Foi, durante anos, uma espécie de D. Sebastião do hip hop nacional, do qual muitos consideram o pai, desde que, em 1994, editou o EP PortuKkkal É Um Erro. Foi o primeiro disco desse novo estilo de música urbana, nascida nos bairros periféricos das grandes cidades e totalmente marginal à indústria, tanto na forma como no conteúdo. Nesse autêntico ano zero do hip hop tuga, como mais tarde viria a ser batizado, viram também a luz do dia o primeiro EP dos Da Weasel, More than 30 Motherf*****s e a compilação Rapública, que retratava em disco essa nova realidade sonora, com temas de gente como Boss AC, Zona Dread, Family ou Black Company..General D, no entanto, já ia muito mais à frente, alumiando o caminho a quem vinha atrás. Nascido em 1971 em Moçambique, na antiga cidade de Lourenço Marques, veio para Portugal com apenas 2 anos. Bom aluno e desportista de eleição (chegou a ser recordista regional dos 100 metros), Sérgio Matsinhe ganhou as divisas de general no final dos anos 1980, quando começou a fazer rap com os amigos, em Miratejo. O primeiro álbum em nome próprio, Pé na Tchôn, Karapinha na Céu, surgiu em 1995 e, além de incluir o êxito Black Magic Woman, marca uma viragem na filosofia artística e sonora de General D, mais focada num amplo conceito de africanidade e não tanto em mimetizar os trejeitos do rap americano..Dois anos depois, editava Kanimambo e no final da década de 1990, quando se preparava para gravar aquele que se esperava vir a ser o disco da consagração, com produção a cargo de Sly & Robbie (dupla jamaicana conhecida pelos trabalhos como nomes como Rolling Stones, Santana, U2 ou Sting), General D simplesmente deixou a música e desapareceu do radar. Sabe-se hoje que vagueou pelo mundo: Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, onde acabou por assentar arraiais, "num processo de reaprendizagem", como o próprio confessa nesta entrevista ao DN. Limpou ruas, lavou pratos, passou multas de estacionamento, foi cozinheiro e tem hoje uma empresa de gestão de apartamentos em Lisboa, para onde regressou em 2014, no ano em que pela primeira vez regressou a um palco, para atuar no Festival Mistura. Voltaria novamente no ano passado, para participar no espetáculo dos 20 Anos do Hip Hop Tuga, no qual foi um dos artistas mais aplaudidos. Era, portanto, uma questão de tempo até que voltasse aos discos, o que finalmente acontece na segunda-feira, 28, com o lançamento do single Zombie, que antecede o novo disco, com edição prevista para o próximo ano. Aos 47 anos, General D está finalmente de volta. E desta vez, garante, é para ficar..É unanimemente considerado o pai do hip hop português. Como lida com esse estatuto? De uma forma muito leve, esse é um peso que eu não quero carregar nos ombros, porque isso tira-me a criatividade e a capacidade de errar. Ou melhor, traz-me medo de errar e um dos meus grandes atributos, enquanto artista e enquanto pessoa, é precisamente não ter medo de falhar. Portanto, e além do General, quantos menos títulos eu tiver em cima dos ombros, mais possibilidades tenho de continuar a acertar, a falhar e a crescer..Há quanto tempo voltou a Portugal? Voltei em 2014..Mas manteve-se muito discreto. Sim, o mais possível, mas continuei sempre a trabalhar. No geral, gosto de ser discreto, o que faz que viva numa espécie de paradoxo, porque se por um lado adoro a música e tudo o que tem que ver com ela, por outro sou uma pessoa muito reservada e, quando não tenho nada de novo para mostrar, prefiro estar no meu canto, a trabalhar até que esse momento chegue. E atualmente, além da música, estou também a trabalhar na criação de uma série de infraestruturas que ainda faltam em Portugal. Foi, aliás, por isso que há 20 anos deixei de cantar, por sentir falta dessas infraestruturas..Que infraestruturas são essas? Algo que tivesse a mesma agenda e a mesma linguagem daquilo que eu representava enquanto artista. Isso para mim sempre foi um grande problema, porque para os negros crescerem, enquanto artistas, mas também como comunidade, são necessárias algumas bases estruturais e administrativas e esta parte sempre foi delegada noutras pessoas, que geriam o talento dos negros. A coisa só pode funcionar se os negros também ocuparem o lado administrativo e empresarial, para que todos tenham a mesma agenda. Isso é