Poderá ser prudente ser direto e avisar: este é o mais doloroso e impressionante filme de guerra dos últimos anos. Dos raros objetos que pode deixar à saída da sala um espectador dilacerado e alterado, isto sem precisar da tão recorrente forma do trauma porn, mesmo tratando-se de um trauma a partir das memórias não cicatrizadas do conflito dos Balcãs. Jasmila Zbanic filma o massacre de Srebrenica com uma secura e um rigor que é também a melhor forma de o elevar a um horror humano que nem sempre o cinema sabe tratar. Quo Vadis, Aida? dispensa teorias de manipulação e outras técnicas de julgamento da História, prefere ser factual na maneira como nos convida a lidar com a forma como 8372 bósnios muçulmanos foram massacrados em 1995 durante esse verão..Filmado com uma tensão palpável, esse mesmo massacre dispensa factualismos ideológicos e mensagens revisionistas. O ponto de partida é Aida, uma professora da região que está a trabalhar para a ONU como tradutora para as tropas holandesas dos capacetes azuis. Depois de três anos e meio de cerco, Srebrenica parece estar na sua fase mais crítica quando a população da cidade é subitamente evacuada para a área de segurança da ONU. Uma área supostamente neutra e onde Aida trabalha. A dada altura, torna-se claro que é incomportável o acolhimento de todos nessa pequena área, mesmo quando Aida consegue que o marido e os seus dois filhos tenham direito a entrada. Aos poucos, algo no ar parece denunciar a impotência dos capacetes azuis perante o avanço das tropas sérvias cujo objetivo é fazer uma limpeza étnica numa terra que julgam sua por direito. A certa altura, o comandante sérvio Mladic e as suas tropas aproximam-se perigosamente das linhas de defesa da ONU, onde estão cerca de 20 mil refugiados. A sua ideia é escolher homens para supostamente os transportar para outra área. Aida percebe que a tragédia está eminente e vai lutando com todas as suas forças para que os holandeses consigam resistir. A dada altura, as negociações parecem servir os sérvios e a situação escala para uma rutura eminente. Aida, a mãe, a mulher, a patriota percebe que a partir do momento que os filhos e o marido sejam transferidos poderá ser a última vez que os vê..E é desse sufoco que o argumento da cineasta se alimenta para construir um relato feminista de uma memória de horror. Um argumento que é perito a ilustrar laços familiares e as pequenas e terríveis lembranças de como um vizinho pode estar ligado ao trauma. Jasmila Zbanic, tal como em Filha da Guerra (Urso de Ouro de Berlim 2006), pontua esse relato dos factos com material dramático subtil, como por exemplo quando nos envolve com o sorriso condenado de um dos filhos de Aida prestes a fazer anos no meio daquele horror. E é aí e na construção da psicologia honesta das personagens que ficamos conquistados nessa desmontagem metódica da fórmula do filme de guerra, mesmo que o suspense do dilema desta mulher seja também um portento de vitalização de uma ideia de medo. O medo de Aida torna-se muito nosso, como se um pesadelo partilhado fosse. Um medo que come a alma e que surge como um choque estrondoso. Coisa rara nos nossos dias...Talvez pelo facto dessa imersão da câmara de Zbanic no horror do inimaginável ser realmente " lá dentro" - o mal está à vista, sem filtros....Se o cinema pode ser um farol da memória histórica, um filme como Quo Vadis, Aida? torna-se possibilidade de ser uma luta contra o esquecimento. Para Zbanic voltar a confrontar os demónios da sua geração - tem 47 anos - será também um gesto artístico íntimo e pessoal, sendo aí que depois reconfigura um efeito catártico coletivo. O trauma bósnio é de todos e é por isso que a aclamação no Festival de Veneza (candidato ao Leão de Ouro) e a nomeação a melhor filme internacional nos Óscares funcionam como vitória humanista do projeto. O absurdo e a crueldade da guerra estão aqui sem clichés e com um vigor desassombrados. Na tradição dos contos implacáveis de sobrevivência, vamos igualmente rever na cabeça as recordações do embate que tivemos como filmes como O Pianista, de Roman Polanski ou A Escolha de Sofia, de Alan J. Pakula..Para além de tudo isso, a mise-en-scène de Jasmila Zbanic tem uma visão do real muito lúcida e funcional, sabendo gerir a escala grande de figurantes e aparato como se de uma coreografia aparatosa se tratasse, sempre sem perder o foco no essencial. Se precisávamos de voltar a entrar para o interior deste genocídio? Muito mais do que julgávamos, especialmente porque a perspetiva feminina muda tudo... Nesse olhar feminino ferido está toda uma nova abordagem, longe da mitificação do trauma masculino. E essa singularidade feminina é francamente refrescante. Aida, personificada pela exaltante Jasna Durijic, é na sua força colossal e mágoa transbordante uma mãe-coragem que nos faz acreditar na luz humana em pleno teatro dos horrores. Uma personagem que pode ser a mais bonita lição de humanidade que podemos por estes dias encontrar no cinema contemporâneo. Mãe da guerra, portanto....dnot@dn.pt