"Uma criança síria disse-me: 'Eu não sonho. Não sei com que sonhar'"
Há, neste momento, um milhão de refugiados sírios no Líbano, metade dos quais crianças. Há uns tempos dizia que quando chegam todos acreditam que vão voltar a casa...
Imediatamente ou dentro de muito pouco tempo, sim, acreditam.
Esse sentimento ainda está presente neles, passados oito anos de guerra?
Sim, o sentimento ainda está presente. E até está exacerbado agora pelo facto de as famílias estarem totalmente endividadas. Estamos no oitavo ano de crise, as famílias venderam todos os bens que tinham, a pobreza está a aumentar. Por vezes, eles nem sequer conseguem imaginar um futuro. Lembro-me de que, quando perguntámos a uma das crianças qual era o seu sonho, ela respondeu: "Eu não sonho." Foi duro. Porque dá a perceção do quanto estas famílias, estas crianças, estão afetadas por esta crise. E o facto de do lado libanês as coisas não estarem a ficar melhores em termos económicos. Agora, há duas semanas, formaram um novo governo. Todos esperam que com um governo funcional a economia do país acelere, que os investidores regressem. Mas, de outra forma, mesmo a população libanesa está a ficar mais pobre. A coesão entre sírios e libaneses é pior do que já foi.
A relação entre Síria e Líbano não é fácil, historicamente. A Síria ocupou o Líbano durante quase 30 anos...
Sim. Há toda uma história que temos de ter em conta.
O governo libanês é por vezes criticado por não dar as melhores condições aos refugiados sírios, mas, num pequeno país que já tinha de lidar com os refugiados palestinianos há décadas, qual é a solução para integrar mais estas pessoas se não lhes querem dar a cidadania?
O que podem fazer? Na verdade, eles já fizeram muito. Nos países europeus não se viu uma resposta assim em relação aos refugiados sírios. Um milhão de refugiados é o número oficial, são os que estão registados, mas devem estar mais perto de 1,5 milhões. Eu gosto de ser mais otimista e pensar que o governo libanês vai conseguir receber esta comunidade durante mais algum tempo. Talvez não muito mais tempo. As coisas estão a mexer na Síria, de uma forma ou de outra. Vai ser necessário reconstruir o país. Isso não vai acontecer de um dia para o outro, mas há sinais iniciais, tímidos, de que as coisas estão a mexer. Talvez com isto em mente o governo libanês se sinta mais aliviado. Eu própria, enquanto encarregada do programa de educação da UNICEF, apesar das dificuldades, apesar de estas crianças estarem no sistema há oito anos... o Ministério da Educação, quando o novo ministro foi nomeado na semana passada, uma das suas primeiras declarações foi que no Líbano todas as crianças têm de ir à escola. Quer sejam libanesas, sírias, palestinianas, ricas ou pobres, as escolas públicas estão-lhes abertas. Isto significa que ainda há vontade de apoiar o povo. Isso é muito importante.
Quando estas crianças chegam, muitas passaram pelo inferno. Qual é a maior dificuldade para as integrar na escola? Qual o processo?
Bom, em primeiro lugar, as crianças que nunca tenham ido à escola não são lançadas diretamente para dentro do sistema. A UNICEF, com as outras ONG nossas parceiras e o Ministério da Educação, criámos umas aulas de recuperação, para dar os conceitos básicos de literacia e numeracia, damos oportunidades de aprendizagem que vão ajudar estas crianças a recuperar o tempo perdido. Na Síria, 97% das crianças andavam na escola antes da guerra. Muitas vezes, apenas perderam um, dois ou três anos de escolaridade e através destes programas de recuperação podem voltar ao nível certo e ser reintegrados na educação formal. Sempre que surgem crianças mais traumatizadas - porque viveram o mesmo inferno, mas algumas reagiram melhor -, a UNICEF e os parceiros fornecem apoio psicossocial, proteção infantil, proteção contra a violência de género, tudo o que for necessário para as crianças que estão mais afetadas. É um complemento aos programas educacionais. Quando as crianças estão preparadas para ser integradas nas escolas, são-no. No Líbano, o governo abriu um segundo turno nas escolas para integrar estas crianças. Mais de 150 mil frequentam o turno da tarde, que começa às 13.30. O programa é o libanês. Mas muitas vezes a primeira barreira que surge é estas crianças conseguirem chegar à escola. Muitas vezes, a escola fica um pouco afastada, elas não estão familiarizadas com o país, os pais têm medo de que algo possa acontecer aos filhos. Alguns destes pais não têm documentos, não podem andar livremente e acompanhar os filhos até à escola.
