Nancy gostava dos ventos, sabia-os todos de cor. O mistral, forte e frio, precipitando-se do sul de França sobre o golfo de Lyon e daí para o Mediterrâneo; a tramontana, soprada de norte, assim baptizada por vir além das montanhas; o siroco ou, melhor, os vários sirocos, todos escaldantes, que do Sara atingem com violência a Itália, a Grécia e até a Riviera Francesa, por vezes. De todos eles, o preferido era o kareklas, o único com um nome grego e, talvez por isso, o da sua maior devoção. A palavra também quer dizer "cadeira", porventura porque o kareklas, à sua passagem, arrasta consigo as mesas e as cadeiras das esplanadas (essa era, pelo menos, a interpretação dela)..Eram outros, e mais agrestes, os ventos que agora sopravam em seu redor; ventos de guerra, oriundos da Alemanha e da Itália, mas também ventos de incerteza e dúvida sobre o seu casamento com Lawrence Durrell. Ainda que de livre vontade, o aborto que fizera em 1936, já em Corfu, deixara marcas nos dois, muito mais profundas do que então ambos julgaram..O temperamento de Larry, por sua vez, e a sua personalidade autocêntrica faziam sentir-se a dia após dia e cada transe de forma mais tirânica, aos poucos sufocante. Apesar das muitas declarações de amor, o desprezo a que a votava, e ao seu trabalho, tornara-se insuportável. Mimado pela mãe desde criança, acossado por frequentes sentimentos de abandono desde que fora internado num colégio inglês aos 9 anos, com o resto da família longe na Índia, Lawrence não mostrava o menor apreço pela carreira artística da mulher e, muitas vezes, parecia até ter vergonha da sua presença. Nas cartas que dirigiu a Henry Miller, ao longo de meses, referiu-se a ela como "a minha esposa" ou em termos parecidos, sem nunca dizer o seu nome, até ao dia em que Miller, incomodado com tal reserva, lho perguntou..Nancy respondia a isso adoptando uma postura reservada e silenciosa, de falsa indiferença, e nos primeiros encontros que tiveram em Paris com Henry Miller e com Anaïs Nin, estes ficaram perplexos com o mutismo daquela deusa loura, em contraste com a extroversão trepidante do seu marido. Larry tinha, para mais, enormes complexos quanto à sua estatura, odiava que a figura alta e esbelta de Nancy realçasse as suas falhas, ou o que julgava sê-las, e perdia-se de ciúmes sempre que algum homem se aproximava da sua mulher, enquanto reclamava para si a maior das liberdades. Em Paris, teve um breve affaire com Teresa Epstein, que alguns dizem ter sido o modelo para a Justine da novela homónima que em 1957 inaugurará O Quarteto de Alexandria. Nancy não o soube, nem na altura ponderava sequer o divórcio, mas soube, e sentiu-o na pele, que Larry tinha acessos violentos de fúria, e chegou a agredi-la numa noite horrível em Paris..Na manhã seguinte, quando foi a casa dos Durrells, Henry Miller apercebeu-se de tudo, mas não fez perguntas. Melhor dito, perguntou apenas se o estrago se devera a qualquer discussão pelo facto de ser Nancy a pagar do seu bolso as edições, pela Obelisk Press, dos livros do marido, do próprio Miller e de Anaïs Nin, o que não impedia que, de tempos a tempos, Larry a abandonasse, informando-a laconicamente de que ia passar umas semanas fora. Quando Nancy lhe pagou na mesma moeda e, estando ele ausente, foi esquiar para um vilarejo remoto nos confins da Áustria, Lawrence apareceu lá inopinadamente, a altas horas da noite, para lhe fazer uma cena, dizendo que tinha vindo a pé desde Paris, uma descarada mentira, como é óbvio. Reconciliaram-se por instantes, ficaram uns dias por lá - e Nancy pagou a conta, claro..Apesar do "cataclismo iminente", como Larry chamava aos prenúncios de guerra, voltaram a Corfu no Verão de 1938. Com eles foram duas bailarinas que Larry conhecera num clube em Londres, uma das quais faria depois carreira nos Ballets Russes, e o improvável grupo passou umas férias memoráveis, tal como uma delas recordou à filha de Nancy, Joanna Hodgkin, no livro Amateurs in Eden. The Story of a Bohemian Marriage: Nancy and Lawrence Durrell. Acordavam cedo, por volta das seis da manhã, para um primeiro e longo banho de mar, seguido do pequeno-almoço