E pronto, lá partiram para o paraíso. Talvez hoje não se tenha bem a dimensão do feito, mas a ida da família Durrell para Corfu tem laivos de uma epopeia doméstica, mesmo se lhe retirarmos os exageros romantizados que dela têm sido feitos pelos próprios manos Durrell (Gerald com a sua Trilogia de Corfu, na qual avulta A Minha Família e Outros Animais, e Lawrence em Prospero's Cell) e noutros relatos subsequentes, em livros, telefilmes e séries televisivas..A 2 de Março de 1935, o SS Oronsay, que fazia a linha do Oriente, partiu de Londres com direcção a Brisbane, na Austrália, uma jornada de seis semanas através de Gibraltar, Port Said e Aden. A bordo, Larry e Nancy, sua mulher, rumo a Nápoles, de onde deveriam apanhar o comboio para Brindisi, na Apúlia, e daí o ferry nocturno até Corfu..Os problemas começaram logo ali, em Itália, onde o casal ficou retido devido a uma convergência de duas tempestades, uma meteorológica, outra política. Os apoiantes do liberal Eleftherios Venizelos, liderados pelo lendário general Nikolaos Plastiras, tinham lançado um novo golpe de Estado, o qual, à semelhança de uma anterior tentativa, desencadeada em 1933, acabou por fracassar com violência e sangue. As forças leais ao conservador Panagis Tsaldaris, capitaneadas por outro general lendário, Georgios Kondylis, esmagaram os rebeldes; o resultado foi dramático, dois generais e outros oficiais foram condenados à morte e executados, Venizelos e Plastiras escaparam por um triz do mesmo destino, sendo condenados à pena capital in absentia (Venizelos faleceria no exílio em Paris, logo no ano seguinte ao golpe, e Plastiras regressou à Grécia, fez carreira política, mas acabou por morrer na miséria, em 1953)..Apanhados por este histórico coup d'État, que feriu de morte a Segunda República Helénica e abriu caminho à ditadura pró-nazi de Ioannis Metaxas, Larry e Nancy Durrell muito provavelmente não se aperceberam da convulsão que os forçara a passar vários dias num hotel de Brindisi, confinados por um frio de rachar e tempestades agrestes. O hotel, semidesértico naquela altura do ano, tinha por hóspede um solitário oficial da Royal Air Force, também ele sequestrado pela invernia. Os três passaram o tempo num gigantesco salão de baile, fantasmagórico e vazio, a beber gin e a ouvir o Concerto para Piano n.º 2 de Rachmaninoff, num gramofone que o homem da RAF trouxera consigo..Uma semana depois, Nancy e Larry puderam embarcar para Corfu, onde tinham a aguardá-los um casal amigo, Pam e George Wilkinson, os desbravadores desta saga grega. Instalaram-se nas primeiras noites na Pension Suisse, na cidade velha de Corfu, até alugarem uma pequena casa não muito longe do bungalow dos Wilkinsons, no sul da ilha, a poucos quilómetros da capital. Passou Março chuvoso, veio Abril, the cruelest month, e no final de Maio o tempo começou a abrir, em esplendor mediterrânico. E, como uma amante casta, Corfu só aos poucos lhes mostrou os sortilégios, o sol em brasa, o cristalino das águas, o langor das noites doces. Nancy e Larry ficaram encantados para sempre, mas só ele regressaria, muitos anos depois. Diz-se que os habitantes da ilha, depois de ela partir definitivamente, em Agosto de 1939, juraram por longo tempo que o seu espírito permanecera em Corfu, junto deles, e que por vezes o viam, em lugares inesperados. Talvez fosse verdade..O resto da tribo, ruidosa e excêntrica, chegou pouco depois. Tinham partido de Londres na semana seguinte, a 6 de Março, num cargueiro japonês, o SS Hakone Maru, e logo no golfo da Biscaia tiveram pela frente uma tempestade poderosa. Leslie, o mais discreto dos manos Durrell, escreveu para um amigo em Inglaterra, acometido por saudades