No meio de um mercado cinematográfico todas as semanas atravessado por campanhas mais ou menos ruidosas, quase sempre ao serviço do último blockbuster, será que ainda há espaço para surpresas? De facto, há. Ou pode haver. Os Fragmentos de Tracey é um exemplo feliz dessa possibilidade. Que é como quem diz: um pequeno grande filme que nos chega do Canadá, mostrando que é possível ser decididamente experimental (e até vanguardista) sem perder o contacto com a dimensão mais intimista (e psicológica) do grande cinema clássico..No centro do filme está a espantosa composição de Ellen Page, a jovem e hiper-talentosa actriz (canadiana) que se tornou internacionalmente conhecida graças à sua composição em Juno (que lhe valeu, aliás, uma nomeação para o Óscar de Melhor Actriz). Com os seus 21 anos, Page consegue ainda compor uma personagem de 15, Tracey Berkowitz, que vive, de facto, um processo de inquietante fragmentação. Em todos os sentidos: primeiro, porque o seu ambiente familiar, carregado de uma perturbante violência emocional, está estilhaçado; depois, porque na sequência de uma estranha "fuga" com um namorado, Tracey perde, literalmente, o seu irmão mais novo junto a um rio. Os Fragmentos de Tracey é a história da desesperada deambulação da protagonista para tentar encontrar o irmão..De acordo com as notas de produção do filme , o realizador Bruce McDonald (também canadiano, nascido em 1959, até agora ligado sobretudo à produção televisiva) gastou apenas duas semanas na rodagem de Os Fragmentos de Tracey. Mas, em compensação, passou nove meses na sala de montagem. Porquê? Porque McDonald decidiu tirar o máximo partido dos novos recursos tecnológicos que, através de processos digitais, permitem trabalhar a imagem cinematográfica (ou televisiva) como uma composição de muitas imagens..Por um lado, vem à memória a experiência de Mike Figgis em Timecode (2000), filme construído a partir da divisão do ecrã em quatro imagens idênticas, cada uma delas com uma história que, insolitamente, se ia cruzando com alguma das outras. .Por outro lado, o trabalho de McDonald remete-nos para o gosto de fragmentação dos ecrãs favorecido pela evolução das técnicas de vídeo e, em boa verdade, iniciado de forma fulgurante por Jean-Luc Godard nesse filme genialmente premonitório que é Número Dois (1975). .O mais espantoso de tudo isto está muito para além da mera ostentação da tecnologia. Aliás, não tem nada a ver com isso. De forma subtil, por vezes profundamente comovente, McDonald sabe propor-nos um filme que se mantém à fiel às regras clássicas do retrato psicológico, em última instância filmando os labirintos do amor que se dá e do amor que (não) se recebe..Dir-se-ia que Os Fragmentos de Tracey possui a agilidade e os contrastes de um espantoso teledisco (a música é dos Broken Social Scene), ao mesmo tempo que consegue construir um ambiente que, em muitos aspectos, nos faz recordar a mais nobre tradição do melodrama familiar. Se há filmes capazes de reflectir a fascinante encruzilhada do melhor cinema moderno, este é, seguramente, um desses filmes.|