"Em que é que a Grécia difere da Itália e da Espanha? É a luz!" Lawrence Durrell, As Ilhas Gregas, 1978.A filha dos Durrells nasceu a 4 de Junho de 1940, no preciso dia em que os Aliados evacuavam Dunquerque. Chamaram-lhe Penélope, pois o pai, sobretudo ele, queria um nome helénico para a filha. Pouco antes do nascimento, Nancy tinha ido passar uma temporada a Inglaterra, na companhia da sogra e da cunhada, Margo, mas, por razões ainda hoje discutidas, decidiu regressar inopinadamente a Atenas, o que a obrigou a uma longa e pavorosa travessia de comboio por França no preciso instante em que os nazis a invadiam. Por ordem dos alemães, o comboio em que seguia foi alvo de diversas paragens, algumas delas de várias horas, e a jornada durou ao todo mais de três dias..A decisão de viajar no último mês de gravidez permanece inexplicável. Larry disse que ela já estava farta de Inglaterra, outros afirmam que Nancy regressou a Atenas apenas para lhe satisfazer o capricho de ter o filho nascido em solo grego, mas, como observa Joanna Hodgkin em Amateurs in Eden, a hipótese mais plausível, confirmada por várias cartas, é a de que, apesar de todos os dramas e de todas as desavenças, ambos ainda gostavam muito um do outro e sofriam horrores com a separação e a distância (o que não impediu Larry de, não muito depois, partir para Mykonos em excursão com três amigos...)..O avanço dos alemães sobre a Grécia precipitou a fuga para Creta, uma viagem com contornos épicos, quase trágicos, que chegou a ser noticiada nos jornais ingleses da época. Nancy e a filha recém-nascida andaram dias praticamente à deriva no Mediterrâneo, com um frio atroz e pouco ou nada que comer. Mesmo à chegada a Creta, os problemas de falta de alimentos não cessaram, valendo-lhes o auxílio de dois soldados australianos bêbados que, ao ouvirem o choro da bebé, foram roubar leite em pó numa loja próxima..Partiram depois para Alexandria e dali para o Cairo, onde puderam aguentar-se uns tempos graças ao dinheiro enviado de Bournemouth por Louisa Durrell. Lawrence começou por trabalhar na coluna humorística de um jornal inglês até encontrar um emprego fixo na Embaixada do Reino Unido no Cairo. A maternidade isolara Nancy ainda mais e os Durrells sentiam ter poucos ou nenhuns interesses em comum com os membros da comunidade inglesa da cidade, que vivia isolada numa redoma de luxo e racismo no Gezira Sporting Club e no sumptuoso Shepheard's, já celebrado por Eça, lugares que os egípcios estavam proibidos de frequentar..A queda de Tobruk às mãos de Rommel, em Junho de 1942, fez temer o pior e, enquanto Larry permaneceu na embaixada a ajudar a queimar documentos secretos e papéis de Estado, Nancy e outras senhoras inglesas foram retiradas de urgência para Jerusalém, onde ficaram hospedadas nas instalações da YMCA, em condições deploráveis, numa artéria chamada Via Dolorosa. Nancy jamais esqueceu o nome..No final de Julho, com a vitória de Montgomery em El-Alamein, Larry escreveu à mulher dizendo-lhe que poderia voltar a casa em segurança. Nancy disse que não. O casamento terminara, e, com ele, muito do que fora a antiga Corfu, que os alemães, para impedir que caísse nas mãos dos ingleses, flagelaram com vagas sucessivas de bombas incendiárias, destruindo igrejas, edifícios públicos, casas venezianas, quarteirões inteiros. A Pension Suisse, onde os Durrells se tinham alojado ao chegar pela primeira vez à ilha, foi arrasada, e muitos dos amigos ou conhecidos da família morreram no gigantesco incêndio que devorou a Cidade Velha durante mais de três dias..Muitos anos depois, quando procurou determinar ao certo o que a levara àquele gesto tão súbito e tão drástico, Nancy dirá que foi um acontecimento aparentemente trivial e fortuito: em Jerusalém, dois jovens recém-casados tinham-se mudado para uma casa perto da sua, aos poucos ela foi observando o carinho que nutriam um pelo outro e sentiu que nunca teria nada assim parecido com Lawrence Durrell, por muitas juras de amor que este lhe fizesse nas alturas de maior conflito. Foi isso que precipitou a ruptura..Ao ler a carta de Nancy, Larry ficou devastado e correu até Jerusalém para a dissuadir, mas foi em vão. Separaram-se cortesmente, mas, aos poucos, a mágoa e o ressentimento acabariam por levar a melhor e, anos depois, quando O Livro Negro foi republicado, Lawrence retirou a dedicatória que fizera à mulher, um procedimento seguido por outros escritores, como Saramago, que pouco abona sobre o seu carácter. Em Prospero's Cell, o seu retrato de Corfu, como era impossível evitar falar dela, nomeou-a apenas como "N", sem mais..E a tribo Durrell parece ter alinhado com esse ostracismo implacável: na Trilogia de Corfu, e em particular em A Minha Família e Outros Animais, Gerald Durrell não menciona uma vez sequer a sua ex-cunhada, como se esta não tivesse feito parte da vida da família em todos os episódios passados na ilha, como se não tivesse sido ela e Larry, em conjunto, os primeiros a abrir caminho até à ilha e aos seus encantos. "Foi Larry, obviamente, que começou tudo", escreve o seu irmão Gerald logo na primeira página de A Minha Família e Outros Animais, como se a ex-cunhada nunca tivesse existido nem tido um papel determinante em toda a história..Muito provavelmente, sem Nancy não existiria nada daquilo, nem Corfu, nem o sortilégio de Kalami, nem a Casa Branca, ou "casa cor de neve", como lhe chama Gerry, descrevendo-a como uma moradia "decadente, mas extremamente elegante, [que] estava situada entre as oliveiras entorpecidas, e parecia uma jóia do século XVIII". Sem Nancy não existiria nada, nem os Verões mesmo à mão nem sequer os animais que fizeram a infância, a vida adulta e, já agora, a fama e a fortuna de Gerald Durrell. Por isso, e para todos os que se deliciam com as risonhas séries de televisão e com os seus livros, é preciso lembrar que eles assentam numa desprezível mentira..Larry, entregue às delícias das beldades de Alexandria, ou assim fazia crer a todos, acabaria por se casar de novo, com Eve Cohen, para o que teve de obter o divórcio da primeira mulher. O processo arrastou-se, com culpas de ambos, e às tantas os advogados de um e de outro perderam a paciência e quase os abandonaram à sua sorte. Lawrence Durrell esteve vários anos sem ver a filha mais velha - e sem pagar pensão de alimentos..Nancy ficou mais uns tempos pela conturbada Palestina, com trabalhos ocasionais na rádio, como secretária, tradutora, funcionária dos serviços de censura. Conheceu ainda um grande amor, talvez o maior da sua vida, Mike Silver, um homem casado e mais velho do que ela, com uma trajectória biográfica eivada de mistérios (diz-se que poderá ter sido agente secreto), que partiu para a África do Sul e que, ao contrário do que tinham combinado, não enviou os bilhetes para que ela e Penélope fossem ter com ele. Devastada, Nancy acabou por se precipitar num casamento súbito, com Teddy Hodgkin, a relação mais estável e mais tranquila, provavelmente a mais feliz de toda a sua vida..Os anos seguintes de Lawrence Durrell foram de triunfo e tragédia. Escreveu livros famosos, com destaque para a série O Quarteto de Alexandria, de 1957-1960, e O Quinteto de Avinhão, de 1974-1985, foi sério candidato ao Nobel da Literatura, esteve colocado como funcionário do Foreign Office em Rodes, na Argentina e na Jugoslávia (odiou ambas) e finalmente em Chipre, sobre a qual escreveria Limões Amargos, de 1957, para muitos o melhor dos seus "livros insulares". Separou-se de Eve Cohen em 1955 e voltou a casar-se em 1961 com Claude-Marie Vincendon, que conhecera em Chipre e que, tragicamente, morreria de cancro em 1967. Em 1985, o suicídio da filha Sapho, nascida do seu casamento com Eve, fê-lo mergulhar ainda mais no negrume do alcoolismo e da depressão, dos quais nem a escrita nem a atracção pelo budismo o conseguiram resgatar. Tendo fixado residência na Provença, casou-se pela quarta vez em 1973, com Ghislaine de Boysson, da qual se divorciaria em 1979. Morreu em Sommières em 1990, aos 78 anos, a mesma idade com que a sua mãe falecera, em 1964..Gerald tornou-se um zoólogo e um escritor famoso, que investiu o dinheiro ganho com os seus livros num zoo e santuário animal na ilha de Jersey..Leslie, o menos conhecido e o menos bem-sucedido da família, teve uma relação algo clandestina com Maria Condos, uma mulher de Corfu, por