Uma agulha num palheiro de Jordi Cruyffs

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Na manhã do Dia das Mentiras em 2015, um cadáver foi encontrado numa mansão em Hollywood. Estava despido da cintura para baixo, e jazia num charco do seu próprio sangue. A causa de morte foi úlcera intestinal, agravada pelo uso prolongado de metanfetaminas. Ao seu redor, havia equipamento de filmagem, dispositivos animatrónicos, uma sala de montagem, e a versão embrionária de um filme de terror com o título provisório The Storyteller. O nome do falecido era Andrew Getty.

Os melhores neologismos dão nome a algo que existiu imenso tempo sem um. Failson, com a simples junção dos vocábulos para "filho" e "fracasso", é um projéctil recente para atingir um alvo antigo - tão antigo como os primeiros impérios. Marco Aurélio deixou o seu nas mãos desse apoteótico failson chamado Commodus. Até a Bíblia tem uma versão: a figura do filho pródigo que, no Evangelho de São Lucas, vai para o estrangeiro esbanjar a herança numa boémia babilónica.

As origens do termo, como acontece com muito do vocabulário online, perderam-se num nevoeiro de anonimato, links quebrados e páginas desvanecidas, mas a palavra parece ter emergido organicamente da cultura de fóruns (Reddit, 4Chan, Something Awful) algures na viragem para a segunda década deste século. Na altura, começou por servir como marca de identificação auto-depreciativa para uma geração que se via com menos património, oportunidades e qualidades que as gerações que a precederam. Com o tempo e o uso, a definição foi evoluindo e encolhendo. Em 2016, quando já se tinha generalizado o suficiente para chegar à imprensa mainstream, passou a ter um referente mais específico: os membros mais jovens de dinastias célebres (políticas, financeiras ou artísticas) exibindo um notório défice dos atributos que celebrizaram pais ou avós, e uma propensão para se envolverem em escândalos maiores ou menores. A blindagem familiar protege (quase sempre) os failsons das consequências mais nefastas, mas de uma ou outra forma o que eles representam é o beco sem saída das respectivas reputações.

As dinastias americanas costumam produzir excelentes failsons. A segunda ou terceira volta do carrossel genético saca sempre, previsivelmente, um du Pont a estrangular prostitutas, ou um Kennedy a afogar-se num barril de cocaína. J. Paul Getty foi o fundador de uma dessas linhagens narrativamente promissoras. A compra dos direitos para explorar petróleo na Zona Neutra entre a Arábia Saudita e o Kuwait tornou-o um dos homens mais ricos do mundo no pós-guerra. Em 1975, quando um neto seu foi raptado por mafiosos em Roma, Getty resistiu aos apelos para intervir, explicando que "tenho 13 netos além desse; se pagar o resgate hoje, amanhã terei 14 netos raptados". Os raptores responderam à intransigência com uma derradeira manobra negocial: cortaram a orelha ao jovem e enviaram-na à família por correio. (Getty viria a pagar, depois de baixar o valor pedido até 2,2 milhões de dólares - a quantia máxima que podia deduzir nos impostos).

Nenhum dos outros 13 netos foi raptado, mas muitos sofreram os acidentes de percurso habituais (overdoses em hotéis, suicídios com talheres, etc.). Um deles foi Andrew Getty, com as suas ambições cinematográficas e a sua predilecção por filmes de terror. O filme que deixou na sua sala de montagem quando morreu em 2015 era um projecto iniciado em 2002, e que só estreou em 2017. O elenco é constituído exclusivamente por aquelas pessoas que já vimos noutros sítios, mas cujo nome nunca foi importante memorizar ("esta entrou no Starship Troopers", "este entrou num episódio do CSI"); alguns deles também já morreram. Com o título The Evil Within, pode hoje ser visto na Amazon Prime (ou no YouTube, com legendas em castelhano).