Por vezes, nem há pais...
Sim, por vezes não há pais. Enfim, o primeiro desafio é chegarem à escola. Nos últimos três anos, a UNICEF transportou mais ou menos 80 mil crianças anualmente até às escolas. Com autocarros. Neste ano passámos a dar dinheiro às famílias para isso, porque os autocarros eram um pesadelo logístico de gerir. Mudámos para o dinheiro. Damos dinheiro às famílias, elas organizam-se para que as crianças cheguem à escola. O segundo desafio é a língua. Em primeiro lugar, o árabe falado no Líbano é diferente do árabe falado na Síria. Além disso, no Líbano as aulas são também dadas numa outra língua: francês ou inglês. Seja matemática, física, o que for. E na Síria isso não existia. No início, muitas crianças ficavam para trás em termos de aprendizagem. Nós damos apoio com os trabalhos de casa, apoio nas aulas para que recuperem.
O que faz mais falta no terreno para ajudar estas crianças? Pessoas, material, dinheiro?
Infelizmente, o dinheiro é necessário. Após oito anos é compreensível que os doadores, a comunidade internacional, estejam cansados. Não há uma solução à vista para o conflito e há outras crises a surgir. Por isso, eles estão pressionados. O nível de financiamento não baixou dramaticamente mas estagnou, com alguns doadores a sair. Em primeiro lugar, é preciso dizer que o dinheiro nunca foi o suficiente, mas arriscamo-nos a assistir, num futuro próximo, à redução do financiamento. E as crianças, as famílias, continuam lá. Mesmo que um dia regressem à Síria, será no mínimo dentro de alguns anos. O país precisará desse tempo para começar a reconstruir-se. Foi tudo destruído, as escolas, tudo. E as mães não estão preparadas para regressar a um país, mesmo que seja a sua casa, se não houver hospitais, se não houver escolas, se os serviços básicos não estiverem assegurados. Nenhum de nós o faria. Estão a fazer tudo o que podem para proteger os filhos.
Deve ter inúmeras histórias dramáticas para contar, mas também algumas histórias de sucesso ao longo destes oito anos?
Sim. Em primeiro lugar, temos crianças que já terminaram o secundário, crianças que foram mais bem-sucedidas nos exames do que os libaneses e ficam muito orgulhosos. As crianças gostam de ser competitivas. Há outras que, através do Ministério da Educação, puderam participar em maratonas de matemática. Outras que foram bem-sucedidas nos programas de apoio à juventude, que lhes deram acesso a áreas como a informática, o marketing. Eles sentem-se empoderados e alguns até apoiam as organizações internacionais como voluntários. Fazem trabalho de apoio comunitário, acabando por cobrir as suas despesas. Como sabe, os refugiados sírios não estão autorizados a trabalhar no Líbano, apenas em algumas áreas específicas. Se for engenheiro, não pode trabalhar. As histórias de sucesso são de crianças que conseguiram sobreviver, ser felizes e que conseguiram, através dos seus estudos, obter ferramentas que um dia esperam poder usar quando regressarem ao seu país.
Estas crianças que têm sucesso, mas não podem trabalhar no Líbano, não podem sair livremente porque muitas não têm documentos, não são bem aceites nos países europeus, não podem voltar à Síria porque a guerra continua, sentem-se encurraladas?
De certa forma, sim. Por isso, eu dizia antes que, quando perguntamos a uma criança síria qual é o sonho dela, ela diz: "Não tenho sonhos, não sei com que o que sonhar." Não veem um futuro, não sabem quando, nem como, nem onde vão estar no futuro. Mas, feitas as contas, claro que há momentos de cansaços, de pessimismo, mas quando se juntam todos e começam a brincar, a fazer coisas de criança, são como qualquer outra criança. Há uma esperança, mesmo com as famílias, com as mães. Há uns tempos tivemos a visita da chanceler alemã, Angela Merkel. E ela foi falar com alguns dos pais quando visitou uma escola. E os pais disseram-lhe que queriam ir com ela para a Alemanha. Ela explicou de forma muito simpática que não os podia levar, que milhões de pessoas querem ir para a Alemanha e ela não pode aceitar todos. Gerou-se ali um diálogo, em que eles perceberam perfeitamente o que ela estava a dizer. Podem sentir-se encurralados, porque estas são as circunstâncias, mas entendem as coisas. E esperam que as coisas melhorem.
