A Reforma Agrária de 1975 deixou traumas no Alentejo e no Ribatejo, onde muitos proprietários, apesar do tempo passado, não esquecem as "ocupações" e os trabalhadores e sindicalistas não esquecem a violência das "entregas" pela GNR..Quem viveu no Alentejo os anos 70 e 80, no seio de famílias ligadas à agricultura, pode lembrar-se da história, contada de boca em boca, da ocupação nos arredores de Évora, em que uma mulher, já idosa e acamada, teve de deixar a sua casa de ambulância para entrarem os trabalhadores. .Ou talvez tenha ouvido as memórias de um latifundiário, na zona de Avis, distrito de Portalegre, que respondia "comam erva" a quem lhe dizia que os trabalhadores, nas suas herdades, tinham fome. Ou quem se lembre da morte de dois homens numa entrega de terras em Montemor-o-Novo, em 29 de setembro de 1979. .O processo da Reforma Agrária começou em finais de 1974, com a ocupação do Monte do Outeiro, em Beja, por o patrão ter despedido 12 trabalhadores..De 1975 a 1976, foram criadas cerca de 600 as Unidades Coletivas de Produção (UCP), algumas delas com nomes mais ou menos revolucionários, como "Muralha de Aço" ou "Trabalho e Pão, A Terra a quem a trabalha"..No total, foram ocupados mais de 1,1 milhões de hectares de terra (25% da superfície arável de Portugal, parte delas abandonadas e que os trabalhadores passaram a gerir. .Se a ocupação do Monte do Outeiro teve na origem um conflito, as restantes integraram um processo em que já participaram sindicatos, como Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Beja, com o apoio de partidos, como o PCP, e, nalguns casos, de militares do Movimento das Forças Armadas (MFA), o mesmo que derrubou a ditadura, a 25 de abril de 1974..Se as primeiras ocupações foram "desenquadradas", nos meses seguintes foram legalizadas e a Reforma Agrária ganha, em 1976, direito a ser inscrita na Constituição..As origens deste movimento são, ainda hoje, motivo de controvérsia. .José Soeiro, fundador do sindicato dos trabalhadores agrícolas de Beja, dirigente e deputado do PCP, aponta, no seu livro "Revolução Agrária -- A Revolução no Alentejo" (2013), a miséria dos trabalhadores e o abandono das terras como a causa central..Não foi a ideologia "a força" a determinar a Reforma Agrária, mas sim a "realidade em que os alentejanos nasceram e cresceram", uma ambição acalentada por sucessivas gerações que viveram na miséria, em condições "desumanas e desapossadas dos mais elementares direitos". .Do outro lado da barricada, na tentativa de explicar este movimento, está António Barreto, ministro da Agricultura no I Governo Constitucional, e que teorizou sobre a Reforma Agrária e os seus mitos em "Anatomia de uma Revolução". .Nos anos anteriores à Revolução dos Cravos, na tese de Barreto, o Alentejo não vivia numa situação de miséria nem o desemprego permanente era muito alto e, mais do que as terras -- "a terra a quem a trabalha" -- o objetivo dos trabalhadores era ter salário fixo e durante todo o ano. .No seu período áureo, as herdades da Reforma Agrária chegaram a ocupar, segundo o livro de José Soeiro, 44.000 trabalhadores a tempo e 28 mil tempo parcial, na sua maioria mulheres. .Mas a Reforma Agrária foi um movimento que mobilizou milhares de pessoas em manifestações: 50.000 em Beja, em fevereiro de 1975, aprovaram uma declaração pelo fim do latifúndio. .Como para a memória ficarão os atrelados de tratores ou das camionetas com trabalhadores rurais e as faixas com palavras de ordem pela "terra a quem a trabalha" ou a democratização de direitos e bens..O tempo das vitórias -- "uma das mais belas conquistas de abril", nas palavras de Soeiro -- estava, porém, condenado com o princípio do fim da "Revolução dos Cravos" e a normalização democrática..As ocupações, algumas, continuam, mas a Reforma Agrária vai perdendo fulgor. Os partidos à direita do PS vão ganhando eleições e poder e em 1977 a "Lei Barreto" ajuda a acabar com a revolução alentejana, como lhe chamaram..Começam as "entregas" de terras (acima dos 500 hectares de sequeiro, 50 hectares de regadio) e há episódios de força policial -- a 29 de setembro, em Santiago do Escoural, Montemor-o-Novo, morrem dois trabalhadores tombados pelas balas da GNR. .A revolução foi há mais de 40 anos, mas ainda sobram sentimentos de culpa, semeadas pelos dois lados. .José Soeiro aponta diretamente ao PS e ao seu líder histórico Mário Soares, culpando-os por abrirem "as portas do poder à direita, conduzindo à destruição da reforma agrária". .E calcula que 50 mil postos de trabalho foram destruídos com o fim da Reforma Agrária, obrigando milhares de pessoas à emigração..Entre os proprietários alentejanos que viveram esses tempos ficam ainda algumas mágoas, como comprovam as palavras de Manuel Casadinho, de Beja, que, em 2014, à Lusa: "Quem viveu não esquece."