UM PORTUGUÊS BRASILEIRO

Publicado a
Atualizado a

Com a morte de Valentim dos Santos Diniz, figura referencial do grupo Pão do Açúcar, que há dias ocorreu, como que se apagou um pouco mais a imagem do Portugal que ajudou a construir o Brasil contemporâneo.

Nestes tempos em que D. João VI é revisitado com simpática curiosidade pelos brasileiros, descobrindo esse seu primeiro rei, o desaparecimento de um dos últimos grandes patriarcas portugueses no Brasil dá-nos ensejo de reflectir sobre o que Portugal ainda representa naquele país, para além da retórica das caravelas, mote recorrente de discursos com escassa inspiração e de efeito cada vez mais débil.

Passou já algum tempo desde o período áureo em que a comunidade emigrada portuguesa tinha uma forte expressão no Brasil - económica, social e até política. Dessa era restam alguns nomes e famílias relevantes na sociedade brasileira, empresas locais que recordam essa raiz, para além de umas largas dezenas de instituições luso-brasileiras, hoje com fortuna desigual quanto à sua dimensão e acção, bem como quanto às suas perspectivas de sobrevivência futura.

Com particular expressão no Rio de Janeiro e em S. Paulo, mas igualmente em outras cidades brasileiras, muitos foram - e alguns persistentes lutadores ainda são - os que cuidaram em manter bem alto, pelo trabalho associativo solidário, o orgulho de terem feito parte de gerações portuguesas que construíram no Brasil o seu futuro e que, simultaneamente, ali acabaram por ajudar a desenhar um país que também já é seu.

Com a mudança dos fluxos migratórios portugueses, no final dos anos 60, o Brasil deixou de ser o alvo prioritário de quantos, em Portugal, tentavam escapar à modorra de uma sociedade fechada e à miséria da vida a que pareciam condenados. Apenas com as sequelas da independência das colónias africanas, somadas ao mal-estar de uns tantos com os rumos do Portugal de Abril, o Brasil se voltou a transformar, após 1974, mas em muitos casos apenas transitoriamente, num porto de destino ou de abrigo.

Essa era já, porém, uma imigração algo diferente da que, durante décadas, ajudara a definir a matriz da sociedade brasileira, lado a lado com outras nacionalidades imigradas, que vieram a gerar o melting pot da magnífica brasilidade contemporânea.

Durante décadas, das aldeias do Portugal profundo, partiram para o outro lado do Atlântico muitos milhares de jovens simples no exercício do direito à esperança. Os "Brasis", como a antiga memória portuguesa celebra as Pasárgadas de muitas dessas gerações, eram a terra prometida onde tudo parecia possível, para quem quisesse, com trabalho árduo, deitar a mão ao destino.

Para além da caricatura que o marcou, e que sempre foi uma espécie de humor amargo que o descendente do colonizador originário teve de suportar com esforçada bonomia, é hoje claro que o imigrante português criou no Brasil, de uma forma geral, uma imagem de labor e seriedade, de uma forma de estar na vida que caracteriza aquilo que se viria a decantar como o conceito de pessoa de bem.

Valentim dos Santos Diniz foi um bom expoente dessa métrica pela qual se medem os homens de carácter. Empenhado, trabalhador e com uma seriedade à prova de bala, construiu um império de negócios, empregou milhares, ganhou e deu a ganhar dinheiro, foi um notável exemplo de sucesso com seriedade. Foi brasileiro na obra que erigiu, sendo sempre português na alma que estava por detrás desse empreendimento, na saudade da sua Beira natal e na sua crença num certo Portugal.

Um dia, recordo-me de lhe ter dito que, como embaixador de Portugal, só esperava que os nossos compatriotas que agora iam aportando ao Brasil, com outras motivações e diferentes expectativas de vida, pudessem continuar a ser dignos da imagem de probidade e respeito que os anteriores imigrantes, como ele, haviam sabido construir e fixar no Brasil.

Valentim dos Santos Diniz foi um dos exemplos mais completos de que a melhor forma de ser um bom português no Brasil é saber afirmar-se como um leal cidadão brasileiro.|

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt