Um nariz eletrónico para detetar o cancro de bexiga
É uma associação que vem já desde a época de Hipócrates (médico grego considerado o pai da medicina), aquela que liga odores e doenças. Alterações nos cheiros exalados pelo organismo podem ser indicadores de que algo não está bem e a ciência tem vindo a aprimorar o olfato para a deteção precoce de diversas doenças. No laboratório de Engenharia Biomolecular da UCIBIO-FCT NOVA, Cecília Roque e a sua equipa têm desenvolvido ao longo dos últimos anos um método inovador: uma tecnologia de nariz eletrónico que agora vão aplicar no acompanhamento de doentes com cancro da bexiga, num projeto premiado por uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação (ERC).
Esta tecnologia já em 2014 valera à investigadora uma bolsa Starting Grant do ERC, no valor de 1,5 milhões de euros. Então, o foco do projeto estava direcionado para a deteção e a identificação de bactérias, em particular as mais prevalentes em infeções humanas e associadas à resistência a antibióticos. Mas o desenvolvimento do nariz eletrónico abriu portas a outras aplicações e valeu agora à professora do Departamento de Química da Nova uma nova bolsa europeia, de 150 mil euros, para "prova de conceito" - as Proof of Concept só são atribuídas a investigadores que já estão a usufruir de outra bolsa ERC e são uma espécie de "empurrão" para ajudar a traduzir as descobertas científicas em produtos de mercado.
É o que acontece então com este projeto "ENSURE: Non-invasive follow-up of urinary tract cancers", que tem por objetivo validar a viabilidade tecnológica e comercial deste método para o acompanhamento não invasivo de doentes com cancro da bexiga. "O nariz eletrónico é um conceito que foi introduzido nos anos 1980. A novidade que temos no grupo de investigação tem sobretudo que ver com os materiais que utilizamos como sensores. São materiais completamente novos na sua composição e também no tipo de sinais que conseguimos obter a partir destes materiais", explica Cecília Roque, em conversa com o DN. Ora, isso, acrescenta, "obrigou-nos não só a conceber a parte dos materiais sensíveis a gases, como um equipamento para conseguir extrair sinais destes materiais e também todos os algoritmos que apoiam no processo de identificação dos odores".
O poder do olfato na identificação de algumas doenças tem levado, por exemplo, ao recurso a cães treinados para detetar determinados odores. E também saltou para as páginas dos jornais, em 2017, o caso da escocesa Joy Milne, que "conseguiu cheirar que o marido estava a ficar com Parkinson, anos antes de ele manifestar a doença", recorda Cecília Roque. As capacidades olfativas de Milne foram estudadas por investigadores da Universidade de Manchester, que chegaram à conclusão de que os doentes com Parkinson tinham uma concentração superior ao normal de três substâncias diferentes (ácido hipúrico, eicosano e octadecanal), alteração responsável pelo odor detetado pela enfermeira escocesa.
O que conhecemos como "cheiro" não é mais do que um conjunto de estruturas químicas que volatilizam no ar, à temperatura e pressão ambiente e entram nas fossas nasais, onde se ligam a recetores olfativos presentes na mucosa e que as associam a cheiros. "Vamos pensar, por exemplo, no café", sugere a investigadora. "O odor que sentimos do café na realidade resulta de uma mistura de vários compostos voláteis que existem em concentrações distintas e é todo esse conjunto que nós associamos ao café. É um padrão de compostos que, no fundo, funciona como uma espécie de impressão digital dos cheiros", explica.
O nariz eletrónico funciona da mesma maneira. "Em vez de ter uma cavidade nasal, posso ter uma caixinha onde vou ter os meus sensores para voláteis. Esses sensores fazem aqui o papel dos recetores olfativos. Porquê? Porque são feitos de materiais que, quando interagem com os compostos voláteis, alteram-se de alguma maneira. Pode ser uma alteração ótica, elétrica, de massa", explica Cecília Roque.
Uma das vantagens desta tecnologia tem que ver com os materiais utilizados, sustentáveis, "à base de polímeros biológicos". "Neste caso, usamos muito a gelatina, não preparada em água, mas noutro tipo de solventes que não evaporam, o que faz que estes materiais de gelatina que produzimos não sequem. São bons para estes estudos com amostras em estado gasoso, porque não vão secar. A grande vantagem face aos sensores de gases que já existem é que, para além de serem muito resistentes, e de alguma forma mais amigos do ambiente na sua composição, eles operam à temperatura ambiente enquanto os outros sensores químicos operam a altas temperaturas, 400 graus ou mais, precisando de condições muito mais extremas", detalha.
A ideia de colocar este nariz eletrónico a cheirar a urina de doentes de cancro de bexiga surgiu após "conversas com vários médicos urologistas e contactos com instituições da área oncológica". Com 573 mil novos casos e 213 mil mortes em 2020, em todo o mundo, o cancro da bexiga é o mais comum do sistema urinário e tem o maior custo por paciente entre todos os cancros, o que se deve principalmente à vigilância exigente que emprega técnicas muito invasivas.
"O tratamento destes doentes é quase sempre feito por cirurgia, só que cerca de 80% tem de continuar a ter um seguimento muito apertado. Nos primeiros cinco anos após a cirurgia têm de fazer vários exames com intervalos curtos para verificar se há recidivas. São exames muito invasivos, causam muita ansiedade nos doentes e, além disso, são caros", refere a investigadora. "O ENSURE visa fornecer um teste não invasivo, rápido e de baixo custo para aumentar a adesão do paciente ao acompanhamento da doença", diz, acrescentando que "o principal objetivo é reduzir drasticamente o número de vezes que os doentes têm de ser submetidos a técnicas invasivas e dolorosas".
Assim, em vez de o doente ser sujeito a técnicas como a introdução de um instrumento pela uretra, pode simplesmente dar uma amostra de urina para ser "cheirada" por este dispositivo. "Não quer dizer que se substitua por completo as técnicas atuais, mas se conseguíssemos reduzir o número de vezes que é necessário recorrer a essas técnicas invasivas e caras já seria benéfico", sublinha Cecília Roque.
Então e que odores se procuram neste tipo de doentes para diagnosticar o cancro da bexiga? "Não procuramos um ou dois compostos em particular. Olhamos para a complexidade das diferenças. Não para um único marcador, mas sim para um padrão. A tal impressão digital do cheiro, que distingue, neste caso, a urina de um doente com este tipo de cancro."
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