comarcas, porque é que se preencheram determinados lugares e não se preencheram outros, determinados lugares apareceram como efetivos e outros como auxiliares quando estavam nas mesmas situações, porque é que se escolheram determinadas pessoas para os DIAP distritais e não outras...
A anterior procuradora, Joana Marques Vidal, estava a fazer um bom trabalho no Ministério Público? Devia ter continuado?
A Dra. Joana Marques Vidal fez um trabalho extremamente positivo à frente do Ministério Público. Mas entendemos que todos os procuradores só devem cumprir um mandato. A Dra. Joana Marques Vidal e a Dra. Lucília Gago, que está a começar, também entendemos que ela só deve cumprir um mandato, independentemente do mandato que faça.
Está à espera de alguma mudança na condução do Ministério Público, por parte de Lucília Gago?
Há sempre espaço para melhorar. Designadamente ao nível do Conselho Superior do Ministério Público há muito para melhorar.
A que nível?
Começando logo pelo movimento de magistrados.
O Ministério Público tem tido as ferramentas necessárias e adequadas ao combate à corrupção?
Não tem tido o número suficiente de magistrados, nem tem tido os meios suficientes. Na corrupção em geral basta olharmos para a Polícia Judiciária e vermos que está completamente depauperada. Chegou-se a um estado em que nem o Ministério Público nem a Polícia Judiciária têm recursos humanos suficientes.
O que falta em recursos humanos e materiais?
Em termos de recursos humanos, neste momento faltam cerca de 200 magistrados no Ministério Público. Depois há determinadas questões que são transversais, começando logo pelo facto de os órgãos de polícia criminal, muitas vezes, não conseguirem dar a resposta.
Mas é por esse motivo que os processos se arrastam durante tanto tempo?
Há causas que não são imputáveis a nível nacional, há causas que resultam intrinsecamente dos próprios processos, ou seja, há megaprocessos que não se podem concluir rapidamente
Os mais mediáticos?
Mais mediáticos e mais complicados, a criminalidade económico-financeira, etc. Esses não conseguem cumprir-se num curto espaço de tempo, depois os que envolvem cooperação judiciária internacional não estão dependentes única e exclusivamente dos timings nacionais. Por exemplo, se um processo que vai para a Suíça suscitar uma quebra de sigilo bancário e demorarem nove meses a um ano a transmitirem-nos as informações, como é evidente o processo não pode estar concluído em seis meses. Mas há outros casos que têm causas internas. Temos alguns processos emblemáticos, que estiveram parados na Polícia Judiciária mais de um ano pelo facto de os inspetores não conseguirem dar resposta.
Não teme que nos grandes casos, que se espera que venham a começar a ser julgados no próximo ano, como a Operação Marquês e todos os ligados ao BES, por serem muito mediatizados, haja contaminação nos julgamentos?
A justiça está a adaptar-se a esta ligação com os media, aos poucos. Isso é um processo que vai demorar algum tempo até se conseguir. Por exemplo, basta lembrar que há alguns anos a Procuradoria-Geral nem gabinete de imprensa tinha. Fala-se também de que eventualmente os tribunais, algumas comarcas, poderão ter também assessores de imprensa. Mas isto é um processo que é gradual, tradicionalmente a comunicação social tinha uma abordagem diferente aos processos. Hoje, sobre os grandes processos há muitos programas e a justiça, que não ia a estes patamares de figuras tão importantes, vê a sua mediatização aumentar.
É um desafio para a justiça o facto de figuras tão relevantes como José Sócrates se verem envolvidas em processos? Não há mais cautelas no modo como são geridos e isso faz que se arrastem?
O problema é que grande parte dos processos ligados à criminalidade económico-financeira, com elevado número de arguidos, que têm necessariamente uma dinâmica, são mais longos do que os outros.
Na opinião pública fica a ideia de que há estes grandes processos mas, até ao momento, não há julgamentos, não há pessoas condenadas...
Temos já vários processos com pessoas condenadas, designadamente temos vários com ministros condenados. Agora a questão do trânsito em julgado e quando é que o processo está definitivamente acabado, isso é outra questão, porque depois há todo o sistema de recursos e também a própria questão do Tribunal Constitucional, que está a funcionar também como uma quarta instância de recurso.
O que diz é que há várias instâncias que vão prolongando o processo...
Exatamente, exatamente.
O último é o processo Face Oculta, o de Armando Vara?
Por isso é que estou a dizer que afirmar que não há pessoas condenadas não é bem assim. Basta ver Duarte Lima, Armando Vara, Isaltino Morais e Oliveira Costa, são quatro ministros, foram condenados, agora transitados em julgado e a cumprir penas, isso é outra questão.
A violação do segredo de justiça continua a ser um grande problema para a justiça portuguesa?
Continua.
E não há maneira nenhuma de o solucionar?
Não sei, acho que isto tem de ter uma solução, mas não é uma solução fácil. O Dr. Rui Rio apresentou-se como a pessoa que queria acabar com a violação do segredo de justiça. Disse que a violação do segredo de justiça é grave, é muito grave, fez um documento em que escreveu: "A situação do segredo de justiça é grave, isto é muito grave, isto é gravíssimo, urge acabar com o segredo de justiça", esta foi a proposta...
Ou seja, só depende do próprio sistema de justiça autorregular-se?
Envolve várias componentes: desde a segurança, os sistemas informáticos e o controlo de acesso às informações, desde a própria forma, digamos, do circuito dos processos, porque os processos passam por muita gente, que é um dos problemas. Bom seria o cumprimento das regras, basicamente.
Quais são os grandes "irritantes" - para utilizar uma expressão que esteve muito em voga por causa do processo com Angola - entre a justiça e a política?
Há alguns "irritantes", designadamente na discussão de alguns diplomas essenciais. Para quem está no setor da justiça é algo complicado de perceber, muitas vezes, a forma como se chega a determinadas decisões e alterações que surgem à última hora. Um exemplo muito simples: quando foi o processo Casa Pia houve uma alteração muito relevante sobre o "crime continuado" que permitia que, por exemplo, em vez de um arguido ser condenado por cem crimes poderia passar a ser condenado por dois ou três crimes continuados. Foi uma alteração legislativa que se fez na altura. Isso deu um grande brado na comunicação social e perguntou-se quem é que tinha sido o autor da proposta e ninguém sabia. Ou, por exemplo, em alguns processos legislativos em que tivemos acordos com determinadas pessoas e em que nos foram transmitidas determinadas situações e em que depois, quando chega a altura da discussão no Parlamento, todos os acordos são incumpridos e consagradas soluções precisamente inversas. Portanto, é claro que isso gera um clima de desconfiança entre quem trabalha na justiça, designadamente no sindicato, em termos negociais, e quem está a negociar. A base da negociação tem de ser a confiança e a previsibilidade das decisões. E o que nós percebemos, muitas das vezes, é que esses dois fatores são colocados em causa constantemente, o que leva, desde logo, a que se crie um clima de desconfiança entre o setor judicial e a área política. Porque, se não há o cumprimento daquilo que se diz, as posições assumidas vão mudando de um dia para o outro. Um "irritante" grande é em todos os processos de revisão estatutária os magistrados sentiram-se enganados: porque tudo aquilo que foi acordado com eles foi sempre desvirtuado no Parlamento à última hora.