Vasco Pulido Valente. Polémico, impiedoso, cáustico e sempre às avessas

Historiador maior do século XIX e da Primeira República. Comentador indispensável dos últimos 45 anos da vida política. Morreu Vasco Pulido Valente, o mais antigo cronista da imprensa portuguesa.
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Não faltaram esta sexta-feira qualificativos para Vasco Pulido Valente - ele que era um mestre na matéria. Só à sua conta, Marcelo Rebelo de Sousa - que o cronista considerava um Presidente apenas "divertido" e "implausível - usou "estrangeirado", "pessimista", "desalinhado", "cáustico", "génio analítico que não poupava ninguém" e dono de uma "impiedosa independência crítica". Mas um dos adjetivos que Vasco Pulido Valente mais apreciou veio daquele de num primeiro tempo zombou mas de quem depois se tornou amigo, até à morte.

"Telhudo." Era assim que Mário Soares o adjetivava, quando, no início de 1985, o convidou para o ajudar na sua campanha presidencial. A campanha para a qual o fundador do PS partiu com 8% e em que acabou eleito Presidente da República, vencendo por escassos 140 mil votos o rosto da direita, Diogo Freitas do Amaral. "Telhudo" porque nessa altura, em 1985, Vasco Pulido Valente ocupava-se sobretudo a escrever no DN, sobre Soares, "coisas celeradas e pérfidas, com o objetivo confesso de o remover de primeiro-ministro".

"Coisas celeradas e pérfidas" foi o que Vasco Pulido Valente escreveu a vida toda - e de toda a gente, sem distinções à esquerda ou à direita, pessoas vivas ou mortas, nos jornais, na rádio, nas televisões, em livros. O historiador, cronista e (muito ocasionalmente) político no ativo morreu ontem, aos 78 anos de idade. Estava internado num hospital. Será cremado segunda-feira no Centro Funerário de Alcabideche, em Cascais - onde amanhã estará, a partir das 19.00, em câmara ardente.

A colaboração com Soares nas presidenciais de 1986 - que descreveria, num ensaio inesquecível intitulado "Uma aventura com o Dr. Mário Soares" e publicado em novembro de 1991 na revista Kapa - foi apenas um dos passos surpreendentes num ativismo político que começou no início da década de 1960 como estudante de Filosofia (a sua licenciatura) na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Logo aí circularia de companhias maoistas para os católicos progressistas - e seria com estes, n'O Tempo e o Modo, ao lado de personalidades como Alçada Baptista ou João Bénard da Costa, que se iniciaria na escrita publicada.

Cinco anos antes de aceitar colaborar na surpreendente vitória presidencial de Soares, tinha sido um dos artífices de uma certa normalização da direita, em 1979, construindo ao lado de Sá Carneiro (de quem seria secretário de Estado adjunto e da Cultura) a Aliança Democrática, coligação do PSD com o CDS e o PPM que governaria Portugal de 1979 a 1983. E, por último, dez anos depois de ajudar Soares a chegar a Belém, surpreenderia novamente ao aceitar ser candidato pelo PSD, a convite do então líder, Fernando Nogueira (o primeiro líder do partido pós-Cavaco). Tudo experiências curtas - sendo que da última notoriamente se arrependeu.

Vasco Pulido Valente nasceu Vasco Correia Guedes, em Lisboa, em 1941, filho de um casal da elite comunista. Não gostando do apelido, vindo do pai, adotou o da mãe, Maria Helena Pulido Valente, como pseudónimo literário, que nunca mais abandonaria. Em 1995, foi zombado por companheiros da bancada do PSD quando pediu por escrito ao presidente da Assembleia para ser identificado como "Vasco Pulido Valente" e não pelo seu verdadeiro nome. Foi um dos pretextos para deixar rapidamente o Parlamento, ao fim de apenas quatro meses como deputado.

Como cronista passou pelo Expresso, pelo DN, pelo Tempo e ultimamente escrevia no Público, tendo também passado pelo Observador. Também colaborou na TSF e na TVI - mas sempre considerou que nem a rádio nem a televisão eram o seu meio. Cinéfilo atento e adepto dos clássicos norte-americanos - John Ford, por exemplo - também foi argumentista ou coargumentista de alguns clássicos da produção cinematográfica nacional: O Cerco, de António da Cunha Telles, em 1970; Aqui d'El Rei!, de António-Pedro Vasconcelos, em 1992; e, em 2002, de O Delfim (2002), do amigo Fernando Lopes, com quem passou horas infindas a beber, a fumar e a conversar no seu restaurante favorito de Lisboa, o Gambrinus.

Uma das experiências mais marcantes como cronista foi a que iniciou em 1988. Nessa qualidade, com uma coluna intitulada "Às avessas", foi um dos vários nomes que ajudaram a tornar incontornável um semanário fundado por dois jovens turcos da direita portuguesa, Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso, O Independente. Na fase pós-Portas chegou a ser diretor adjunto do jornal.

Esta sexta-feira, falando à Rádio Renascença, Paulo Portas disse que Vasco Pulido Valente foi "umas das pessoas mais inteligentes", no "sentido mais abstrato e puro da inteligência", que conheceu, além de "um magnifico colunista" que usava o português "de forma primorosa e minuciosa". E foi também "um dos melhores historiadores portugueses ou mesmo o melhor historiador do século XIX e de uma grande parte do século XX". O Poder e o Povo é, no entender do antigo líder do CDS-PP "o livro mais luminoso sobre a historia da Primeira República", devia aliás "ser matéria de leitura obrigatória no sistema de ensino". "Foi muito importante a adesão dele ao projeto de O Independente e foi certamente uma das mais carismáticas colunas de opinião em vários órgãos da imprensa."

Nos retratos atuais ou históricos que ao longo de uma vida inteira foi fazendo, Vasco Pulido Valente caracterizou-se por uma escrita limpa, cáustica, profundamente criativa - e pouco ou nada dada a gongorismos académicos. Profundamente influenciado pelo jornalismo britânico, esforçou-se sempre por escrever com a preocupação de ser lido e entendido por muitos mais do que o seu grupo de amigos ou parceiros académicos. Disciplinado e respeitador da organização de uma redação, fazia sempre questão de enviar os seus textos a horas e com a métrica previamente combinada - porque era isso que gostava que fizessem com ele.

Entre 2011 e 2015 admirou a governação de Pedro Passos Coelho, afirmando-o várias vezes. Quanto ao que veio a seguir, reconheceu, em várias entrevistas, não ter tido capacidade para prever que António Costa faria, em 2015, um acordo com o PCP e o BE. É a ele que se deve o epíteto imorredouro dessa solução política: a "geringonça".

Doutorou-se em História em Oxford - e nunca se perdoou a si próprio ter recusado o convite para lá ficar depois do doutoramento. Na literatura a sua referência era Eça - desprezando Saramago ou Lobo Antunes. Casou seis vezes - a primeira das quais com uma musa do Novo Cinema português, Maria Cabral, de quem teve uma filha, Patrícia Cabral Correia Guedes.

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