sinal feiíssima, de quem teve um filho, Anthony, em 1945, mas depois acabou por se envolver, e duradouramente, com a dona de um pub em Bournemouth, Doris, uma mulher dominadora e poderosa, onze anos mais velha do que ele. Foram juntos para o Quénia, em busca da fortuna, mas tiveram problemas com a justiça por desvio de dinheiros e regressaram a Inglaterra em 1968, praticamente na miséria. Nos últimos tempos de vida, Leslie era porteiro de um condomínio perto de Marble Arch, em Londres. Morreu repentinamente em 1982, de ataque cardíaco, num bar de Notting Hill Gate onde fazia crer a todos que era engenheiro civil de profissão..Margo, a rapariga, depois de se ter casado com um intrépido piloto de aviação, Jack Breeze, teve um percurso atribulado durante a guerra, que passou pela África do Sul, por Moçambique e pela Etiópia, onde chegou a estar internada num campo de prisioneiros italiano e onde deu à luz, numa cesariana de urgência, o seu primeiro filho, Gerald, assim chamado em homenagem ao tio. Durante uns tempos, morou com Jack no Cairo, a três horas de comboio de Alexandria, onde vivia Larry, mas, estranhamente, nunca se encontraram. Mais tarde, divorciou-se, voltou a casar-se, divorciou-se de novo e fixou-se em Bournemouth, onde morreu no princípio de 2007, aos 87 anos..Larry regressou à ilha em 1966, Gerry fez o mesmo no ano seguinte, para fazer um filme para a BBC. Achou-a destruída pelo turismo de massas e sentiu-se culpado pelo contributo que os seus livros deram para o caos reinante. Nada disso o impediu de concluir o documentário promocional Corfu, Garden of the Gods..Na memória de todos eles, sem excepção, para sempre ficou Kalami e a sua casa cor de neve, que Lawrence evocaria em Prospero's Cell, o hino de amor a Corfu que escreveu durante a guerra, quando se encontrava em Alexandria: "Alugámos a casa de um velho pescador no extremo norte da ilha - Kalami. A dez milhas marítimas da cidade e a cerca de 30 quilómetros por estrada, tem o encanto próprio dos lugares isolados. É uma casa branca, colocada como um dado de jogar no cimo de um venerável rochedo, coberto de cicatrizes do vento e das águas. Atrás dela, a linha da colina corre até ao céu, fazendo projectar a sombra dos ciprestes e das oliveiras sobre o quarto em que agora me sento e escrevo. Estamos num promontório cuja maravilhosa superfície é coberta de azeite e de ilex, e que tem a forma de um mons pubis. Esta será a nossa casa bem-amada. Um mundo. Corcyra [Corfu, em grego].".*** Arrendei neste Verão a Casa Branca de Kalami, hoje muito diferente do que no tempo dos Durrells, ainda que a presença destes talvez se faça sentir agora de um modo mais intenso ou visível do que há quase cem anos. Não há turista que ali vá sem saber o nome deles e sem lhes procurar a morada, mesmo desconhecendo ao certo quem eram e o que fizeram na vida. Ignorando, provavelmente, que era naquelas rochas suaves, mesmo ao lado da casa, que Nancy e Larry tomavam o pequeno-almoço de manhãzinha, que Henry Miller se banhava nu e viu o mar pela primeira vez em vinte anos, que Veronika e Dorothy, as bailarinas, dançavam, que Theonides observava as estrelas e os cometas. Ignorando, provavelmente, que Spiros Americano desceu muitas vezes aquela estradinha poeirenta que conduz à casa, transportando Margot e Gerry, ainda crianças. Ignorando, provavelmente, que foi dali que Leslie levou a família para um inesquecível passeio de barco ao lago Antiniotissa, um lugar tão mágico e tão belo que a mãe Louisa lhes disse que era ali que um dia queria ser enterrada..A Casa Branca ainda pertence à família de Totsa, o carpinteiro que a arrendou nos anos 30 àquela tribo de ingleses excêntricos que então ninguém adivinhava que um dia viriam a ser famosos. Não foi a fama que lá procuraram, é certo, antes a felicidade. É duvidoso que a tenham encontrado (pelo menos, da forma perene e duradoura que ingenuamente pensavam). Em todo o caso, foram felizes, muito, nos dias que ali estiveram, diante do mar de Corfu - sempre com o Verão mesmo à mão..À Paula e ao Rui Lima, que nunca tendo ido a Kalami, é como se lá tivessem estado sempre..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