fundamental em relação à música e é o que estou a procurar fazer na minha nova editora, a Mellow Records. Para já vai editar este meu single e o próximo álbum e, muito possivelmente, no futuro, também outros artistas que se enquadrem nesta filosofia..E que filosofia é essa? No fundo vamos tentar encapsular de uma forma artística o nosso percurso enquanto negros, mas sempre com algo de relevante a dizer..Mas poderá ser um branco, por exemplo, a cantar ou a tocar esse conceito de africanidade? Sim, porque o objetivo da editora não tem nada que ver com a cor da pele, mas sim com uma filosofia artística. Mas já que se fala nisso, e porque não quero parecer ambíguo, faço questão de sublinhar que toda a minha vida tem sido em função de tentar criar essa plataforma para mim próprio, como negro e evidentemente, por arrasto, para toda comunidade negra. E faço-o porque ainda hoje nos faltam determinados instrumentos de sucesso que um branco, por exemplo, que faça hip hop tem apenas por ser branco. Essa é a grande questão e, por muito que se tente pôr paninhos quentes, a realidade está aí para o provar..Como vê o atual estado do hip hop em Portugal? Já acompanhou o passo à comunidade, depois de tanto tempo fora de Portugal? É difícil, porque o passo é muito acelerado e eu passei muito tempo fora. É inegável que o hip hop cresceu imenso em Portugal e vejo isso com muita alegria. No meu tempo era mais fácil identificar alguém que gostava de hip hop. Havia um estilo e até um estigma que de imediato nos fazia perceber. Hoje isso já não acontece, porque o hip hop tornou-se uma cultura mainstream e foi agarrada por todos, também muito devido às redes sociais. Antigamente eram as editoras que ditavam as tendências e a música vinha de cima para baixo. Agora, a coisa acontece ao contrário e há toda uma cultura underground que vive sem precisar dos grandes meios de comunicação, o que é muito bom..O talento mostra-se mais facilmente, é isso? Sem dúvida, pelo menos de uma forma mais direta, sem ter de passar pelos gate keepers de antigamente, como as editoras, os agentes ou os media, que hoje só surgem numa fase mais posterior das carreiras..Se no seu tempo fosse assim teria sido mais fácil? Não sei e nem penso muito nisso. Tive o meu percurso, que foi superimportante, não só para mim como para quem veio a seguir. As coisas acontecem devido às circunstâncias sociais, políticas e económicas de cada tempo e hoje já é outro tempo o que se vive. Nem sequer tento imaginar como teria sido, porque se as circunstâncias fossem outras o General D também seria outra pessoa. Por outro lado, também não me posso queixar, porque tive acesso tudo. Foram as editoras que vieram ter comigo. Mas fui eu, apenas uma pessoa, houve muita gente, igualmente talentosa, que não teve essa oportunidade..Mas concordará que o facto de ter tido esse acesso também terá aberto algumas portas na altura, como hoje se comprova com a popularidade do hip hop? Acredito que sim, porque a partir desse momento as pessoas começaram a acreditar que podia ser possível..Não lhe custou abdicar de tudo isso? Custou-me muito, porque não foi só abdicar da música, foi abdicar de mim próprio. No fundo tive de abdicar daquilo que eu era, em nome daquilo que sou hoje ou até mais de quem pretendo vir a ser. Foi todo um processo de reaprendizagem....E isso implicou deixar por completo a música? Sim, durante todo este tempo deixei por completo a música. Só agora, mais recentemente, é que voltei a fazer música. Apesar de a música me correr nas veias, foi algo que senti necessidade de fazer..Quando vivia em Londres, houve alguns rappers portugueses, como o Valete, que tentaram entrar em contacto consigo e existe toda uma geração de músicos que o têm como uma referência. Nem assim teve vontade de voltar? Em primeiro lugar não fazia ideia disso [risos], porque não sabia nada do que se estava a passar aqui em Portugal..Pensou que tinha sido esquecido? Não pensava sequer nisso. Eu tinha uma missão, que era trabalhar, ganhar dinheiro para a minha família, e estava focado nela, não era saudável para mim pensar que podia estar em Portugal a gravar discos e a dar concertos. Apenas pensava que ainda não era a altura certa para voltar a fazê-lo. A vida é um caminho e não vale a pena estar a olhar para trás nem para a frente