e de uma jornada de trabalho calmo: Larry escrevia, Nancy desenhava e pintava, Veronica e Dorothy faziam exercícios de ginástica e dança ou cirandavam pelas redondezas..Aos poucos, Nancy começou a sentir-se excluída desse círculo mágico, ainda que na altura não tivesse sabido que o marido se envolvera fugazmente com uma das convidadas ("atrás de uma rocha", confessar-lhe-á ele mais tarde). Ultrapassado o trauma do aborto, sonhava agora com um filho, talvez para salvar o casamento em ruínas. Larry mostrava-se reticente, num breve assomo de sensatez, e a ideia foi sendo adiada por alguns meses..A crise de Munique, em Setembro desse ano, mostrara ao mundo que o caminho da guerra era inevitável, ou quase. Miller abandonou Paris rumo a Bordéus e daí para Marselha, onde julgava ser mais fácil apanhar um barco para a América em caso de necessidade. Além de um pacifista de toda a vida, o autor de Sexus era um cobarde assumido, o que não lhe deixava de suscitar problemas de consciência. Ao ver-se encurralado em Marselha, entrou em depressão profunda, agravada pelo facto de não ter dinheiro para, em caso de urgência, fugir para o seu país natal. Nancy, como sempre, veio em seu auxílio, dizendo-lhe que lhe emprestaria o dinheiro necessário para regressar a casa. Apesar de não o ter usado, Henry nunca se esqueceu da generosidade do gesto, como nunca se esqueceu de que foi Nancy que lhe financiou uma ida a Londres para espairecer e passar uns dias com eles, longe da solidão marselhesa..Foi então que combinaram irem todos até Corfu, um velho sonho de Larry. Henry odiava viajar e não tomava um banho de mar há quase vinte anos, mas, em Julho de 1939, pôs-se a caminho para aquele que seria mais um, o último, dos longos verões de Kalami. A paixão, imediata, ficou registada em O Colosso de Maroussi, um dos livros mais singulares de Henry Miller, certamente o mais poético, para muitos o mais belo. Em Kalami, dirá ele mais tarde, o casal Durrell vivia no mar, nadando como golfinhos o dia inteiro. ("O Durrell e a mulher, a Nancy, pareciam um casal de golfinhos; viviam praticamente na água.").Depois, tiveram todos um Verão mesmo à mão: passeios ao longo da costa no caíque dos Durrells, o Van Norden, assim baptizado em homenagem a uma das personagens de Trópico de Câncer, piqueniques nos areais de praias semidesérticas, longas sestas à sombra dos pinheiros antigos, noites quentes, sarracenas, de contemplação das estrelas na companhia de Theonides, que conhecia os astros e os seus mistérios. Miller recordou-o assim: "Sabia tudo sobre plantas, flores, árvores, rochas, minerais, formas inferiores de vida animal, micróbios, doenças, estrelas, planetas, cometas, e assim por diante. Nunca conheci homem mais culto, e ainda por cima é um santo.".Em Agosto, o rei regressou de súbito a Atenas e o Exército grego foi mobilizado. A guerra estava por dias. Louisa Durrell, a mãe, já tinha partido para Inglaterra, pois o banco informara-a de que não podia mais garantir as transferências de dinheiro para a Grécia. Larry e Nancy tomaram a dolorosa decisão de se refugiarem na relativa segurança de Atenas..Na última tarde em Kalami, sentaram-se a contemplar o mar à varanda da Casa Branca, enquanto uma enorme massa de nuvens se avolumava na costa da Albânia. De súbito, levantou-se um vento novo, imprevisto e forte, que vergou pinheiros, oliveiras e até os ciprestes das colinas circundantes. Os filhos de Totsa, o proprietário da Casa Branca, choraram incessantemente ao verem os adultos despedirem-se naquele tom amargo. Só Larry regressaria, muitos anos depois, em 1966, quando já era um escritor consagrado, falado para o Nobel, e quando o mundo mudara radicalmente, por efeito da guerra e de outros movimentos terrestres. Nancy nunca voltou a Corfu..Na manhã seguinte à partida, tiveram uma discussão tremenda ao pequeno-almoço, em Patras, tão tremenda que o próprio Miller a recorda nas páginas de O Colosso de Maroussi: "Então, desencadeou-se uma terrível altercação entre o Durrell e a mulher. Assisti à discussão de mãos atadas, sem poder fazer outra coisa que não fosse ter pena deles do fundo do meu coração. Era