súbitas. "God, what a trip!", disse, depois de descrever a confusão instalada a bordo pelas rajadas do vento gélido e pela neve que os retinha no interior das cabinas. O clima melhorou à entrada no Mediterrâneo, mas a chegada a Corfu não foi auspiciosa, bem longe disso..Chegavam a uma terra desconhecida, com uma língua estranha, grafada em caracteres indecifráveis, o banco de Londres falhara a transferência do dinheiro, sobreviveram graças a um empréstimo do proprietário da Pension Suisse. As malas de Larry e Nancy extraviaram-se, estavam sem livros nem roupas, e os mais novos do clã, Margo e Gerry, não paravam de chorar, assustados com aquele mundo novo, ao princípio hostil. Louisa, para mais, não conseguia encontrar casa para a família e a todas as que lhe mostravam faltava o essencial conforto de uma casa de banho. "Não acredites em nada que te digam sobre esta ilha", avisou Leslie ao amigo. "Que perda de dinheiro!".Então apareceu um anjo. Sob a forma de taxista, é certo, mas nem por isso menos eficaz e prestável. Spiros Halikiopoulos, a que todos chamavam Spiros Americano, por ter sido oito anos emigrante em Chicago, tinha um aparatoso Dodge para serviço de praça - e uma generosidade sem limites. Tornou-se chauffeur, cicerone, secretário, moço de recados e carregador de compras, confidente e até, dizem, amante platónico de Louisa Durrell. Foi Spiro quem descobriu a tão ansiada villa com casa de banho. Não longe da capital, em Perama, numa suave baía de onde se avista a ilhota do mosteiro de Vlacherna, rente às águas, palco de uma das mais famosas cenas de Four Your Eyes Only, de James Bond, e, perto dela, a pequena ilha de Pontikonisi, ou ilha do Rato, com uma capela bizantina do século XI, dedicada a Cristo Pantokrator, que, diz-se, terá servido de modelo ao enigmático quadro A Ilha dos Mortos, do simbolista suíço Alfred Böcklin (ou antes, os quadros, pois existem várias versões), o qual, por sua vez, inspiraria a obra homónima de um compositor russo. Enquanto ouviam o Concerto para Piano n.º 2, num hotel semidesértico de Brindisi, Nancy e Larry Durrell decerto não adivinhavam que, dias depois, estariam a contemplar a ilha que deu mote a Sergei Rachmaninoff..A casa não tinha nome, foram os Durrells que a crismaram para sempre como Villa Rosa-Morango e, apesar de não ter propriamente um quarto de banho, ficaram lá mais de um ano, com Gerald a desbravar o jardim em busca de todas as espécies animais que pudesse encontrar, uma obsessão que o tornaria um dos maiores zoólogos amadores do mundo e graças à qual, muitos anos depois, pôde abrir um zoo e um santuário conservacionista na ilha de Jersey..Além de Spiros, outra personagem acabou por marcá-los para sempre: Theodore Stephanides, um radiologista que estudara em Paris com Madame Curie, um homem renascentista com uma curiosidade insaciável e um saber enciclopédico sobre os astros, as plantas e os animais, que terá um papel fulcral na formação de Gerry, uma criança que desde os 9 anos nunca mais fora à escola e que agora, com 10, 11 anos, ainda partilhava a cama com a mãe..No Outono de 1935 ou na Primavera do ano seguinte, os relatos variam, os Durrells mudaram novamente de casa, para uma mansão veneziana em Kontokali, nas imediações da baía de Gouvia, a Villa Amarela" onde, pela primeira vez, se reuniram todos sob o mesmo tecto, num convívio nem sempre fácil: sem horas marcadas para almoçar e jantar, cada qual comia quando queria, e Larry queixava-se de que o barulho dos irmãos não o deixava concentrar-se na escrita da sua próxima obra, Panic Spring, que publicará sob o pseudónimo de Charles Norden. Leslie passava o tempo com a sua espingarda de pressão de ar, a disparar sobre