A história de Adelaide Coelho só ficou bem contada em livro quando Manuela Gonzaga publicou Doida Não e Não. Antes, Agustina Bessa-Luís escrevera Doidos e Amantes mas, segundo a autora, "é ficção" e os protagonistas não correspondem à verdade: um é homossexual e a outra uma "ignorante lésbica"..A autora conheceu a história de Adelaide Coelho e foi amor à primeira vista: "Conheci-a quando fui entrevistar a Monique Rutler a propósito do seu filme Solo de Violino e logo nessa altura fiquei muito fascinada a pensar 'dava um belo romance"." Mas Manuela Gonzaga explica que era muito jovem, tinha quatro filhos pequenos, trabalhava desalmadamente como jornalista e, acrescenta, "não tinha tempo nem ferramentas para levar um projeto assim em frente. Muitos anos mais tarde, venho a escrever não um romance, mas uma biografia. Foram dois anos de trabalho intenso, de investigação e escrita"..O resultado dessa investigação foi publicado sob o título Doida Não e Não e a reação dos leitores foi entusiástica e de acordo com a história de Adelaide Coelho: "Foi a melhor reação. O livro foi lançado em 2009, esgotou e tornou a esgotar. Nunca deixou de vender. Em 2019, dez anos depois do lançamento, a Bertrand relançou-o, voltou a esgotar e fez nova edição. Já vai em nove. O meu 'romance' é uma biografia pura e dura - com aparato científico e essas coisas. Mas numa linguagem muito acessível, apesar de manter as múltiplas grafias da época.".Porque decidiu escrever este livro Doida não e Não sobre Maria Adelaide Coelho da Cunha? Em meados de 2006, fui ao Palácio de São Vicente fazer um artigo para a revista Máxima e a dona, Clara Ferrão, que já tinha lido alguns livros meus, levou-me à que fora a biblioteca de Maria Adelaide, onde, devidamente catalogados e organizados em pastas, se encontrava um acervo riquíssimo de documentos relativos a este caso. E disse: "Se lhe interessar, pode vir, o tempo que quiser e quando quiser." Abri e folheei uma das pastas, ao acaso, e abismei. Para uma escritora, de mais a mais historiadora, a tentação foi muito grande. Comecei a delinear um projeto de investigação detetivesco para completar a história. Mas, publicado o artigo, duas senhoras do Porto que em muito jovens tinham privado com Maria Adelaide Coelho da Cunha telefonaram para a Máxima e pediram o meu contacto. Tinham estórias, testemunhos, documentos e outras testemunhas, nomeadamente José Manuel Cardoso, sobrinho direito do Manuel Claro que vivera com o casal, para partilhar se eu quisesse. Eu quis..Este é um trabalho que exigia muita investigação. Conseguiu reunir toda a documentação que precisava ou ainda há zonas cinzentas na vida dela? O grosso da documentação - relatórios policiais, relatórios médicos, processos, artigos, cartas, devassas, etc., etc. - foi-me disponibilizada no palácio, onde passei largos meses uma parte dos meus dias, a ler tudo, a anotar tudo, a cotejar várias fontes diversas e a preparar-me. O que foi toda uma outra experiência! Também passei muitas horas na Biblioteca Nacional a ler jornais de época. A Capital, felizmente, está online. Sem falar na história e nas mentalidades de época, cujo conhecimento aprofundei. Também frequentei outros arquivos que continuo a usar, agora no trabalho de doutoramento. Além disso, fui ao Porto conhecer Maria Elisa Cardoso Perez, que me facultou alguns documentos do seu arquivo pessoal. Recordo uma carta do filho de Adelaide para o pai de Maria Elisa, um documento pungente. José Coelho da Cunha destroçado pela morte de Alfredo da Cunha, sabendo que a mãe se encontra algures no Porto, pede ao seu amigo se pode saber como a descobrir... Toda a gente sabia. Manuel Claro, ao sair da prisão, tornou-se taxista. O seu pouso era na Baixa. Maria Elisa, na altura com 15 anos, assistiu à chegada daquela senhora pequenina, de cabelo todo branco, a quem o motorista de táxi abriu a porta - era o Manuel Claro - e cujo filho desceu as escadaria da casa dos seus pais, ao encontro da mãe que não via há tantos anos. A outra senhora, Maria Manuela Pires Delgado Oliveira, conviveu desde criança com Maria Adelaide, a quem considerava "da família", pois, embora Maria Adelaide tivesse saído de casa dos seus avós quatro anos antes de Manuela Delgado nascer, as famílias nunca mais se perderam de vista. Ela recordava-se de ouvir contar, por exemplo, que à época em que a Polícia, instigada pelo Conselho de Família e com ordens dos tribunais, a procurava insistentemente para a devolver ao manicómio, Maria Adelaide vivia escondida no centro do Porto, na Praça Carlos Alberto, n.º 36, "na casa dos meus avós" paternos, Ana Pereira Delgado dos Santos Oliveira e João Evangelista de Oliveira. A dois passos da Cadeia da Relação onde Manuel Claro estava preso! Disfarçada de lavadeira, ela nunca deixou de o visitar. Assim, Maria Adelaide, "que entrou em casa dos meus avós por quatro dias, acabou por ficar lá em casa quatro anos, o tempo em que o Manuel esteve preso. Havia mesmo um armário, uma espécie de guarda-roupa, especialmente preparado para a recolher com comodidade, onde ela se escondia sempre que alguém batia à porta. Finalmente, quando o Manuel saiu da cadeia, ela saiu com ele", disse-me..Nos tempos que correm, de empoderamento feminino, Adelaide Coelho deveria ser um ícone feminista ou não se encaixa nesse perfil? Não a enquadro assim, ou melhor, ela nunca quis ser bandeira de nada nem de ninguém. Ela defendeu, com toda a veemência, o seu direito de amar. A forma como o faz, a dignidade com que o faz e a inteligência como se defende, bem como o modo como a história se desenrola, outorgam-lhe, porém, e no meu entender - face à investigação que levei a cabo -, um pedestal. O seu combate duríssimo pelo direito ao amor é inspirador e comovente..Foi-lhe compreensível o que fez Adelaide Coelho - trocar uma vida (in)satisfeita por uma aventura emocional - ou houve mais do que isso?.Uma pessoa profundamente apaixonada tende a agir de acordo com outras regras que o chamado bom senso não conhece. Acresce que estão ambos em sintonia. O Manuel tanto arriscou que acabou preso durante quatro anos sem culpa formada sequer. Nunca quis um tostão dela. É, também ele, de uma dignidade exemplar. Uma aventura emocional teria sido um escape sem consequências, mas para aqueles dois seres era pouco de menos. O terrível ordálio por que passaram, mantendo-se sempre fiéis aos seus sentimentos, demonstra que, a não ser tão grande, aquele amor não teria resistido..Um romance como o dela não estaria sempre condenado? Ainda me surpreendo como conseguiram vencer tantos obstáculos e serem tão felizes por fim..Acreditaria que o marido a perdoaria? Estou convencida de que ele gostava muito dela, mas só o descobriu tarde de mais. Entretanto, tentou uma solução de compromisso. Os intervenientes nessa mediação eram nomes de peso no nosso país. Cito dois: Leonardo Coimbra e Carolina Michaelis. Mas, para isso, Adelaide teria de admitir que tinha estado louca. E, em consequência, abandonar o Manuel. Posto isto, escolher um lugar confortável, tranquilo e "decente" para viver, com rendimentos à altura da sua condição. A não ser assim, nada teria. Ela nunca aceitou os termos do acordo. Ele nunca aceitou a não aceitação dela..Poderemos considerar que a violência da perseguição de que foi vítima se deveu principalmente a ter fugido com alguém de uma classe mais baixa? Este caso não é uma singularidade. Por muito menos, havia mulheres - naturalmente ricas - no Conde de Ferreira sequestradas a pedido das famílias. Tivemos outro caso muito mediático, no princípio do século, quando uma jovem de 32 anos quis tomar ordens e professar num convento do Porto, o