"Em que é que a Grécia difere da Itália e da Espanha? É a luz!" Lawrence Durrell, As Ilhas Gregas, 1978.A filha dos Durrells nasceu a 4 de Junho de 1940, no preciso dia em que os Aliados evacuavam Dunquerque. Chamaram-lhe Penélope, pois o pai, sobretudo ele, queria um nome helénico para a filha. Pouco antes do nascimento, Nancy tinha ido passar uma temporada a Inglaterra, na companhia da sogra e da cunhada, Margo, mas, por razões ainda hoje discutidas, decidiu regressar inopinadamente a Atenas, o que a obrigou a uma longa e pavorosa travessia de comboio por França no preciso instante em que os nazis a invadiam. Por ordem dos alemães, o comboio em que seguia foi alvo de diversas paragens, algumas delas de várias horas, e a jornada durou ao todo mais de três dias..A decisão de viajar no último mês de gravidez permanece inexplicável. Larry disse que ela já estava farta de Inglaterra, outros afirmam que Nancy regressou a Atenas apenas para lhe satisfazer o capricho de ter o filho nascido em solo grego, mas, como observa Joanna Hodgkin em Amateurs in Eden, a hipótese mais plausível, confirmada por várias cartas, é a de que, apesar de todos os dramas e de todas as desavenças, ambos ainda gostavam muito um do outro e sofriam horrores com a separação e a distância (o que não impediu Larry de, não muito depois, partir para Mykonos em excursão com três amigos...)..O avanço dos alemães sobre a Grécia precipitou a fuga para Creta, uma viagem com contornos épicos, quase trágicos, que chegou a ser noticiada nos jornais ingleses da época. Nancy e a filha recém-nascida andaram dias praticamente à deriva no Mediterrâneo, com um frio atroz e pouco ou nada que comer. Mesmo à chegada a Creta, os problemas de falta de alimentos não cessaram, valendo-lhes o auxílio de dois soldados australianos bêbados que, ao ouvirem o choro da bebé, foram roubar leite em pó numa loja próxima..Partiram depois para Alexandria e dali para o Cairo, onde puderam aguentar-se uns tempos graças ao dinheiro enviado de Bournemouth por Louisa Durrell. Lawrence começou por trabalhar na coluna humorística de um jornal inglês até encontrar um emprego fixo na Embaixada do Reino Unido no Cairo. A maternidade isolara Nancy ainda mais e os Durrells sentiam ter poucos ou nenhuns interesses em comum com os membros da comunidade inglesa da cidade, que vivia isolada numa redoma de luxo e racismo no Gezira Sporting Club e no sumptuoso Shepheard's, já celebrado por Eça, lugares que os egípcios estavam proibidos de frequentar..A queda de Tobruk às mãos de Rommel, em Junho de 1942, fez temer o pior e, enquanto Larry permaneceu na embaixada a ajudar a queimar documentos secretos e papéis de Estado, Nancy e outras senhoras inglesas foram retiradas de urgência para Jerusalém, onde ficaram hospedadas nas instalações da YMCA, em condições deploráveis, numa artéria chamada Via Dolorosa. Nancy jamais esqueceu o nome..No final de Julho, com a vitória de Montgomery em El-Alamein, Larry escreveu à mulher dizendo-lhe que poderia voltar a casa em segurança. Nancy disse que não. O casamento terminara, e, com ele, muito do que fora a antiga Corfu, que os alemães, para impedir que caísse nas mãos dos ingleses, flagelaram com vagas sucessivas de bombas incendiárias, destruindo igrejas, edifícios públicos, casas venezianas, quarteirões inteiros. A Pension Suisse, onde os Durrells se tinham alojado ao chegar pela primeira vez à ilha, foi arrasada, e muitos dos amigos ou conhecidos da família morreram no gigantesco incêndio que devorou a Cidade Velha durante mais de três dias..Muitos anos depois, quando procurou determinar ao certo o que a levara àquele gesto tão súbito e tão drástico, Nancy dirá que foi um acontecimento aparentemente trivial e fortuito: em Jerusalém, dois jovens recém-casados tinham-se mudado para uma casa perto da sua, aos poucos ela foi observando o carinho que nutriam um pelo outro e sentiu que nunca teria nada assim parecido com Lawrence Durrell, por muitas juras de amor que este lhe fizesse nas alturas de maior conflito. Foi isso que precipitou a ruptura..Ao ler a carta de Nancy, Larry ficou devastado e correu até Jerusalém para a dissuadir, mas foi em