A história, e não há uma maneira de fazer esta sinopse soar bem, é sobre um adulto com deficiências mentais possuído por um demónio que vive num espelho e que o manipula para matar gatinhos e depois crianças. Começa com uma narração de oito minutos ilustrada pelo que poderia ser um teledisco dos anos 90 realizado por Terry Gilliam. Também inclui uma longa discussão familiar sobre decoração de interiores, e aproximadamente 20% da duração total consiste em cenas nas quais o protagonista fala consigo mesmo ao espelho.

E no entanto: se concedermos que uma das mais nobres ambições do filme de terror é a criação de imagens memoráveis, The Evil Within é um espalhafatoso triunfo. Qualquer manifestação de bizarria é mais tarde ou mais cedo comparada a David Lynch. A comparação quase nunca é apropriada - e também não é apropriada neste caso. The Evil Within não se parece com um filme de David Lynch; o que parece, a espaços, é o tipo de filme que uma personagem de David Lynch faria. Não há aqui nenhuma da esquisitice por decreto comum em produtos de linha de montagem, mas algo muito mais sui generis - algo que não faz gala da sua vontade de ignorar as convenções do género porque se comporta como se nem sequer as conhecesse. Os efeitos especiais (quase todos analógicos) parecem feitos por alguém que não viu um único filme de terror estreado nos últimos 30 anos. Há pelo menos quatro ou cinco momentos que criam um efeito visual novo, momentos em que o apreciador veterano pode honestamente concluir "eis algo que não me lembro de ter visto antes": um que envolve a aplicação inesperada de um fecho éclair; outro que mostra uma orquestra de polvos animatrónicos; uma sequência inacreditável (e esplendidamente gratuita) que consegue combinar um berbequim, um extintor e uma cabeça humana.

Ao contrário de outros clássicos de culto acidentais, que se prestam ao visionamento festivo, e parecem exigir do espectador o mesmo entusiasmo divertido com que foram feitos, The Evil Within é um filme genuinamente desagradável. As cenas mais banais adquirem uma aura de ameaça latente, e nunca chegamos a perceber se tal se deve a uma intenção ou à inexperiência. Cada sequência apresenta aos sentidos uma leve anomalia - a câmara sempre dois centímetros acima ou abaixo da posição esperada, o diálogo sempre no limiar do uncanny valley.

Um filme obediente a um rígido livro de estilo talvez fosse incompatível com a vida e personalidade de Andrew Getty, e com a sua infatigável dedicação à toxicodependência. Não o protegendo de muito mais, a sua herança escudou-o às experiências que qualquer criador inexperiente tem forçosamente de negociar, especialmente num arte tão dependente da colaboração como o cinema: ter alguém a dizer-lhe "não", ou "isso não presta", ou "há outras maneiras de fazer isto". A originalidade tem muitas formas, mas esta - a que se define por uma resistência militante às opções mais razoáveis e eficientes - talvez só seja possível através desta confluência específica de excesso (de dinheiro, de tempo, de imaginação) e de carência (de conhecimento, de responsabilidade, e de obrigações colectivas).

A inevitabilidade dos failsons é um imposto oficioso cobrado às aristocracias hereditárias. Uma vez que a transferência eterna de privilégios nunca pode ser triste nem ter graça, a tributação cósmica pode ao menos assegurar que ela é trágica ou cómica (no sentido literário). A vida, ao contrário da arte, não tem forma. Mas por vezes, exibe uma predilecção localizada por equilíbrios e simetrias. Para compensar as contingências desinteressantes que levam à acumulação de grandes fortunas, a terceira geração encontra contingências interessantes para as dissipar.

Talvez haja uma utilidade social e cultural em incentivar a proliferação de failsons. Deixar que as linhagens bilionárias se vão engalfinhando na árvore genealógica até produzirem finalmente o eleito, o kwisatz haderach: um génio com trinta nomes e triplo queixo de Habsburgo, capaz de fazer o melhor filme de terror de todos os tempos.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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