que transtornou de tal forma o seu pai, cônsul honorário do Brasil no Porto, que este a quis interditar -e conseguiu, só não levou o processo adiante. Em todo, sequestrou-a, colocou polícia à porta, e fez-lhe a vida num inferno. Depois voltaram todos para o Brasil. Os jornais da época dão muito eco ao assunto. É um caso muito estudado, sobretudo pela professora Rita Garnel, que já publicou livros e estudos sobre o tema. E tivemos o caso não menos escandaloso, mas rapidamente resolvido, do advogado Dantas da Cunha, que fugiu do Conde de Ferreira mais ou menos na altura em que lá se encontrava Maria Adelaide. Foi de tal forma chocante que, a somar-se a outros, determinou que o assunto fosse ao Parlamento e a lei dos internamentos mudou. No Estado Novo, voltamos a encontrar o mesmo paradigma, só que agora mais virado para os "desvios" da sexualidade ou para os "desvios" políticos. Quanto às senhoras, o paradigma só mudara de roupagem. À falta de conventos, os manicómios serviam muito bem como depósitos de mulheres "malcomportadas". Muita gente até achou que o Alfredo da Cunha era "um santo" porque outro, naquelas circunstâncias, teria matado o "algoz" que lhe roubou a mulher. A violência só se torna mais visível pela resistência e posteriormente pela denúncia púbica que Adelaide opõe ao encarceramento, à forma como foi tratada, e por aí fora..Uma das consequências desse escândalo foi o marido ter vendido o jornal. Seria indispensável? O projeto da venda do Diário de Notícias já estava em agenda, apesar do repúdio total dela. Claro que, a partir do momento em que foi internada, o negócio fez-se sem entraves..Os outros jornais da época aproveitaram o escândalo apenas para vender mais edições ou existia uma intenção de apoucar o diretor do Diário de Notícias e, em consequência, o próprio jornal? Não é de menosprezar nunca o papel da concorrência... E tornou-se muito tentador, do ponto de vista editorial, representar quer um quer outro dos opositores, à cabeça dos quais o próprio Diário de Notícias, por Alfredo da Cunha, e A Capital, por Maria Adelaide Coelho..Como foi a cobertura do Diário de Notícias sobre este caso? Muito grande. Com artigos, anúncios, comentários ao livro que, tendo Alfredo da Cunha como editor, Infelizmente Louca!, faz rapidamente três edições. Entre muitos outros, Júlio Dantas, Bettencourt Rodrigues, Azevedo Neves, presidente da Sociedade das Ciências Médicas, dão a cara pela obra. Egas Moniz e Júlio de Matos referem: "Trata-se de um dramático episódio de loucura lúcida que é o tormento das famílias e uma fonte viva de escandalosos pleitos judiciaes"....Como foi a reação dos leitores ao seu romance? Não cedi ao romance porque já se disse tanta mentira sobre esta senhora e este casal de amantes, que optei pela sobriedade e o rigor de um trabalho historiográfico. Apesar de se ler como estória, fiz questão de que fosse história. Está nalgumas universidades. Desde 2009 que integra os curricula do mestrado em Psicologia na Lusófona. Sou convidada com alguma frequência para palestras - por exemplo, no Instituto Camões em Vigo -, estive por duas vezes no Hospital Conde de Ferreira, em colóquios e no Júlio de Matos. Com o título Lucide Folie, está traduzido em francês, integrando o catálogo da Hachette..Havia quem conhecesse o caso ou foi uma surpresa para a maioria? Foi uma grande surpresa para a maior parte das pessoas, e ainda continua a ser, embora algumas tivessem visto ou ouvido falar do filme da Monique Rutler, Solo de Violino, a quem presto homenagem e refiro no livro, e de quem falo sempre que me pedem contactos que ajudem a aprofundar ou a reviver este caso..Além do romance de Agustina Bessa-Luís, Doidos e Amantes, nada mais existe a nível literário que reflita este caso. A história de amor não justifica ou deve-se a desconhecimento? A