tudo o que mexesse, Gerry levava para casa todos os animais que encontrava no caminho, Margo estava de cama, com febres altíssimas, que os irmãos atribuíram a uma praga contraída por, como manda a tradição, ter beijado o pé do corpo mumificado, com mais de 1600 anos, de Santo Espiridão, o Taumaturgo, padroeiro de Corfu. Pairando sobre o caos reinante, a matriarca, Louisa, passava os dias na cozinha, a explorar novas receitas de compotas e de chutney, na companhia da Lugaretzia, uma empregada hipocondríaca contratada nas redondezas, famosa pelo mau feitio e pelo temperamento irascível..Numa radiosa manhã da Primavera de 1936, Spiros levou Theodore Stephanides, Larry e Nancy ao norte da ilha, a região mais selvagem de Corfu. Theodore tinha sido convidado para um chá na casa de Madame Gennatas, uma viúva rica que vivia numa moradia assombrosa, de traça veneziana, fronteira ao portozinho de Kouloura. Nancy ficou fascinada. Desde há muito que ela e Larry procuravam um refúgio a norte, longe da capital e do bulício dos arredores - muito provavelmente, longe também do bulício da família Durrell. Spiros mostrou-lhes um lugar mágico. Dez dias depois, e contra a vontade de Louisa, que queria permanecer na Villa Amarela, Larry e Nancy alugaram dois quartos numa casa branca na baía de Kalami. A casa pertencia a um carpinteiro local, Athenaios, e à sua mulher, Eleni, com quem Larry e Nancy tinham de partilhar a cozinha e a sala de jantar..A tribo foi-lhes no encalço, como sempre, e a Casa Branca de Kalami tornou-se a última e a mais marcante morada dos Durrells em Corfu. Foi lá que ouviram a angustiante notícia de que Mussolini invadira a Abissínia, negro presságio da guerra que se avizinhava. Para mais, como Larry escreverá a um amigo, tudo sugeria que Corfu iria ser a próxima vítima das ambições do Duce, pois, a seguir à Abissínia, aquela ilha da Grécia, a dois passos da Albânia, era, segundo ele, o alvo mais apetecido pelo ditador italiano. Foi também lá, na Casa Branca de Kalami, que Nancy engravidou acidentalmente e, por vontade própria, fez um aborto em condições mais do que precárias, com Larry a vociferar contra a inépcia dos médicos gregos e contra o arcaísmo dos seus preconceitos (informada a posteriori, também Louisa condenará asperamente a interrupção da gravidez)..Apesar dessas agruras, ou talvez por causa delas, os dias passados em Kalami foram os mais felizes de todos. Os autóctones eram de uma hospitalidade sem limites, ainda que por vezes se revoltassem contra o facto de Nancy e Larry terem por hábito tomar banhos de mar completamente despidos. Para acalmar os ânimos, procuravam geralmente lugares escondidos, longe de olhares mais pudicos, mas nem sempre o conseguiam. Um dia, enquanto mergulhavam perto da costa, repararam numa capelinha no cimo de um promontório, com o sacerdote sentado à porta, a contemplar o horizonte divino. Ao ver a sua nudez, o padre gritou pelos rapazes de uma aldeia próxima, que do alto das colinas começaram a apedrejar os ingleses malditos. A partir de então, encontraram refúgio numa enseada minúscula a sul de Kalami, só acessível por mar. Também aí existia uma pequena capela, modestíssima, dedicada a Santo Arsénio, só aberta uma vez por ano, por ocasião da festa do orago, mas que, para espanto de Larry e Nancy, tinha uma lamparina de azeite sempre acesa, sem que alguma vez tenham visto qualquer pessoa por perto para cuidar da igreja..Encontraram ali o abrigo perfeito: Larry sentava-se à sombra de uma figueira frondosa com a máquina de escrever, Nancy mergulhava no mar e deitava-se ao sol, em imersão completa de felicidade. Tinham um jogo secreto: do adro da igreja, ele lançava cerejas para o mar, que