Uma pérola de Filipe Melo em Vila do Conde
Uma fornada nacional menos feliz do que em anos anteriores. Será com certeza um acaso de produção, muito mais do que um sinal de "problemas" artísticos. Entre a coincidência e tendência, o que foi visto na seleção dos portugueses do Curtas 2021 continua a vincar uma das singularidades do nosso cinema: diversidade. Cada vez mais, o espectro das curtas-metragens serve como prova de uma saudável esquizofrenia do livro de estilo do cinema português. Novas formas, linguagem desafiante, novo realismo mas também ainda jovens a filmar com arte narrativa. Apesar de muitas desilusões, as pistas ou sementes destas curtas continuam a mostrar que a liberdade formal continuará a ser a estrutura dominante do cinema português a curto prazo. E mesmo com a proximidade temporal com o Festival de Cannes e o aumento dos números do vírus, as curtas nacionais continuaram a ser as sessões mais procuradas do festival. Segundo relatos de Vila do Conde, as sessões esgotadas voltaram a acontecer e a presença física dos cineastas foi notória.
Do melhor que foi proposto por esta seleção, O Lobo Solitário, de Filipe Melo, destacou-se. Um thriller rodado num único take. Um radialista chamado Lobo apresenta um talkshow de meia-noite cujo tema são as emoções. Os ouvintes entram por telefone e fazem uma descarga das suas emoções, até que um deles surpreende o apresentador com uma acusação.
Filipe Melo, também conhecido por uma carreira musical e pela parceria com Bruno Nogueira em Princípio, Meio e Fim, parece conhecer todas as regras do cinema de suspense psicológico. Além de uma ideia engenhosa que nos envolve num plano sequência nada exibicionista, tem um guião escrito num crescendo emocional capaz de nos envolver do começo até à conclusão. Um exemplo raro de um storytelling minucioso. Depois, há ainda atores em estado de rebuçado. A saber: Adriano Luz, Maria João Pinho e a voz de António Fonseca, já para não falar da insinuante música de The Legendary Tigerman. Será de certeza um título que confirma Filipe Melo como cineasta pronto para arriscar uma longa-metragem (o anterior Sleepwalk era também curta de muito mérito...).
Outro dos filmes maiores da competição foi Madrugada, de Leonor Noivo, rainha das curtas-metragens. A cineasta de Tudo o que Imagino e Raposa aposta numa história de um "body horror" suave, neste caso, uma mulher em crise de meia-idade a contas com uma transformação física: a dada altura nascem-lhe escamas e raízes. Uma ficção cruzada com depoimentos documentais, quase trinta minutos de um charme tão misterioso como tristíssimo.
Também possíveis no palmarés de hoje Lethes, de Eduardo Brito e Oso, de Bruno Lourenço. O primeiro um intricado puzzle emocional onde se aborda a sombra da morte entre uma jovem mulher e a sua avó e o segundo um divertido conto acerca de uma aparição de um urso no Alto Tâmega. Desta vez, Brito dirige atores e escolheu duas atrizes que se completam: Beatriz Brás e Tânia Dinis, enquanto que Lourenço deixa-se enfeitiçar pelo carisma de António Mortágua e a força do sorriso de Sofia Pires.
Referência ainda para Miraflores, de Rodrigo Braz Teixeira, cinema a captar um estado de espírito de um grupo de adolescentes de Miraflores, num conto simpático sobre como o primeiro amor deixa corações quebrados. Apesar de algumas fraquezas, é cinema que arrisca algo.
Vamos também ouvir falar mais de Mónica Martins Nunes, cineasta que em Sortes investiga um espírito alentejano através da descrição de uma comunidade na Serra de Serpa. Um documentário sempre com bom gosto estético e um respeito pelos tempos da terra. Desopilante e sem traços de sacro-arte do real, Sortes é daqueles objetos capazes de ouvir as vozes de um Alentejo hoje quase abandonado.
Efeito estranho podem causar os novos de Ana Moreira e José Magro. A atriz, cada vez mais realizadora, regressou com Cassandra Bitter Tongue, com uma extraordinária Iris Cayatte. É um filme bem estimável mas inferior ao anterior Aquaparque, o mesmo se podendo dizer de Nha Sunhu, de Magro, deambulação sobre os processos do cinema. O jovem cineasta fez bem melhor em Rio entre as Montanhas...
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