história que Agustina conta é ficção. Nem Manuel Claro era homossexual como ela pretende nem Maria Adelaide uma ignorante lésbica, como conta. Aliás, a história de amor deles é completamente desvalorizada por Bessa-Luís, embora tivesse sido contactada pelas mesmas pessoas que posteriormente me contactaram para darem o seu testemunho sobre o casal, e a vida de ambos, no Porto. Os tais 40 anos que ficaram a faltar no filme. Acho que as histórias verdadeiras, sobre as quais há muita documentação, conhecida ou referida, tornam-se um pouco desmotivantes enquanto objeto literário. Como encontrar um ângulo novo? O que haverá ainda para descobrir? Um dia, mais tarde, certamente alguém irá pegar-lhe novamente. É uma história exemplar, de uma grandeza rara..Qual foi a parte mais difícil de escrever? Foram várias. A angústia e o secretismo com que Maria Adelaide abandona a casa, sem saudade alguma, mas com o coração muito apertado quando espreita, sem conseguir entrar, o quarto do filho. O encontro, numa pastelaria da Baixa, com a irmã, a quem não diz o que vai fazer, mas tem de controlar as lágrimas enquanto conversam. E, por fim, o medo. Ao entrar na estação do Rossio, ao entrar no comboio... E se a reconhecem? O coração aos saltos... Também foi difícil escrever aquele episódio terrível em que ela e o Manuel são literalmente "caçados" no Rossão e sob os olhares do povo, levados para uma taberna (estive lá, vi os locais que descreve), onde passam a noite, sobre uns fardos de palha, rodeados de polícias, de bêbados, mimoseados com gargalhadas e comentários obscenos. O Manuel foi magnífico. Protegeu-a, amparou-a. Depois, e sob chuva e neve, manhã cedo e a cavalo (ela), o Manuel e o primo a pé numa viagem dolorosa, até que os separem. E, claro, os tempos que ela passou no hospital, os dias no pavilhão das criminosas, sem poder falar com ninguém, vigiada a tempo inteiro, fechada. O regime do manicómio era brutal. A escrita deste livro fez-me percorrer uma gama de sentimentos e emoções muito ampla..O caso teve uma grande componente psiquiátrica, uma "ciência" ainda pouco confiável à época. Este tornou-se um caso de estudo ou Adelaide Coelho não interessou aos profissionais da área? Não foi único e a historiografia contemporânea tem vindo a debruçar-se sobre este e outros casos. Recordo que, ainda em 1920, A Capital publicou várias reportagens sobre o Conde de Ferreira e denuncia o sistema tido quase por normal, em que, com apoio de psiquiatras e a pedido de famílias de meninas ou senhoras ricas, as internam nos manicómios por "castigo" e para lhes ficarem com as fortunas. O que torna tão surpreendente este caso é a vigorosa defesa que Maria Adelaide faz em praça pública, dando ao prelo as suas memórias, e continuando a partilhar descrições vivíssimas dos quotidianos de um hospital de doidos nas páginas de um jornal. Isto melindrou a classe médica/psiquiátrica e extremou posições. Foi um "milagre" histórico este "lavar de roupa suja" - tudo se passa numa época sem censura. A partir de 1926, nada se teria desenrolado da mesma maneira. A opinião pública teve um peso decisivo. Na Alemanha, também houve um surto destes, abrangendo homens e mulheres. Muitos publicaram em folhetim as suas experiências, e as denúncias foram muito abundantes e detalhadas. Foi um escândalo na Alemanha, por volta de 1900. Estou a trabalhar alguma dessa informação, que é bem interessante. Tal como aqui, o tema dos internamentos e a prepotência que emergiu das denúncias levou o assunto ao Parlamento e a legislação sobre os internamentos foi alterada. Cá também..Na sua escrita, voltou a encontrar um caso real que a seduzisse como este? A biografia de imperatriz Isabel de Portugal também me envolveu muitíssimo e ainda demorei mais tempo a investigar e a escrever. Mas este caso é muito, muito especial.