ela apanhava com a boca e trazia à tona de água como os golfinhos que rondavam por perto. Anos depois, já um escritor consagrado, Lawrence Durrell dirá que todos os seres humanos têm dois locais de nascimento, aquele em que vêem a luz pela primeira vez e aquele em que despertam para a realidade das coisas. Acrescentou que fora ali, no adro da capelinha de Santo Arsénio, que nascera pela segunda vez, de olhos bem abertos para o mundo..Para Nancy, tudo aquilo representava o cúmulo da joie de vivre, junto de uma família como nunca conhecera, dominada por uma mãe lunática para a qual a estada em Corfu representou a fuga a Inglaterra, um país que nunca fora o seu, e o reencontro possível com o quotidiano colonial em que vivera até à morte do marido. Larry, por sua vez, recebera a feliz notícia de que o seu primeiro romance, Pied Pipers of Lovers, seria publicado pela Cassell - Nancy desenhou a capa da primeira edição, um arlequim estilizado, e, sem ter sido a consagração absoluta, tudo isso representou um passo decisivo numa carreira literária começada há pouco, sobre a qual não existia a mínima certeza..Não muito depois, outra epifania. Um amigo americano ofereceu-lhe o exemplar da obra de um seu conterrâneo, Henry Miller, de quem Larry nunca ouvira falar. A leitura de Trópico de Câncer teve para ele o efeito de uma bomba. Nancy partilhou o entusiasmo do marido pela honestidade brutal da escrita de Miller, muito diferente dos ademanes estilísticos de Joyce ou D. H. Lawrence, "all those tedious Ulysses and Chatterlies", dirá Lawrence, que obteve o endereço de Miller em Paris e logo lhe escreveu uma carta de adoração espontânea, com isso iniciando uma correspondência epistolar de décadas. Com Panic Spring concluído e entregue ao editor (a Faber and Faber, com parecer favorável de T. S. Eliot) e com Pied Pipers of Lovers nos escaparates das livrarias (vendas miseráveis, para fúria do autor), Lawrence começou de imediato a escrita de uma nova obra, O Livro Negro, polifónica e radicalmente diferente das anteriores..Terminou-a em Fevereiro de 1937, acrescentou uma dedicatória a Nancy e enviou o original para Miller, dizendo-lhe que se não gostasse, se atiraria ao Sena. Com uma ameaça destas, Miller respondeu de imediato, em três longas e entusiásticas cartas, chamando-lhe "o mestre da língua inglesa", que ousara escrever coisas naquele livro que até então ninguém tivera a coragem de escrever. Na editora, T. S. Eliot foi mais contido e, apesar de se confessar "muito impressionado" pelo livro, disse-lhe que o mesmo continha algumas expressões que o tornavam dificilmente publicável em Inglaterra. Lawrence declarou-se disposto a expurgar as palavras ofensivas, mas Miller desaconselhou a fazê-lo, pois se admitisse a autocensura iria abrir as portas a novos cortes, além de perder o controlo da sua obra. Lawrence seguiu o conselho e o livro acabaria por ser publicado, sem cortes nem eufemismos, pela Obelisk Press, em Paris, a mesma editora que dera à estampa Trópico de Câncer..Em meados de Julho de 1938, Louisa, Margo e Gerry voltaram a Inglaterra para uma larga temporada. Larry e Nancy vieram um pouco mais tarde: no início de Agosto, estavam a caminho de Brindisi, no ferry nocturno, e daí apanharam o comboio expresso até Paris, para conhecerem pessoalmente Henry Miller e o seu círculo, no qual pontificava Anaïs Nin. Ficarão entre Paris e Londres cerca de oito meses, até regressarem a Corfu em Abril de 1938, para mais um Verão mesmo à mão. No ano seguinte, farão o mesmo: ida em Novembro para Paris e Londres, regresso à Grécia em meados de Maio. Meses depois, estalava a guerra..(Continua).Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