enquanto se está em determinado ponto desse caminho. Foi um percurso difícil, mas o que é difícil é bom..Viveu em vários países e nem sempre teve trabalhos fáceis, chegou a varrer ruas nos Estados Unidos. Como é que hoje olha para esse percurso? Essa é a melhor parte. Não compreendo porque é que as pessoas ficam comovidas com isso. Significa que tinha trabalho e todo o trabalho é digno e importante. Ainda hoje limpo apartamentos para poder fazer tudo o resto. O trabalho é a melhor parte, muito mais complicado é não saber onde se vai dormir na noite seguinte, como me aconteceu no Brasil, onde nem sequer dava para trabalhar, porque se ganhava muito pouco. Estive lá cerca de um ano e sobrevivi com as reservas que ainda tinha do meu tempo da música, mas também elas foram acabando e a dada altura tive de procurar emprego. Fiz de tudo um pouco, até multas de estacionamento passei, em Inglaterra, que é o pior emprego que se pode ter nesse país, o mais malvisto e detestado por toda a gente [risos]. Mas para mim era o meu ganha-pão e dava graças a deus todos os dias por ter energia para acordar às cinco da manhã, mesmo não gostando assim tanto desse trabalho. Pelo menos andava ao ar livre, era pior se estivesse trancado num escritório [risos]..E nesses sítios por onde passou, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, nunca teve vontade de fazer música? Nunca se sentiu inspirado pela cultura negra desses locais, que também é tão forte? Vontade tive sempre, não o fazia, mas estava cá, porque é algo que faz parte de mim. Aos poucos, fui disciplinando essa vontade através da escrita. Este novo single, Zombie, tem muitos retalhos desse percurso. E o álbum que pretendo lançar também será muito influenciado por isso..Está definitivamente de volta? Exato, back in business. Estamos a afinar a máquina, a recrutar colaboradores para a editora e muito focados neste single e nos próximos que vamos lançar. Pretendemos fazê-lo com uma certa cadência até à edição do álbum, no próximo ano..Aquele mítico terceiro álbum que começou a ser gravado na Jamaica, com a famosa dupla Sly & Robbie, chegará alguma vez a ver a luz do dia? Foi só um tema, que seria o início de qualquer coisa. Essa música está guardada, nunca foi lançada, mas curiosamente essa jornada à Jamaica teve frutos agora, porque uma das pessoas que me indicaram o Sly & Robbie está a trabalhar comigo. E o facto de ter ido para a Jamaica nessa altura também me abriu muito a consciência e os horizontes, em relação ao que é isto da música negra. A verdade é que está tudo ligado e essa experiência está muito presente naquilo que faço agora..Para quando um regresso também aos palcos? O palco é o que eu mais gosto no meio disto tudo, foi do que mais senti saudades durante todo este tempo. Estar ali, ao vivo, a ter o feedback imediato do público, é o que mais gosto de fazer. Para já ainda não tenho nada planeado e nem sequer houve nenhum convite, mas estou doido para que esse convite surja, porque estou pronto [risos]..Entretanto já fez algumas atuações, no festival Mistura ou no concerto dos 20 Anos do Hip Hop Tuga. O que sentiu nessas alturas? Foi magnífico e superimportante para mim, porque percebi que as pessoas não me tinham esquecido. Aí é que tive a noção dessa importância que me atribuem. Mas foi só mesmo quando subi ao palco, porque até esse momento ainda me questionava se as pessoas se lembravam de mim [risos]. E estar lá em cima e ver tantas caras conhecidas, doutros tempos, algumas já com cabelos e barbas brancas, foi muito bom. Tal como ver tanta gente tão jovem, da idade do meu filho, a cantar as minhas músicas..Além da música, faz o quê? Faço gestão de apartamentos, é esse o meu daily job, que atualmente em Lisboa é algo que me mantém muito ocupado..Gostava de um dia voltar a viver só da música? Adoro este trabalho e para já não penso abandoná-lo. Entretanto também aprendi a cozinhar, sou vegano e pretendo um dia abrir um restaurante vegano aqui em Lisboa. Não pretendo resumir a minha vida à música, porque durante este período em que estive afastado descobri outras personagens e tantas outras vidas dentro de mim, das quais não quero abdicar. Às vezes falta é tempo para vivermos todas essas vidas, mas quanto mais amplos formos, mais plenos nos tornamos enquanto seres humanos.