A Alemanha recebeu muitos refugiados, mas outros países europeus, inclusive o seu, Itália, têm sido mais reticentes. Portugal costuma ser dado como exemplo de abertura, mas a verdade é que os refugiados não querem vir para cá. É um ciclo vicioso que afeta os refugiados como os que estão no Líbano à espera de uma oportunidade de sair?
A UNICEF neste momento não está de todo envolvida nesse processo. Nós somos a organização que lhes dá apoio onde estão. Seja o Líbano ou a Suécia. Quando chegam precisam do mesmo apoio: têm de aprender uma língua, têm de aprender uma cultura, têm de se integrar. E eles veem a UNICEF e as outras organizações como as pessoas que os ajudam nisso. Mas claro que a política europeia em torno dos refugiados é algo que nem quero comentar.
Tem uma filha de 10 anos. Ser mãe afetou de alguma maneira a forma como trabalha com estas crianças?
Ser mãe não mudou a forma como lido com as outras crianças, mas o meu trabalho afetou a forma como falo com a minha filha. Devido a tudo o que já vi, e a tudo o que continuo a ver, ela é muitas vezes lembrada da sorte que tem. As crianças continuo a tratá-las como sempre tratei, do Congo à Somália e ao Líbano. Sempre as vi como uma oportunidade maravilhosa e enérgica para o mundo. Mesmo quando há guerra, as crianças são aquela fonte de energia. Mas a forma como mostro o mundo à minha filha não é sempre cor-de-rosa. Ela sabe. Ela segue-me para onde vou. Não tem escolha.
Já trabalhou, como dizia, na Somália, no Ruanda, no Congo, mas também na Indonésia ou na Argélia, sempre para a UNICEF. Desafios muito diferentes?
A maior diferença é quando se trabalha num país em guerra, o maior desafio é a segurança. E o acesso às populações afetadas, às crianças. Esse é um desafio que não temos no Líbano, por exemplo. A magnitude do problema é a mesma, talvez até maior, mas estamos seguros, podemos trabalhar, não temos de negociar o acesso às crianças com os senhores da guerra, como acontece em sítios onde não há um Estado, onde não há um governo. Essa é a grande diferença. Mas quando trabalhamos em sítios onde fazemos um trabalho mais administrativo, como, por exemplo, na Indonésia, onde trabalhei num programa educacional muito técnico, não vemos essa pobreza que está mesmo ali. Mas nesses países estamos a trabalhar porque as desigualdades são uma realidade e é preciso trabalhar preventivamente, garantir que as políticas educacionais são para todas as crianças. Caso contrário, os ricos vão ficar mais ricos e os pobres mais pobres. Esse é outro desafio: trabalhar a nível político e navegar por esse ambiente. Também não é fácil.
Está em Portugal para falar das condições que os refugiados sírios enfrentam neste momento no Líbano...
Sim, estamos aqui com este bom tempo, mas no Líbano desde o mês passado que enfrentámos duas grandes tempestades. Por isso, os refugiados que vivem em tendas têm de enfrentar o frio, não há combustível suficiente para se aquecerem. O maior problema foi escoar a água. Os campos ficaram inundados e as pessoas tiveram de se mudar com os poucos bens que lhes restam. Mudam-se muitas vezes para as escolas. Estas deixam de funcionar como escolas, mas naquele momento esse é um problema secundário. O que a UNICEF fez foi ajudar mais de 38 mil pessoas a bombear a água das suas tendas. Estamos a falar de 280 locais diferentes, o que é muito. No Líbano, estes pequenos campos de tendas estão por toda a parte. É ainda mais difícil, paradoxalmente, do que se estas pessoas vivessem todas num grande campo como acontece, por exemplo, na Jordânia. Distribuímos mais de dez mil cobertores, roupas de inverno para milhares de crianças. Foi uma intervenção que custou mais de um milhão de dólares, mas era essencial para manter estas pessoas seguras e quentes. Estão também a tentar trabalhar com as câmaras municipais. Já tinha acontecido algo semelhante no ano passado, por isso neste ano conseguimos estar preparados um pouco mais cedo. Mas ainda não chega.