E pronto, lá partiram para o paraíso. Talvez hoje não se tenha bem a dimensão do feito, mas a ida da família Durrell para Corfu tem laivos de uma epopeia doméstica, mesmo se lhe retirarmos os exageros romantizados que dela têm sido feitos pelos próprios manos Durrell (Gerald com a sua Trilogia de Corfu, na qual avulta A Minha Família e Outros Animais, e Lawrence em Prospero's Cell) e noutros relatos subsequentes, em livros, telefilmes e séries televisivas..A 2 de Março de 1935, o SS Oronsay, que fazia a linha do Oriente, partiu de Londres com direcção a Brisbane, na Austrália, uma jornada de seis semanas através de Gibraltar, Port Said e Aden. A bordo, Larry e Nancy, sua mulher, rumo a Nápoles, de onde deveriam apanhar o comboio para Brindisi, na Apúlia, e daí o ferry nocturno até Corfu..Os problemas começaram logo ali, em Itália, onde o casal ficou retido devido a uma convergência de duas tempestades, uma meteorológica, outra política. Os apoiantes do liberal Eleftherios Venizelos, liderados pelo lendário general Nikolaos Plastiras, tinham lançado um novo golpe de Estado, o qual, à semelhança de uma anterior tentativa, desencadeada em 1933, acabou por fracassar com violência e sangue. As forças leais ao conservador Panagis Tsaldaris, capitaneadas por outro general lendário, Georgios Kondylis, esmagaram os rebeldes; o resultado foi dramático, dois generais e outros oficiais foram condenados à morte e executados, Venizelos e Plastiras escaparam por um triz do mesmo destino, sendo condenados à pena capital in absentia (Venizelos faleceria no exílio em Paris, logo no ano seguinte ao golpe, e Plastiras regressou à Grécia, fez carreira política, mas acabou por morrer na miséria, em 1953)..Apanhados por este histórico coup d'État, que feriu de morte a Segunda República Helénica e abriu caminho à ditadura pró-nazi de Ioannis Metaxas, Larry e Nancy Durrell muito provavelmente não se aperceberam da convulsão que os forçara a passar vários dias num hotel de Brindisi, confinados por um frio de rachar e tempestades agrestes. O hotel, semidesértico naquela altura do ano, tinha por hóspede um solitário oficial da Royal Air Force, também ele sequestrado pela invernia. Os três passaram o tempo num gigantesco salão de baile, fantasmagórico e vazio, a beber gin e a ouvir o Concerto para Piano n.º 2 de Rachmaninoff, num gramofone que o homem da RAF trouxera consigo..Uma semana depois, Nancy e Larry puderam embarcar para Corfu, onde tinham a aguardá-los um casal amigo, Pam e George Wilkinson, os desbravadores desta saga grega. Instalaram-se nas primeiras noites na Pension Suisse, na cidade velha de Corfu, até alugarem uma pequena casa não muito longe do bungalow dos Wilkinsons, no sul da ilha, a poucos quilómetros da capital. Passou Março chuvoso, veio Abril, the cruelest month, e no final de Maio o tempo começou a abrir, em esplendor mediterrânico. E, como uma amante casta, Corfu só aos poucos lhes mostrou os sortilégios, o sol em brasa, o cristalino das águas, o langor das noites doces. Nancy e Larry ficaram encantados para sempre, mas só ele regressaria, muitos anos depois. Diz-se que os habitantes da ilha, depois de ela partir definitivamente, em Agosto de 1939, juraram por longo tempo que o seu espírito permanecera em Corfu, junto deles, e que por vezes o viam, em lugares inesperados. Talvez fosse verdade..O resto da tribo, ruidosa e excêntrica, chegou pouco depois. Tinham partido de Londres na semana seguinte, a 6 de Março, num cargueiro japonês, o SS Hakone Maru, e logo no golfo da Biscaia tiveram pela frente uma tempestade poderosa. Leslie, o mais discreto dos manos Durrell, escreveu para um amigo em Inglaterra, acometido por saudades