A Gâmbia tornou-se uma república islâmica há menos de um mês mas já aprovou uma medida revolucionária para um país onde 76% das mulheres terão sido sujeitas a mutilação genital: o regime liderado pelo presidente Yahya Jammeh prevê multas pesadas e até prisão perpétua para quem pratique a excisão feminina. A Gâmbia torna-se, assim, o 27.º país da África subsariana a proibir uma prática que em países como a Somália é praticada em 98% da população feminina. Em Portugal, os dados mais recentes dão conta de 85 mulheres mutiladas a viver no país, mas podem ser mais de cinco mil..A Gâmbia, onde 90% dos cidadãos são muçulmanos, foi declarada uma república islâmica em dezembro, e logo Yahya Jammeh decidiu acabar com a prática da mutilação genital feminina (MGF). Além de penas de prisão e multas pesadas, se a mulher ou rapariga sujeita à prática morrer, a lei prevê prisão perpétua para os envolvidos. Para Madalena Marçal Grilo, diretora executiva do Comité Português para a UNICEF, a lei "é uma componente fundamental dos esforços para eliminar esta prática nefasta, proporcionando instrumentos legais para proteger a integridade física e psicológica das raparigas e das mulheres que a ela se opõem". E, por outro lado, "contribui para contrariar a perceção de que a MGF é "aceitável.".Madalena Marçal Grilo saúda a decisão e vontade política da Gâmbia, mas lembra que não chega legislar para pôr fim à prática. "A implementação adequada da lei é fundamental para que as raparigas em risco sejam devidamente protegidas, bem como o trabalho de sensibilização ao nível das comunidades", sublinha..A Organização Mundial de Saúde define MGF como "todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos ou que provoquem lesões nos mesmos, tendo por base razões culturais ou fins não terapêuticos". Há crianças e mulheres submetidas a cortes totais e parciais do clitóris, dos pequenos e grandes lábios, estreitamentos da vagina e outras práticas, que, em alguns casos, conduzem à morte..Existem diversas razões invocadas para a sua prática. Há argumentos relacionados com saúde, higiene e estética, associados à preservação da virgindade e prevenção da imoralidade, ligados à promoção da fertilidade e ao aumento das possibilidades matrimoniais. "É sobretudo uma questão de desvalorização e descriminação do que é ser criança [ocorre geralmente entre os 4 e os 14 anos] e mulher", destaca Alice Frade, antropóloga e diretora executiva da P&D Factor - Associação para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento. Um dos argumentos que a comunidade muçulmana usa, explica, "é de que a sua prática está no Alcorão. Mas não está. Não está em qualquer livro sagrado". E como o exemplo da Gâmbia vem provar não tem raízes religiosas, abrangendo os vários credos..Em África, está identificada em 28 países. A nível mundial, adianta Alice Frade, em 50. É uma realidade que a imigração trouxe para toda a Europa, nomeadamente para Portugal, destino de muitos imigrantes oriundos de países onde se pratica. No final de setembro, a Plataforma de Dados da Saúde registava 85 casos em Portugal (desde janeiro de 2014). Mas, de acordo com o relatório "Mutilação Genital Feminina: prevalências, dinâmicas socioculturais e recomendações para a sua eliminação", é estimado que sejam mais de cinco mil..Apesar de a excisão ser considerada crime em Portugal, ainda há um longo caminho a percorrer. "Temos legislação, profissionais formados e manuais, mas é preciso investir na educação e no reforço do trabalho com as comunidades praticantes. Temos de apostar na prevenção", destaca Alice Frade. Muitas crianças em risco, salienta, "são cidadãs portuguesas, já nasceram cá"..Aposta na prevenção.Tal como a nível internacional, várias associações portuguesas têm vindo a mobilizar-se contra a MGF, entre as quais a UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta. Neste momento, a associação tem a decorrer o projeto Iá Iá. "Procuramos formar polícias, funcionários das CPCJ, trabalhadores das câmaras municipais, membros de associações e outros grupos", explicou ao DN Catarina Moreira, socióloga e coordenadora de projetos da UMAR. A intervenção é, sobretudo, ao nível da prevenção: "Queremos dotá-los de conhecimentos sobre o tema, para que possam descortinar sinais de alerta e saibam como agir."