Há cerca de 25 anos, uma mulher procurou a ajuda do médico António Vaz Carneiro, depois de dois anos a ser seguida por um homeopata devido a uma lesão na mama. "Quando veio ter comigo, já não a consegui salvar. Morreu meses depois com cancro da mama", recorda o diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE). Se tivesse procurado um médico quando detetou o problema, o investigador acredita que a mulher - engenheira, de 30 anos, mãe de três crianças - não teria morrido devido ao cancro. "Este caso marcou-me profundamente. E uma parte significativa dos médicos tem casos destes", diz ao DN o especialista em Medicina Interna, Nefrologia e Farmacologia Clínica..Mais de duas décadas depois continuam a surgir denúncias de mortes de doentes relacionadas com o uso de terapêuticas não convencionais. Joaquim Bosch, oncologista espanhol, foi um dos médicos que em 2018 revelou ter recebido uma mulher no Hospital Universitário Dr. Josep Trueta, em Girona, com uma mama "totalmente podre" devido a um cancro bastante agressivo, que estaria a ser tratado com produtos homeopáticos. Um entre vários casos tornados públicos, que levaram a que o governo espanhol solicitasse a Bruxelas a alteração das leis relativas a esta terapia alternativa, nomeadamente no que diz respeito à utilização do termo "medicina homeopática". Mas o pedido foi negado em dezembro do ano passado..Fundada há 240 anos por Samuel Hahnemann, a homeopatia continua a ser um assunto bastante controverso. Há quem defenda que é eficaz e que se dá bem com a toma destes produtos, mas, para a comunidade científica, a homeopatia não passa de uma pseudoterapia, ou seja, de um potencial tratamento para doenças ou sintomas de doenças cuja eficácia nunca foi demonstrada cientificamente. É, aliás, uma das pseudoterapias visadas pela declaração conjunta da Ordem dos Médicos de Portugal e o Consejo General de Colegios Oficiales de Médicos de España. Emitido no final de janeiro, o documento apela à exclusão destas alternativas do sistema de saúde e dos consultórios médicos e solicita aos representantes políticos leis "para combater tanto as pseudoterapias e as pseudociências como os atos ou movimentos que as promovam, e que salvaguardem a saúde pública e a segurança dos doentes"..Quase 350 mil caixas vendidas.De acordo com os dados do Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, em 2018 foram vendidas 347 778 caixas de medicamentos homeopáticos em Portugal, um número ligeiramente superior ao de 2017, em que foram comercializadas 343 672 embalagens. Nos últimos nove anos, 2010 foi o ano em que as vendas foram mais baixas (73 600) e 2015 foi aquele em que atingiram o valor mais elevado (372 611). Analisando o período entre 2010 e 2018, as vendas aumentaram quase 500%.."Se essas quase 350 mil caixas corresponderem a 350 mil doentes, o que não deve ser verdade, espero que nenhum tenha uma doença grave. Mas algum vai ter de certeza. Estes números mostram que perto de cem mil pessoas estão a tomar medicamentos homeopáticos no país. É preocupante", diz Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos. Mas há países onde o consumo é muito superior. Em Espanha, por exemplo, é estimado que dois milhões de pessoas comprem este tipo de produtos. Destacando que há milhares de casos graves conhecidos, o médico urologista do Centro Hospitalar São João (CHSJ) revela que também já recebeu "doentes com cancro que andavam a fazer terapêuticas não convencionais"..A vantagem da homeopatia é "não ter efeitos laterais, porque não tem praticamente nenhum princípio ativo", razão pela qualtambém não é conhecida a sua interferência com outros fármacos. Trata-se, segundo o médico, de uma molécula que é reduzida inúmeras vezes. "É, se possível, reduzir a sua concentração um milhão de vezes." Desta forma, sublinha Miguel Guimarães, não tem qualquer eficácia. "A eficácia da homeopatia é igual à de um placebo. Se der um comprimido de farinha a um doente, ele pode até melhorar de um determinado sintoma, mas é um comprimido de farinha", explica..O grande problema, alerta o bastonário, é o atraso no diagnóstico de doenças graves. "Se um doente vai ter com um homeopata e faz um tratamento homeopático sem um diagnóstico adequado, pode andar a tratar com esses produtos um cancro da próstata, da mama ou outro. Quando chega ao médico, pode já ser tarde para um tratamento curativo", refere. Além disso, pode fazer que haja uma rejeição dos medicamentos convencionais, da medicina baseada na evidência..