Valorizar humanidades
É inegável a internacionalização do trabalho académico nos últimos anos. Um dos fenómenos mais notórios é o aumento de portugueses que captam financiamentos europeus competitivos
A tentativa de previsão é uma tarefa sempre arriscada e, para quem se dedica à investigação histórica, um desejo quase contrana-tura. Por isso, mais do que procurar antecipar o que será o ano de 2016, aqui ficam alguns dos meus desejos para o próximo ano, vistos a partir das minhas áreas de interesse.
De uma maneira geral, o problema de fundo com que se debatem hoje em dia os historiadores, o qual se ramifica em mil e uma dificuldades, tem sido a progressiva desvalorização das humanidades. Este problema está diagnosticado há já muitos anos; é complexo, com diferentes causas, e afecta todo o mundo intelectual do Ocidente. Os seus efeitos sentem-se também, como é natural, no nosso país. Talvez pareça pomposo e dramático dizer isto, mas recuperar o valor e a dignidade das humanidades como uma investigação relevante acerca da situação humana é seguramente um dos meus grandes desejos para 2016. Se este desejo pode parecer grandioso, algumas das suas manifestações são simples e muito práticas, e, na parte que me toca directamente, incidem sobretudo no ensino e na educação dos mais novos. Para quem se dedica a tarefas de investigação histórica, e tem a obrigação de formar novas gerações de especialistas, as maiores dificuldades continuam a ser as que decorrem das deficiências do sistema educativo português. Longos anos de escola continuam a gerar, no nosso país, uma profunda indiferença pelo saber e um desejo incipiente de querer fazer novo ou diferente. É frequente encontrar, mesmo entre os mais competentes, alunos universitários portugueses que se encontram mal equipados para a investigação histórica de alto nível e são desprovidos da necessária ambição intelectual. Qualquer melhoria em 2016 neste campo será muito bem-vinda.
Mas não seria justo pintar a situação actual apenas em tons sombrios. Há também algumas indicações positivas. Uma vez mais remetendo-me apenas às minhas áreas, é inegável o aumento da internacionalização do trabalho académico feito no nosso país nos últimos anos. Um dos fenómenos mais notórios e interessantes entre nós tem sido o significativo aumento de portugueses que conseguiram captar os financiamentos europeus mais competitivos e mais exigentes (por exemplo, as famosas bolsas do European Research Council). Só podemos desejar que estes sucessos - que ao mesmo tempo confirmam e apoiam a investigação e produção académica mais inovadora - se intensifiquem durante o ano de 2016. Aliás, considero importante que o esforço que se tem vindo a fazer para estimular a excelência científica e académica, com parâmetros e avaliações internacionais, não esmoreça - mesmo tendo plena consciência de que empenhamentos deste tipo são sempre incómodos e correm o risco de não ser bem compreendidos.
A história da ciência, como todos os estudos históricos, não se caracteriza por avançar por grandes "descobertas" ou saltos "revolucionários". Mas a disciplina continua vibrante e promissora como nas últimas décadas. Os historiadores de ciência iniciaram explorações muito inovadoras com incursões pela antropologia, as artes, o mundo dos artesãos, a cultura material, etc. Abandonaram aquele modo descritivo muito "internalista" e um pouco maçador que via a história científica como uma sucessão de teorias e propunha descrições épicas do desenvolvimento da ciência. Tal como tem sucedido nos últimos anos, o ano de 2016 será certamente servido com importantes novidades. Para os que se interessam pela história científica do nosso país, 2016 é sobretudo um ano de grandes desafios e oportunidades: muitas destas novas linhas de investigação e destes cruzamentos interdisciplinares não foram ainda percorridos no que diz respeito à realidade portuguesa; há uma enorme massa documental de interesse científico que aguarda os historiadores, e há muito património científico que nos últimos anos tem sido identificado e recuperado, e agora se impõe estudar em detalhe (objectos, instrumentos, instituições); existem períodos acerca dos quais sabemos muito pouco (por exemplo, a história intelectual e científica do século XVII no nosso país); há temas em que não se avança há décadas por falta de especialistas (os legados da ciência árabe ou da hebraica; as conexões com as práticas científicas da China). A par das ocupações tradicionais dos historiadores de ciência, como o estudo textual, será pre-ciso intensificar os novos caminhos que se abrem hoje em dia, como por exemplo o emprego de novas tecnologias como auxiliares do trabalho histórico (aquilo que os anglo-saxónicos designam por digital humanities). Desafios e oportunidades: assim será o ano de 2016 para os historiadores de ciência.