uma querela privada, em que a guerra era usada como camuflagem." Larry já não tinha pudor em insultar e maltratar a mulher em público, à frente dos amigos, e o mal-estar era tal que, com saudades de Kalami, Miller decidiu regressar a Corfu para uma estada solitária de seis semanas..Foi pouco depois de chegarem a Atenas que Nancy soube que estava grávida. Apesar de não ser imprevista, o timing daquela gravidez não podia ser mais desastroso, com uma guerra declarada entre as maiores potências da Europa e a Itália, e a Grécia prestes a ser arrastada para o conflito. O dinheiro de Nancy começou a escassear e, pela primeira vez em muitos anos, Larry teve de arranjar um emprego. Trabalhou episodicamente na embaixada britânica, a sua primeira incursão na diplomacia, onde nos anos vindouros fará carreira e que, em 1957, lhe dará pretexto para a escrita de Esprit de Corps, traduzido entre nós como Cenas da Vida Diplomática. Depois, trabalhou como professor no British Council de Atenas, cidade onde os Durrells fizeram amizades fundas entre a intelectualidade local, com destaque para George Katsimbalis, o escritor, editor e patrono da "geração de 30" que Miller imortalizará como "o colosso de Maroussi"..Miller regressou a Atenas, vindo de Kalami, e, com o Natal a aproximar-se, ele, Larry e Nancy decidiram fazer uma viagem pela Grécia antes de aquele partir para a América. Por essa altura, receberam uma carta de Corfu, dando-lhes a triste notícia da morte do amado Spiros, o chauffeur e amigo que lhes desvendara os segredos da ilha. O périplo pela Grécia seria desastroso, flagelado pelo mau tempo e pela expectativa de guerra. No final da jornada, quando se despediram no porto do Pireu ("A impressão mais forte que me deixou a Grécia foi a de ser um mundo feito à medida do homem", disse Henry Miller), ela teve o pressentimento de que aquela seria a última vez que se viam. Tinha razão: Miller continuou a dar-se e a corresponder-se com Larry, mas Nancy nunca mais o voltou a ver..(Continua) Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Nancy gostava dos ventos, sabia-os todos de cor. O mistral, forte e frio, precipitando-se do sul de França sobre o golfo de Lyon e daí para o Mediterrâneo; a tramontana, soprada de norte, assim baptizada por vir além das montanhas; o siroco ou, melhor, os vários sirocos, todos escaldantes, que do Sara atingem com violência a Itália, a Grécia e até a Riviera Francesa, por vezes. De todos eles, o preferido era o kareklas, o único com um nome grego e, talvez por isso, o da sua maior devoção. A palavra também quer dizer "cadeira", porventura porque o kareklas, à sua passagem, arrasta consigo as mesas e as cadeiras das esplanadas (essa era, pelo menos, a interpretação dela)..Eram outros, e mais agrestes, os ventos que agora sopravam em seu redor; ventos de guerra, oriundos da Alemanha e da Itália, mas também ventos de incerteza e dúvida sobre o seu casamento com Lawrence Durrell. Ainda que de livre vontade, o aborto que fizera em 1936, já em Corfu, deixara marcas nos dois, muito mais profundas do que então ambos julgaram..O temperamento de Larry, por sua vez, e a sua personalidade autocêntrica faziam sentir-se a dia após dia e cada transe de forma mais tirânica, aos poucos sufocante. Apesar das muitas declarações de amor, o desprezo a que a votava, e ao seu trabalho, tornara-se insuportável. Mimado pela mãe desde criança, acossado por frequentes sentimentos de abandono desde que fora internado num colégio inglês aos 9 anos, com o resto da família longe na Índia, Lawrence não mostrava o menor apreço pela carreira artística da mulher e, muitas vezes, parecia até ter vergonha da sua presença. Nas cartas que dirigiu a Henry Miller, ao longo de meses, referiu-se a ela como "a minha esposa" ou em termos parecidos, sem nunca dizer o seu nome, até ao dia em que Miller, incomodado com tal reserva, lho perguntou..Nancy respondia a isso adoptando uma postura reservada e silenciosa, de falsa indiferença, e nos primeiros encontros que tiveram em Paris com Henry Miller e com Anaïs Nin, estes ficaram perplexos com o mutismo daquela deusa loura, em