É como dar "copos de água" às pessoas.Há alguns anos, os investigadores Carlos Fiolhais e David Marçal tomaram uma caixa inteira de um medicamento homeopático à frente de uma plateia para provar que a homeopatia não funciona. Não lhes aconteceu nada. Ao DN, António Vaz Carneiro explica que, devido à diluição que é feita, "a possibilidade de ter uma única molécula inicial da planta [nestes medicamentos] é tão remota, tão remota que dizemos que, rigorosamente falando, não existe lá nada". É, segundo o professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, como "dar copos de água" às pessoas..O que leva as pessoas a optar pela homeopatia em detrimento da medicina convencional? "A desilusão com alguma experiência na medicina tradicional: as coisas arrastaram-se, não viram o problema resolvido, houve uma alteração da relação médico-utente. Nesses casos, há uma tendência para ir ter com um terapeuta que lhe presta mais atenção, que tem mais tempo para ouvir a pessoa", exemplifica António Vaz Carneiro..Outra explicação é o efeito placebo: "E a pessoa tem razões para recomendar aquela intervenção, até porque não teve efeitos adversos." Além disso, diz o especialista, "existe a crença de que a ciência explica apenas uma parte do fenómeno da doença". E há, ainda, a perceção de que é natural. "E o natural parece mais desejável do que o químico.".Segundo o diretor do CEMBE, a grande maioria das pessoas recorrem à homeopatia para situações como depressão, ansiedade, constipações, dores. "Não quando têm um cancro do pâncreas ou um enfarte. Algumas até irão, mas a maioria vai por coisas menos graves." Considera, no entanto, que a solução não passa por atacar quem o faz. "Devemos informar os doentes e a sociedade. É uma obrigação ética. Em 2018, não é razoável reclamar a eficácia de uma intervenção sem dados científicos.".Não há profissionais credenciados em Portugal.Desde a publicação da Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, que o acesso às profissões das terapêuticas não convencionais (TNC) depende da titularidade do grau de licenciado numa das áreas das TNC. Segundo a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), este é obtido na sequência de um ciclo de estudos compatível com os requisitos fixados, para cada uma, por portaria dos membros do governo responsáveis pelas áreas da saúde e do ensino superior. Mas, no caso da homeopatia, não foi até agora emitida qualquer cédula profissional..Contactada pelo DN, a ACSS remete para o referido artigo, segundo o qual, não tendo sido publicado o ciclo de estudos para a área desta TNC, "não estão reunidos os requisitos legais para submissão/avaliação de pedidos de atribuição de cédulas para o exercício profissional na área da homeopatia"..Até ao momento, a Ordem dos Médicos não recebeu qualquer reclamação relacionada com esta TNC. Na opinião de Miguel Guimarães, será muito difícil a homeopatia vir a ter regulação: "Como é que se regula algo que não tem evidência científica? É muito complicado." Nem sequer se poderá falar em ilegalidades. "Isso aplica-se às profissões reguladas. Relativamente às outras áreas, como não está claro, fazem o que querem.".Já Carvalho Neto, presidente da Associação Portuguesa de Homeopatia e Energologia, considera que está a ser feito um boicote a esta terapêutica: "A homeopatia continua uma espinha difícil de engolir para os senhores da indústria farmacêutica que são patronos da classe médica como é sabido e, como tal, está boicotada." Em causa, explica, está o facto de o medicamento homeopático ser "da natureza, fácil de fazer, quase gratuito e de a indústria nunca o poder usar como registado em exclusivo"..De acordo com o homeopata, existem no mercado cerca de três mil medicamentos homeopáticos, dos quais 1211 são substâncias únicas e os restantes são complexos homeopáticos, ou seja, misturas. Relativamente às acusações de falta de eficácia, Carvalho Neto diz que são "meros preconceitos". Segundo o mesmo, esta terapêutica baseia-se no princípio do "semelhante cura semelhante": "A substância que na natureza é capaz de provocar determinados sintomas, como o inchaço (edema) provocado pela picada da abelha, que é tratado pelo mesmo veneno da abelha, preparado homeopaticamente [diluído] - o designado Apis, medicamento homeopático que em pouco tempo repõe a saúde ou o estado alterado.".Ordem pede medidas.Em janeiro, o Presidente da República vetou o diploma do governo que procede ao reconhecimento de interesse público da Escola Superior de Terapêuticas não Convencionais, invocando falta de validade científica comprovada. Um atitude aplaudida pela Ordem dos Médicos, que pede mais intervenção do Estado nesta matéria. "O que o Estado deve fazer é criar regras claras nesta área e uma comissão para combater publicidade enganosa. Tem de existir um controlo maior dos produtos usados para a saúde", propõe o bastonário Miguel Guimarães..Vaz Carneiro diz que não existem estudos nesta área, porque ninguém tem interesse em que sejam realizados. "Os defensores das terapêuticas não convencionais têm muito medo que se demonstre que não funcionem", refere. Por outro lado, não há vontade de comparar "intervenções ativas do cancro da mama com copos de água". "Esta é uma situação muito delicada, aborrecida e potencialmente conflituosa, porque não temos nem teremos evidências de boa qualidade", afirma o professor catedrático..De acordo com a informação disponível no site do Infarmed, basta "um processo de registo simplificado para os medicamentos homeopáticos serem introduzidos no mercado sem indicações terapêuticas e sob forma farmacêutica e dosagem que não apresentem riscos para o doente". Se quiserem que contenham alegações terapêuticas, "devem obedecer aos ensaios tóxico-farmacológicos e clínicos" dos restantes medicamentos para uso humano..Em 2015, um estudo feito pelo Conselho Nacional de Pesquisa Médica e de Saúde australiano publicou o resultado de um estudo, no qual concluiu que a homeopatia não é eficaz no tratamento de nenhum problema de saúde.