vão. Separaram-se cortesmente, mas, aos poucos, a mágoa e o ressentimento acabariam por levar a melhor e, anos depois, quando O Livro Negro foi republicado, Lawrence retirou a dedicatória que fizera à mulher, um procedimento seguido por outros escritores, como Saramago, que pouco abona sobre o seu carácter. Em Prospero's Cell, o seu retrato de Corfu, como era impossível evitar falar dela, nomeou-a apenas como "N", sem mais..E a tribo Durrell parece ter alinhado com esse ostracismo implacável: na Trilogia de Corfu, e em particular em A Minha Família e Outros Animais, Gerald Durrell não menciona uma vez sequer a sua ex-cunhada, como se esta não tivesse feito parte da vida da família em todos os episódios passados na ilha, como se não tivesse sido ela e Larry, em conjunto, os primeiros a abrir caminho até à ilha e aos seus encantos. "Foi Larry, obviamente, que começou tudo", escreve o seu irmão Gerald logo na primeira página de A Minha Família e Outros Animais, como se a ex-cunhada nunca tivesse existido nem tido um papel determinante em toda a história..Muito provavelmente, sem Nancy não existiria nada daquilo, nem Corfu, nem o sortilégio de Kalami, nem a Casa Branca, ou "casa cor de neve", como lhe chama Gerry, descrevendo-a como uma moradia "decadente, mas extremamente elegante, [que] estava situada entre as oliveiras entorpecidas, e parecia uma jóia do século XVIII". Sem Nancy não existiria nada, nem os Verões mesmo à mão nem sequer os animais que fizeram a infância, a vida adulta e, já agora, a fama e a fortuna de Gerald Durrell. Por isso, e para todos os que se deliciam com as risonhas séries de televisão e com os seus livros, é preciso lembrar que eles assentam numa desprezível mentira..Larry, entregue às delícias das beldades de Alexandria, ou assim fazia crer a todos, acabaria por se casar de novo, com Eve Cohen, para o que teve de obter o divórcio da primeira mulher. O processo arrastou-se, com culpas de ambos, e às tantas os advogados de um e de outro perderam a paciência e quase os abandonaram à sua sorte. Lawrence Durrell esteve vários anos sem ver a filha mais velha - e sem pagar pensão de alimentos..Nancy ficou mais uns tempos pela conturbada Palestina, com trabalhos ocasionais na rádio, como secretária, tradutora, funcionária dos serviços de censura. Conheceu ainda um grande amor, talvez o maior da sua vida, Mike Silver, um homem casado e mais velho do que ela, com uma trajectória biográfica eivada de mistérios (diz-se que poderá ter sido agente secreto), que partiu para a África do Sul e que, ao contrário do que tinham combinado, não enviou os bilhetes para que ela e Penélope fossem ter com ele. Devastada, Nancy acabou por se precipitar num casamento súbito, com Teddy Hodgkin, a relação mais estável e mais tranquila, provavelmente a mais feliz de toda a sua vida..Os anos seguintes de Lawrence Durrell foram de triunfo e tragédia. Escreveu livros famosos, com destaque para a série O Quarteto de Alexandria, de 1957-1960, e O Quinteto de Avinhão, de 1974-1985, foi sério candidato ao Nobel da Literatura, esteve colocado como funcionário do Foreign Office em Rodes, na Argentina e na Jugoslávia (odiou ambas) e finalmente em Chipre, sobre a qual escreveria Limões Amargos, de 1957, para muitos o melhor dos seus "livros insulares". Separou-se de Eve Cohen em 1955 e voltou a casar-se em 1961 com Claude-Marie Vincendon, que conhecera em Chipre e que, tragicamente, morreria de cancro em 1967. Em 1985, o suicídio da filha Sapho, nascida do seu casamento com Eve, fê-lo mergulhar ainda mais no negrume do alcoolismo e da depressão, dos quais nem a escrita nem a atracção pelo budismo o conseguiram resgatar. Tendo fixado residência na Provença, casou-se pela quarta vez em 1973, com Ghislaine de Boysson, da qual se divorciaria em 1979. Morreu em Sommières em 1990, aos 78 anos, a mesma idade com que a sua mãe falecera, em 1964..Gerald tornou-se um zoólogo e um escritor famoso, que investiu o dinheiro ganho com os seus livros num zoo e santuário animal na ilha de Jersey..Leslie, o menos conhecido e o menos bem-sucedido da família, teve uma relação algo clandestina com Maria Condos, uma mulher de Corfu, por