Uma exposição que revista os bolsos, a correspondência e até a coluna de Gulbenkian
No dia em que morreu, 20 de julho de 1955, Calouste Sarkis Gulbenkian tinha na sua carteira uns pequenos papéis com uma citação do magnata norte-americano Henry Ford e outra do filósofo romano Séneca. A primeira, um bom conselho para qualquer homem de negócios: "Faz o teu próprio trabalho, cuida dos teus assuntos e não te envolvas em conflitos". A segunda, um bom conselho para qualquer pessoa: "Viva cada dia como se esse dia representasse os limites da sua vida e torne-o tão agradável quanto possível, porque ele contém a única realidade de que dispõe".
"Gulbenkian era um homem muito prático, mas com uma preocupação espiritual na sua vida", explica Paulo Pires do Vale, curador da exposição "Calouste: uma vida, não uma exposição", que se inaugura este sábado na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Depois da publicação da biografia de Jonathan Conlin, esta é mais uma forma da fundação assinalar este ano o 150º aniversário do seu patrono. A data de nascimento é incerta - foi algures em março de 1869 - mas é no dia 23 que a família celebra.
A exposição começa pelo fim. Que é como quem diz, pelo legado de Calouste Gulbenkian. Ainda no átrio do edifício-sede da Fundação, vídeos mostram-nos o testemunho de pessoas (muitos anónimos, algumas mais conhecidas) que foram de alguma forma marcadas pela Fundação Gulbenkian. Por exemplo, alguém que recebeu uma bolsa da fundação e pôde assim prosseguir os seus estudos. Um casal que se apaixonou nos jardins da Gulbenkian. Alguém que assistiu a um concerto ou viu uma exposição que de alguma maneira mudaram a sua vida.
A partir daqui vamos "adentrando" na vida de Calouste Gulbenkian "às arrecuas", explica o curador. Começamos pelas imagens da construção do edifício da avenida de Berna, vemos a ata da primeira reunião do conselho de administração da fundação e deparamo-nos então com a notícia da morte de Gulbenkian num telegrama enviado pela filha, Rita, ao irmão, Nubar.
É neste momento que os vigilantes aparecem a dar-nos dois pequenos cartões fac-similados dos que Gulbenkian levava na carteira, com as citações de Ford e Séneca. "Será a primeira de várias ofertas que temos", avisa o curador. Mais tarde, hão de vir contar-nos pequenos pormenores sobre o arménio que se mudou para Lisboa em 1942 e que gostava de ir ver as estrelas para Monsanto, ou então dar-nos um cartão de visita com a sua morada em Paris ou ainda adoçar-nos a boca com moedas de chocolate que celebram os 150 anos de Gulbenkian e nos lembram que ele foi um importante homem de negócios e um multimilionário.
A timeline na parede começa em 1955 e vai recuando no tempo - em português, em inglês e em arménio - para nos mostrar a última obra que Gulbenkian comprou para a sua coleção (A Rua de Saint-Vincent em Montmartre, de Stanislas Lépine), a Grã Cruz da Ordem Militar de Cristo que recebeu do Estado português em 1952, as cartas que escreveu ao neto Mickael aconselhando-o a ser um homem bom e trabalhador, um Raio-x que revela uma coluna impecavelmente direita.
O percurso mostra-nos um homem preocupado com a sua saúde, com um interesse enorme pela natureza (e ali temos uma reprodução de Les Enclos, o jardim que mandou construir na Normandia em 1937), o seu lado de viajante (os diários de viagem, com textos, desenhos, postais e fotografias são pequenas maravilhas), o homem de negócios implacável com participações em empresas de mineração, gás e petróleo espalhadas pelo mundo e que, graças à sua participação na Turkish Petroleum Company acabou por ficar conhecido como "o senhor 5%".
E, claro, também ali está a enorme paixão que tinha pela sua coleção de arte. Os quadros eram os seus "filhos". E porque até um grande colecionador como Gulbenkian nem sempre conseguia comprar aquilo que queria, a exposição tem uma moldura vazia com as dimensões exatas do quadro La Condesa de Chinchón, de Goya, que Calouste perseguiu mas que acabou por ir para o Museu do Prado, em Madrid.
Pelo meio, vamos descobrindo também um lado mais pessoal - através dos livros da sua biblioteca, das agendas meticulosas, da correspondência que mantinha, das fotografias da família (ali está ele, com apenas 23 anos, no dia seu casamento com Nevarte, em 1892). O percurso vai para além do nascimento de Gulbenkian (num dia incerto de março de 1869, mas que a família celebra a 23) e termina com uma referência à cultura arménia que lhe serviu de berço.
Preparar uma exposição sobre Calouste Gulbenkian pode parecer fácil, não só porque a sua vida foi muito rica mas também porque o seu espólio é vasto. Mas, por outro lado, "ele teve uma vida muito reservada e era tão avesso a essa publicitação que até parece uma contradição estar a expô-la", explica Paulo Pires do Vale. Além disso, sublinha, "a vida de uma pessoa, com o que tem de secreto, de reduto de cada um, nunca pode ser completamente mostrada numa exposição". O que explica o título: "uma vida, não uma exposição". Saímos daqui, portanto, com a consciência de que o que se mostra é apenas uma ínfima parte do que fica por mostrar. Não há pretensões de mostrar uma "biografia definitiva" e, sabendo isso, mais do que uma exposição, Paulo Pires do Vale propõe um jogo: que seja o visitante "a juntar as peças" e a construir o "seu" Calouste. "O passado nunca está fechado."
"Calouste: Uma vida, não uma exposição"
Edifício sede da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
De 24 de março a 31 de dezembro
Entrada livre