contraste com a extroversão trepidante do seu marido. Larry tinha, para mais, enormes complexos quanto à sua estatura, odiava que a figura alta e esbelta de Nancy realçasse as suas falhas, ou o que julgava sê-las, e perdia-se de ciúmes sempre que algum homem se aproximava da sua mulher, enquanto reclamava para si a maior das liberdades. Em Paris, teve um breve affaire com Teresa Epstein, que alguns dizem ter sido o modelo para a Justine da novela homónima que em 1957 inaugurará O Quarteto de Alexandria. Nancy não o soube, nem na altura ponderava sequer o divórcio, mas soube, e sentiu-o na pele, que Larry tinha acessos violentos de fúria, e chegou a agredi-la numa noite horrível em Paris..Na manhã seguinte, quando foi a casa dos Durrells, Henry Miller apercebeu-se de tudo, mas não fez perguntas. Melhor dito, perguntou apenas se o estrago se devera a qualquer discussão pelo facto de ser Nancy a pagar do seu bolso as edições, pela Obelisk Press, dos livros do marido, do próprio Miller e de Anaïs Nin, o que não impedia que, de tempos a tempos, Larry a abandonasse, informando-a laconicamente de que ia passar umas semanas fora. Quando Nancy lhe pagou na mesma moeda e, estando ele ausente, foi esquiar para um vilarejo remoto nos confins da Áustria, Lawrence apareceu lá inopinadamente, a altas horas da noite, para lhe fazer uma cena, dizendo que tinha vindo a pé desde Paris, uma descarada mentira, como é óbvio. Reconciliaram-se por instantes, ficaram uns dias por lá - e Nancy pagou a conta, claro..Apesar do "cataclismo iminente", como Larry chamava aos prenúncios de guerra, voltaram a Corfu no Verão de 1938. Com eles foram duas bailarinas que Larry conhecera num clube em Londres, uma das quais faria depois carreira nos Ballets Russes, e o improvável grupo passou umas férias memoráveis, tal como uma delas recordou à filha de Nancy, Joanna Hodgkin, no livro Amateurs in Eden. The Story of a Bohemian Marriage: Nancy and Lawrence Durrell. Acordavam cedo, por volta das seis da manhã, para um primeiro e longo banho de mar, seguido do pequeno-almoço e de uma jornada de trabalho calmo: Larry escrevia, Nancy desenhava e pintava, Veronica e Dorothy faziam exercícios de ginástica e dança ou cirandavam pelas redondezas..Aos poucos, Nancy começou a sentir-se excluída desse círculo mágico, ainda que na altura não tivesse sabido que o marido se envolvera fugazmente com uma das convidadas ("atrás de uma rocha", confessar-lhe-á ele mais tarde). Ultrapassado o trauma do aborto, sonhava agora com um filho, talvez para salvar o casamento em ruínas. Larry mostrava-se reticente, num breve assomo de sensatez, e a ideia foi sendo adiada por alguns meses..A crise de Munique, em Setembro desse ano, mostrara ao mundo que o caminho da guerra era inevitável, ou quase. Miller abandonou Paris rumo a Bordéus e daí para Marselha, onde julgava ser mais fácil apanhar um barco para a América em caso de necessidade. Além de um pacifista de toda a vida, o autor de Sexus era um cobarde assumido, o que não lhe deixava de suscitar problemas de consciência. Ao ver-se encurralado em Marselha, entrou em depressão profunda, agravada pelo facto de não ter dinheiro para, em caso de urgência, fugir para o seu país natal. Nancy, como sempre, veio em seu auxílio, dizendo-lhe que lhe emprestaria o dinheiro necessário para regressar a casa. Apesar de não o ter usado, Henry nunca se esqueceu da generosidade do gesto, como nunca se esqueceu de que foi Nancy que lhe financiou uma ida a Londres para espairecer e passar uns dias com eles, longe da solidão marselhesa..Foi então que combinaram irem todos até Corfu, um velho sonho de Larry. Henry odiava viajar e não tomava um banho de mar há quase vinte anos, mas, em Julho de 1939, pôs-se a caminho para aquele que seria mais um, o último, dos longos verões de Kalami. A paixão, imediata, ficou registada em O Colosso de Maroussi, um dos livros mais singulares de Henry Miller, certamente o mais poético, para muitos o mais belo. Em Kalami, dirá ele mais tarde, o casal Durrell vivia no mar, nadando como golfinhos o dia inteiro. ("O Durrell e a mulher, a Nancy, pareciam um casal de