sinal feiíssima, de quem teve um filho, Anthony, em 1945, mas depois acabou por se envolver, e duradouramente, com a dona de um pub em Bournemouth, Doris, uma mulher dominadora e poderosa, onze anos mais velha do que ele. Foram juntos para o Quénia, em busca da fortuna, mas tiveram problemas com a justiça por desvio de dinheiros e regressaram a Inglaterra em 1968, praticamente na miséria. Nos últimos tempos de vida, Leslie era porteiro de um condomínio perto de Marble Arch, em Londres. Morreu repentinamente em 1982, de ataque cardíaco, num bar de Notting Hill Gate onde fazia crer a todos que era engenheiro civil de profissão..Margo, a rapariga, depois de se ter casado com um intrépido piloto de aviação, Jack Breeze, teve um percurso atribulado durante a guerra, que passou pela África do Sul, por Moçambique e pela Etiópia, onde chegou a estar internada num campo de prisioneiros italiano e onde deu à luz, numa cesariana de urgência, o seu primeiro filho, Gerald, assim chamado em homenagem ao tio. Durante uns tempos, morou com Jack no Cairo, a três horas de comboio de Alexandria, onde vivia Larry, mas, estranhamente, nunca se encontraram. Mais tarde, divorciou-se, voltou a casar-se, divorciou-se de novo e fixou-se em Bournemouth, onde morreu no princípio de 2007, aos 87 anos..Larry regressou à ilha em 1966, Gerry fez o mesmo no ano seguinte, para fazer um filme para a BBC. Achou-a destruída pelo turismo de massas e sentiu-se culpado pelo contributo que os seus livros deram para o caos reinante. Nada disso o impediu de concluir o documentário promocional Corfu, Garden of the Gods..Na memória de todos eles, sem excepção, para sempre ficou Kalami e a sua casa cor de neve, que Lawrence evocaria em Prospero's Cell, o hino de amor a Corfu que escreveu durante a guerra, quando se encontrava em Alexandria: "Alugámos a casa de um velho pescador no extremo norte da ilha - Kalami. A dez milhas marítimas da cidade e a cerca de 30 quilómetros por estrada, tem o encanto próprio dos lugares isolados. É uma casa branca, colocada como um dado de jogar no cimo de um venerável rochedo, coberto de cicatrizes do vento e das águas. Atrás dela, a linha da colina corre até ao céu, fazendo projectar a sombra dos ciprestes e das oliveiras sobre o quarto em que agora me sento e escrevo. Estamos num promontório cuja maravilhosa superfície é coberta de azeite e de ilex, e que tem a forma de um mons pubis. Esta será a nossa casa bem-amada. Um mundo. Corcyra [Corfu, em grego].".*** Arrendei neste Verão a Casa Branca de Kalami, hoje muito diferente do que no tempo dos Durrells, ainda que a presença destes talvez se faça sentir agora de um modo mais intenso ou visível do que há quase cem anos. Não há turista que ali vá sem saber o nome deles e sem lhes procurar a morada, mesmo desconhecendo ao certo quem eram e o que fizeram na vida. Ignorando, provavelmente, que era naquelas rochas suaves, mesmo ao lado da casa, que Nancy e Larry tomavam o pequeno-almoço de manhãzinha, que Henry Miller se banhava nu e viu o mar pela primeira vez em vinte anos, que Veronika e Dorothy, as bailarinas, dançavam, que Theonides observava as estrelas e os cometas. Ignorando, provavelmente, que Spiros Americano desceu muitas vezes aquela estradinha poeirenta que conduz à casa, transportando Margot e Gerry, ainda crianças. Ignorando, provavelmente, que foi dali que Leslie levou a família para um inesquecível passeio de barco ao lago Antiniotissa, um lugar tão mágico e tão belo que a mãe Louisa lhes disse que era ali que um dia queria ser enterrada..A Casa Branca ainda pertence à família de Totsa, o carpinteiro que a arrendou nos anos 30 àquela tribo de ingleses excêntricos que então ninguém adivinhava que um dia viriam a ser famosos. Não foi a fama que lá procuraram, é certo, antes a felicidade. É duvidoso que a tenham encontrado (pelo menos, da forma perene e duradoura que ingenuamente pensavam). Em todo o caso, foram felizes, muito, nos dias que ali estiveram, diante do mar de Corfu - sempre com o Verão mesmo à mão..À Paula e ao Rui Lima, que nunca tendo ido a Kalami, é como se lá tivessem estado sempre..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.