Uma carta de amor, Corbyn e uma Europa que faz Cameron perder a cabeça

Merkel diz que Reino Unido não poderá aproveitar os benefícios do acordo comercial que a UE está a negociar com os EUA
Publicado a
Atualizado a

"Sim, às vezes a União Europeia faz-me perder a cabeça e leva-me à loucura", admitiu ontem à noite David Cameron, numa entrevista à Sky News, antes de sublinhar que, apesar das irritações que a Europa lhe provoca, prefere estar do lado de dentro e fazer parte do processo de decisão do que a assistir a tudo do lado de fora.

O primeiro-ministro britânico, respondendo ao muito aguerrido repórter da estação, Faisal Islam, voltou a sublinhar os pontos-chave daquela que tem sido a sua argumentação durante a campanha para o referendo sobre o brexit. Para David Cameron, abandonar de livre e espontânea vontade o mercado único europeu seria uma espécie de automutilação, que deixaria a economia britânica marcada com profundas cicatrizes a nível económico. O líder dos conservadores explicou que, com uma eventual saída da União Europeia, o Reino Unido, além de perder o acesso ao mercado europeu, seria obrigado a renegociar 53 outros acordos de comércio com outras regiões. "Isso representaria uma década de incerteza com elevados custos. E, sem uma economia saudável, não podemos fortalecer a educação, nem a saúde, nem a segurança social".

Faisal contra-atacou com o argumento da soberania, mas Cameron tinha a lição bem estudada: "Mesmo que abandonemos a UE continuaremos a ter de cumprir os regulamentos europeus para exportar para a Europa. Ou seja: seríamos obrigados a cumprir a mesmas regras, mas deixaríamos de estar do lado de quem faz essas regras. Teríamos mais soberania se saíssemos? Não, não teríamos", argumentou o primeiro-ministro.

Já em diálogo com a audiência, Cameron voltou a referir aquele que tem sido um dos seus principais soundbites dos últimos meses: "Neste momento temos o melhor de dois mundos. Temos acesso ao mercado único e não fazemos parte do euro".

Merkel contra o divórcio

Também ontem, num discurso em Londres, Jeremy Corbyn, líder do Labour, tentou contrariar aqueles que dizem que tem feito uma campanha pouco apaixonada em favor da permanência na UE. "No Partido Trabalhista defendemos inequivocamente que o Reino Unido deve continuar. A Europa trouxe-nos investimento, empregos e proteção para os trabalhadores, para os consumidores e para o ambiente".

Ainda assim, Corbyn - que no referendo de 1975 votou contra a adesão à então Comunidade Económica Europeia - fez questão de distanciar-se do tom de algumas intervenções conservadoras sobre os riscos do brexit, classificando-as de "hiperbólicas" e "catastrofistas".

Os analistas - numa altura em que as sondagens mostram que o "não" à União Europeia pode estar a ganhar alguma força - consideram que Jeremy Corbyn pode ser uma peça chave para o desfecho do referendo, uma vez que tem a capacidade de seduzir o eleitorado de esquerda que tradicionalmente não confia no primeiro-ministro David Cameron.

Juntando-se ao coro de vozes que esperam que Reino Unido e União Europeia continuem de mãos dadas depois de dia 23, Angela Merkel também veio ontem a terreiro clamar contra o divórcio. "Claro que a decisão é dos britânicos, mas o meu desejo é que continuem a fazer parte da Europa. Porquê? Porque acredito que quando nos sentamos todos juntos, no seio da União Europeia, conseguimos obter melhores resultados do que quando o fazemos em separado", afirmou a chanceler alemã.

Merkel sublinhou também que, caso o brexit se concretize, o Reino Unido, além de perder as vantagens de fazer parte do mercado único europeu, também não poderá aproveitar os benefícios do acordo comercial que está a ser negociado entre a União Europeia e os Estados Unidos.

Declarações apaixonadas

À medida que se aproxima a data do referendo vão-se sucedendo os apelos para que os britânicos não desfaçam os votos matrimoniais com os outros 27 Estados-membros. Além dos pedidos institucionais - mais típicos dos políticos e líderes europeus - também há quem faça declarações mais apaixonadas. Ontem, no suplemento literário do The Times, foi publicada uma "carta de amor aos britânicos" assinada por 140 celebridades europeias. O francês Arsène Wenger, treinador do Arsenal; o arquiteto italiano Renzo Piano, autor do centro Georges Pompidou em Paris; e o escritor alemão Patrick Süskind, autor de O Perfume, são alguns dos ilustres signatários da missiva destinada a comover o coração daqueles súbditos de Sua Majestade que ainda não decidiram o que votar no dia 23.

"Todos na Europa respeitamos o direito dos britânicos para decidir se querem ou não continuar na União Europeia. A decisão é vossa e nós saberemos aceitá-la. Mas, se de alguma forma pudermos ajudar os indecisos, gostaríamos de vos dizer o quanto gostamos de ter o Reino Unido connosco na União Europeia. Não são apenas os tratados que nos juntam ao vosso país, mas sim laços de admiração e afeto. Todos esperamos que votem pela renovação desses votos. Por favor, fiquem". Assim reza a carta de amor de uma Europa que faz Cameron perder a cabeça.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt