Uma esquerda para a Europa

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Há um ano, dia por dia, os eleitores depositaram decisões importantes para a governação do país nas mãos dos deputados eleitos. O PS e os demais partidos parlamentares de esquerda viriam a assumir a responsabilidade de dar resposta à larga maioria de eleitores que queriam interromper a estratégia da direita para desestruturar até à violência a nossa vida coletiva. Os acordos das esquerdas deram à democracia portuguesa, além de respostas políticas concretas, uma profunda renovação da representação política: um milhão de portugueses entram pela primeira vez no bloco social de apoio a um governo constitucional. E reafirmou-se que a democracia tem sempre de oferecer escolhas. Feito o muito que tem sido possível, olhemos para o futuro. Os acordos à esquerda mostram pluralidade, diferença, preservação das identidades. Mas a governação já tem exigido a construção de novas confluências para além das posições conjuntas. É preciso aprofundar o método original de valorizar as convergências em lugar de sublinhar as divergências: sem pretender anular a diferença, alargar as convergências em domínios estratégicos. Adicionar novas camadas de visão conjunta, novas soluções comuns para desafios centrais.

O papel de Portugal na União Europeia é, sem dúvida, um estaleiro essencial na renovação do diálogo à esquerda. Uma divisão de tarefas onde, por um lado, o governo do PS trata de encontrar o caminho estreito da defesa do interesse nacional no quadro comunitário e, por outro lado, a esquerda da esquerda, embora solidária com o governo, sistematicamente reflete em voz alta acerca da inevitabilidade de empurrar o governo para o confronto com as instituições europeias, é a prazo insustentável.

Sem dúvida que todos queremos uma UE onde se pratique a igualdade entre países, a convergência económica, onde a coesão social e territorial se concretize. Sem dúvida que temos de contrariar as forças que, dentro das instituições europeias, tentam bloquear o governo de Portugal. Recusamos a receita recorrente de privatizações e desregulação social. Mas, para uma estratégia de longo prazo para Portugal, importa compreender que a crítica da globalização é inconsequente se ignorar que só podemos contrariar os seus efeitos perversos com cooperação regional mais forte, nunca com ilusões de soberania isolacionista.

Soubemos recentemente que a Comissão Europeia pretende que a Apple devolva à Irlanda, por impostos por cobrar graças a concorrência fiscal desleal, uma quantia superior à despesa pública anual desse país em saúde. Outros casos (Starbucks na Holanda, Fiat no Luxemburgo, dezenas de multinacionais na Bélgica) espoletaram ações europeias destinadas a bloquear alguma forma de paraíso fiscal. Claramente, nenhum país isolado tem os meios para se opor a estes efeitos nefastos da globalização. É na UE que o podemos fazer.

Não podemos enfrentar com eficácia e humanidade a questão dos refugiados, nem a ameaça terrorista, agindo cada um por si. Nem regular seriamente a banca e a finança. Não podemos enfrentar o desafio da segurança energética sem uma União da Energia. Sem uma União Digital desperdiçaremos o potencial de um espaço comum de criação e fruição online. São desta ordem as razões do europeísmo dos socialistas.

A esquerda não pode trocar o internacionalismo pelo nacionalismo. Não podemos entrincheirar-nos: discutir as regras comuns não passa por reduzi-las às categorias de imposição e chantagem. Recentemente, cinco países nórdicos insurgiram-se contra o ostensivo desrespeito da Hungria pelas suas obrigações relativas aos refugiados e apelaram à UE para que aja contra o prevaricador. Devemos aceitar que Viktor Orbán se oponha aos valores e regras comuns tratando-as como imposições e ingerências? Não. Na defesa do Estado de Direito, em causa por exemplo na Polónia, desejaríamos até que as instituições europeias fossem mais rápidas e mais determinadas. Falamos de situações diferentes, claro. Mas o ponto é que não podemos desqualificar o debate político europeu com simplificações soberanistas. Até porque esse debate político europeu é necessário para aprofundar a democracia na UE e para acrescentar legitimidade às suas instituições.

A maioria plural das esquerdas renovou a representação democrática em Portugal e permitiu uma viragem política que recusa a estratégia de empobre-cimento e o aumento das desigualdades. Vale a pena trabalhar por uma sociedade decente. Por esse mundo fora, para lá da divisão direita/esquerda, perpassa uma divisão sistema/antissistema. Não podemos continuar a empurrar para fora da democracia os que há muitos anos não têm um aumento real do salário. Os que continuam absolutamente precarizados, na incerteza quotidiana. Devemos transformar a indignação em política, em governação alternativa, em democracias mais democráticas. Devemos ser capazes de fazer isso também na Europa. A maioria plural das esquerdas tem de trabalhar para acrescentar coerência estratégica às suas convergências em matéria de UE.

Membro da Comissão Permanente do PS

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