súbitas. "God, what a trip!", disse, depois de descrever a confusão instalada a bordo pelas rajadas do vento gélido e pela neve que os retinha no interior das cabinas. O clima melhorou à entrada no Mediterrâneo, mas a chegada a Corfu não foi auspiciosa, bem longe disso..Chegavam a uma terra desconhecida, com uma língua estranha, grafada em caracteres indecifráveis, o banco de Londres falhara a transferência do dinheiro, sobreviveram graças a um empréstimo do proprietário da Pension Suisse. As malas de Larry e Nancy extraviaram-se, estavam sem livros nem roupas, e os mais novos do clã, Margo e Gerry, não paravam de chorar, assustados com aquele mundo novo, ao princípio hostil. Louisa, para mais, não conseguia encontrar casa para a família e a todas as que lhe mostravam faltava o essencial conforto de uma casa de banho. "Não acredites em nada que te digam sobre esta ilha", avisou Leslie ao amigo. "Que perda de dinheiro!".Então apareceu um anjo. Sob a forma de taxista, é certo, mas nem por isso menos eficaz e prestável. Spiros Halikiopoulos, a que todos chamavam Spiros Americano, por ter sido oito anos emigrante em Chicago, tinha um aparatoso Dodge para serviço de praça - e uma generosidade sem limites. Tornou-se chauffeur, cicerone, secretário, moço de recados e carregador de compras, confidente e até, dizem, amante platónico de Louisa Durrell. Foi Spiro quem descobriu a tão ansiada villa com casa de banho. Não longe da capital, em Perama, numa suave baía de onde se avista a ilhota do mosteiro de Vlacherna, rente às águas, palco de uma das mais famosas cenas de Four Your Eyes Only, de James Bond, e, perto dela, a pequena ilha de Pontikonisi, ou ilha do Rato, com uma capela bizantina do século XI, dedicada a Cristo Pantokrator, que, diz-se, terá servido de modelo ao enigmático quadro A Ilha dos Mortos, do simbolista suíço Alfred Böcklin (ou antes, os quadros, pois existem várias versões), o qual, por sua vez, inspiraria a obra homónima de um compositor russo. Enquanto ouviam o Concerto para Piano n.º 2, num hotel semidesértico de Brindisi, Nancy e Larry Durrell decerto não adivinhavam que, dias depois, estariam a contemplar a ilha que deu mote a Sergei Rachmaninoff..A casa não tinha nome, foram os Durrells que a crismaram para sempre como Villa Rosa-Morango e, apesar de não ter propriamente um quarto de banho, ficaram lá mais de um ano, com Gerald a desbravar o jardim em busca de todas as espécies animais que pudesse encontrar, uma obsessão que o tornaria um dos maiores zoólogos amadores do mundo e graças à qual, muitos anos depois, pôde abrir um zoo e um santuário conservacionista na ilha de Jersey..Além de Spiros, outra personagem acabou por marcá-los para sempre: Theodore Stephanides, um radiologista que estudara em Paris com Madame Curie, um homem renascentista com uma curiosidade insaciável e um saber enciclopédico sobre os astros, as plantas e os animais, que terá um papel fulcral na formação de Gerry, uma criança que desde os 9 anos nunca mais fora à escola e que agora, com 10, 11 anos, ainda partilhava a cama com a mãe..No Outono de 1935 ou na Primavera do ano seguinte, os relatos variam, os Durrells mudaram novamente de casa, para uma mansão veneziana em Kontokali, nas imediações da baía de Gouvia, a Villa Amarela" onde, pela primeira vez, se reuniram todos sob o mesmo tecto, num convívio nem sempre fácil: sem horas marcadas para almoçar e jantar, cada qual comia quando queria, e Larry queixava-se de que o barulho dos irmãos não o deixava concentrar-se na escrita da sua próxima obra, Panic Spring, que publicará sob o pseudónimo de Charles Norden. Leslie passava o tempo com a sua espingarda de pressão de ar, a disparar sobre