golfinhos; viviam praticamente na água.").Depois, tiveram todos um Verão mesmo à mão: passeios ao longo da costa no caíque dos Durrells, o Van Norden, assim baptizado em homenagem a uma das personagens de Trópico de Câncer, piqueniques nos areais de praias semidesérticas, longas sestas à sombra dos pinheiros antigos, noites quentes, sarracenas, de contemplação das estrelas na companhia de Theonides, que conhecia os astros e os seus mistérios. Miller recordou-o assim: "Sabia tudo sobre plantas, flores, árvores, rochas, minerais, formas inferiores de vida animal, micróbios, doenças, estrelas, planetas, cometas, e assim por diante. Nunca conheci homem mais culto, e ainda por cima é um santo.".Em Agosto, o rei regressou de súbito a Atenas e o Exército grego foi mobilizado. A guerra estava por dias. Louisa Durrell, a mãe, já tinha partido para Inglaterra, pois o banco informara-a de que não podia mais garantir as transferências de dinheiro para a Grécia. Larry e Nancy tomaram a dolorosa decisão de se refugiarem na relativa segurança de Atenas..Na última tarde em Kalami, sentaram-se a contemplar o mar à varanda da Casa Branca, enquanto uma enorme massa de nuvens se avolumava na costa da Albânia. De súbito, levantou-se um vento novo, imprevisto e forte, que vergou pinheiros, oliveiras e até os ciprestes das colinas circundantes. Os filhos de Totsa, o proprietário da Casa Branca, choraram incessantemente ao verem os adultos despedirem-se naquele tom amargo. Só Larry regressaria, muitos anos depois, em 1966, quando já era um escritor consagrado, falado para o Nobel, e quando o mundo mudara radicalmente, por efeito da guerra e de outros movimentos terrestres. Nancy nunca voltou a Corfu..Na manhã seguinte à partida, tiveram uma discussão tremenda ao pequeno-almoço, em Patras, tão tremenda que o próprio Miller a recorda nas páginas de O Colosso de Maroussi: "Então, desencadeou-se uma terrível altercação entre o Durrell e a mulher. Assisti à discussão de mãos atadas, sem poder fazer outra coisa que não fosse ter pena deles do fundo do meu coração. Era uma querela privada, em que a guerra era usada como camuflagem." Larry já não tinha pudor em insultar e maltratar a mulher em público, à frente dos amigos, e o mal-estar era tal que, com saudades de Kalami, Miller decidiu regressar a Corfu para uma estada solitária de seis semanas..Foi pouco depois de chegarem a Atenas que Nancy soube que estava grávida. Apesar de não ser imprevista, o timing daquela gravidez não podia ser mais desastroso, com uma guerra declarada entre as maiores potências da Europa e a Itália, e a Grécia prestes a ser arrastada para o conflito. O dinheiro de Nancy começou a escassear e, pela primeira vez em muitos anos, Larry teve de arranjar um emprego. Trabalhou episodicamente na embaixada britânica, a sua primeira incursão na diplomacia, onde nos anos vindouros fará carreira e que, em 1957, lhe dará pretexto para a escrita de Esprit de Corps, traduzido entre nós como Cenas da Vida Diplomática. Depois, trabalhou como professor no British Council de Atenas, cidade onde os Durrells fizeram amizades fundas entre a intelectualidade local, com destaque para George Katsimbalis, o escritor, editor e patrono da "geração de 30" que Miller imortalizará como "o colosso de Maroussi"..Miller regressou a Atenas, vindo de Kalami, e, com o Natal a aproximar-se, ele, Larry e Nancy decidiram fazer uma viagem pela Grécia antes de aquele partir para a América. Por essa altura, receberam uma carta de Corfu, dando-lhes a triste notícia da morte do amado Spiros, o chauffeur e amigo que lhes desvendara os segredos da ilha. O périplo pela Grécia seria desastroso, flagelado pelo mau tempo e pela expectativa de guerra. No final da jornada, quando se despediram no porto do Pireu ("A impressão mais forte que me deixou a Grécia foi a de ser um mundo feito à medida do homem", disse Henry Miller), ela teve o pressentimento de que aquela seria a última vez que se viam. Tinha razão: Miller continuou a dar-se e a corresponder-se com Larry, mas Nancy nunca mais o voltou a ver..(Continua) Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.