tudo o que mexesse, Gerry levava para casa todos os animais que encontrava no caminho, Margo estava de cama, com febres altíssimas, que os irmãos atribuíram a uma praga contraída por, como manda a tradição, ter beijado o pé do corpo mumificado, com mais de 1600 anos, de Santo Espiridão, o Taumaturgo, padroeiro de Corfu. Pairando sobre o caos reinante, a matriarca, Louisa, passava os dias na cozinha, a explorar novas receitas de compotas e de chutney, na companhia da Lugaretzia, uma empregada hipocondríaca contratada nas redondezas, famosa pelo mau feitio e pelo temperamento irascível..Numa radiosa manhã da Primavera de 1936, Spiros levou Theodore Stephanides, Larry e Nancy ao norte da ilha, a região mais selvagem de Corfu. Theodore tinha sido convidado para um chá na casa de Madame Gennatas, uma viúva rica que vivia numa moradia assombrosa, de traça veneziana, fronteira ao portozinho de Kouloura. Nancy ficou fascinada. Desde há muito que ela e Larry procuravam um refúgio a norte, longe da capital e do bulício dos arredores - muito provavelmente, longe também do bulício da família Durrell. Spiros mostrou-lhes um lugar mágico. Dez dias depois, e contra a vontade de Louisa, que queria permanecer na Villa Amarela, Larry e Nancy alugaram dois quartos numa casa branca na baía de Kalami. A casa pertencia a um carpinteiro local, Athenaios, e à sua mulher, Eleni, com quem Larry e Nancy tinham de partilhar a cozinha e a sala de jantar..A tribo foi-lhes no encalço, como sempre, e a Casa Branca de Kalami tornou-se a última e a mais marcante morada dos Durrells em Corfu. Foi lá que ouviram a angustiante notícia de que Mussolini invadira a Abissínia, negro presságio da guerra que se avizinhava. Para mais, como Larry escreverá a um amigo, tudo sugeria que Corfu iria ser a próxima vítima das ambições do Duce, pois, a seguir à Abissínia, aquela ilha da Grécia, a dois passos da Albânia, era, segundo ele, o alvo mais apetecido pelo ditador italiano. Foi também lá, na Casa Branca de Kalami, que Nancy engravidou acidentalmente e, por vontade própria, fez um aborto em condições mais do que precárias, com Larry a vociferar contra a inépcia dos médicos gregos e contra o arcaísmo dos seus preconceitos (informada a posteriori, também Louisa condenará asperamente a interrupção da gravidez)..Apesar dessas agruras, ou talvez por causa delas, os dias passados em Kalami foram os mais felizes de todos. Os autóctones eram de uma hospitalidade sem limites, ainda que por vezes se revoltassem contra o facto de Nancy e Larry terem por hábito tomar banhos de mar completamente despidos. Para acalmar os ânimos, procuravam geralmente lugares escondidos, longe de olhares mais pudicos, mas nem sempre o conseguiam. Um dia, enquanto mergulhavam perto da costa, repararam numa capelinha no cimo de um promontório, com o sacerdote sentado à porta, a contemplar o horizonte divino. Ao ver a sua nudez, o padre gritou pelos rapazes de uma aldeia próxima, que do alto das colinas começaram a apedrejar os ingleses malditos. A partir de então, encontraram refúgio numa enseada minúscula a sul de Kalami, só acessível por mar. Também aí existia uma pequena capela, modestíssima, dedicada a Santo Arsénio, só aberta uma vez por ano, por ocasião da festa do orago, mas que, para espanto de Larry e Nancy, tinha uma lamparina de azeite sempre acesa, sem que alguma vez tenham visto qualquer pessoa por perto para cuidar da igreja..Encontraram ali o abrigo perfeito: Larry sentava-se à sombra de uma figueira frondosa com a máquina de escrever, Nancy mergulhava no mar e deitava-se ao sol, em imersão completa de felicidade. Tinham um jogo secreto: do adro da igreja, ele lançava cerejas para o mar, que ela apanhava com a boca e trazia à tona de água como os golfinhos que rondavam por perto. Anos depois, já um escritor consagrado, Lawrence Durrell dirá que todos os seres humanos têm dois locais de nascimento, aquele em que vêem a luz pela primeira vez e aquele em que despertam para a realidade das coisas. Acrescentou que fora ali, no adro da capelinha de Santo Arsénio, que nascera pela segunda vez, de olhos bem abertos para o mundo..Para Nancy, tudo aquilo representava o cúmulo da joie de vivre, junto de uma família como nunca conhecera, dominada por uma mãe lunática para a qual a estada em Corfu representou a fuga a Inglaterra, um país que nunca fora o seu, e o reencontro possível com o quotidiano colonial em que vivera até à morte do marido. Larry, por sua vez, recebera a feliz notícia de que o seu primeiro romance, Pied Pipers of Lovers, seria publicado pela Cassell - Nancy desenhou a capa da primeira edição, um arlequim estilizado, e, sem ter sido a consagração absoluta, tudo isso representou um passo decisivo numa carreira literária começada há pouco, sobre a qual não existia a mínima certeza..Não muito depois, outra epifania. Um amigo americano ofereceu-lhe o exemplar da obra de um seu conterrâneo, Henry Miller, de quem Larry nunca ouvira falar. A leitura de Trópico de Câncer teve para ele o efeito de uma bomba. Nancy partilhou o entusiasmo do marido pela honestidade brutal da escrita de Miller, muito diferente dos ademanes estilísticos de Joyce ou D. H. Lawrence, "all those tedious Ulysses and Chatterlies", dirá Lawrence, que obteve o endereço de Miller em Paris e logo lhe escreveu uma carta de adoração espontânea, com isso iniciando uma correspondência epistolar de décadas. Com Panic Spring concluído e entregue ao editor (a Faber and Faber, com parecer favorável de T. S. Eliot) e com Pied Pipers of Lovers nos escaparates das livrarias (vendas miseráveis, para fúria do autor), Lawrence começou de imediato a escrita de uma nova obra, O Livro Negro, polifónica e radicalmente diferente das anteriores..Terminou-a em Fevereiro de 1937, acrescentou uma dedicatória a Nancy e enviou o original para Miller, dizendo-lhe que se não gostasse, se atiraria ao Sena. Com uma ameaça destas, Miller respondeu de imediato, em três longas e entusiásticas cartas, chamando-lhe "o mestre da língua inglesa", que ousara escrever coisas naquele livro que até então ninguém tivera a coragem de escrever. Na editora, T. S. Eliot foi mais contido e, apesar de se confessar "muito impressionado" pelo livro, disse-lhe que o mesmo continha algumas expressões que o tornavam dificilmente publicável em Inglaterra. Lawrence declarou-se disposto a expurgar as palavras ofensivas, mas Miller desaconselhou a fazê-lo, pois se admitisse a autocensura iria abrir as portas a novos cortes, além de perder o controlo da sua obra. Lawrence seguiu o conselho e o livro acabaria por ser publicado, sem cortes nem eufemismos, pela Obelisk Press, em Paris, a mesma editora que dera à estampa Trópico de Câncer..Em meados de Julho de 1938, Louisa, Margo e Gerry voltaram a Inglaterra para uma larga temporada. Larry e Nancy vieram um pouco mais tarde: no início de Agosto, estavam a caminho de Brindisi, no ferry nocturno, e daí apanharam o comboio expresso até Paris, para conhecerem pessoalmente Henry Miller e o seu círculo, no qual pontificava Anaïs Nin. Ficarão entre Paris e Londres cerca de oito meses, até regressarem a Corfu em Abril de 1938, para mais um Verão mesmo à mão. No ano seguinte, farão o mesmo: ida em Novembro para Paris e Londres, regresso à Grécia em meados de Maio. Meses depois, estalava a guerra..(Continua).Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.