Um imaginário camoniano na obra de Herman Melville

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Impõe-se um esclarecimento prévio: o tema que brevemente abordo nestas linhas foi já extensivamente analisado por uma referência dos estudos americanos que há dois anos nos deixou, George Monteiro.

Com a obra deste amigo em mente, limitar-me-ei, assim, a identificar aspetos do impacto do legado de Camões na obra de Herman Melville. Começo por um detalhe biográfico relevante para o seu conhecimento da épica camoniana. Remonta este a Agosto de 1844 quando, aos vinte e dois anos, se alista na fragata United States. Será através do comandante Jack Chase que iria conhecer Os Lusíadas, obra que este recitava em português aos seus camaradas, e que Melville leria na tradução de William Mickle, The Lusiad; or the Discovery of India.
Considerava Melville que a epopeia do seu tempo era a vivida pelos baleeiros que, partindo de Nantucket, cruzavam os mares. Segundo ele, a epopeia que a precedera fora a dos portugueses durantes os séculos XV e XVI. Os baleeiros emergem, assim, para ele, como herdeiros de uma tradição na qual constituímos um capítulo singular.

A par deste registo mais factual, outro perpassa toda a obra de Melville; o simbólico. Também neste âmbito ele convoca a experiência épica, como, por exemplo, quando "falava da tendência das pessoas para confundirem as suas perspectivas parciais com verdades universais, como quando Magalhães nomeou o oceano "Pacífico" porque o mar estava calmo no dia em que ele cruzou os estreitos."

A epopeia portuguesa, que sinaliza em diferentes instantes da sua obra, participa assim de uma ampla e profunda meditação existencial. Observemos alguns exemplos.

A propósito das tripulações que integravam aquelas demandas, escreve em Cavaleiros e escudeiros, o capítulo 27 de Moby-Dick: "Não é pequeno o número destes marinheiros baleeiros que pertence aos Açores, onde os navios baleeiros de Nantucket que se dirigem para distantes margens frequentemente tocam para aumentar as suas tripulações dos camponeses resistentes daquelas costas rochosas." Será, assim, natural que marinheiros portugueses, nomeadamente açorianos, integrem esse microcosmo, símbolo do melting pot americano, que é o Pequod, o barco comandado por Acab. É, aliás, curioso o facto de no capítulo 20, "Meia Noite, Castelo da Proa", Melville identificar um marinheiro português e um marinheiro açoriano, como se de duas nacionalidades distintas se tratassem. Ora, Melville não o faz por ignorância mas sim por aquela obsessão tão americana, dir-se-ia, de identificar as singularidades identitárias que faria dos açorianos, desde tempos mais remotos, um segmento tão relevante da presença portuguesa nos Estados Unidos.

A par desta presença factual uma outra, subliminar ou simbólica, se evidencia. Surge esta, por exemplo, na capítulo 41, intitulado "Moby-Dick", onde Ismael, o narrador, evoca: "Prodígios míticos, como o de um lugar na montanha da Serra de Estrela [Strello mountain](perto de cujo cume se dizia haver um lago em que destroços de barcos vinham à superfície)".

Noutro fragmento, mais adiante no capítulo 58, a dimensão simbólica adquire uma ênfase mítica ao surgir no contexto de uma narrativa das origens do mundo, num contexto cristão, claro, o do dilúvio: "O primeiro barco de que lemos, flutuava num oceano, que com a vingança portuguesa fez submergir um mundo inteiro sem deixar sequer uma viúva. Esse mesmo oceano voga agora; esse mesmo oceano destruiu os navios naufragados do ano passado. Sim, ó tolos mortais, o dilúvio de Noé ainda persiste; dois terços deste belo mundo ainda é por ele coberto."

Aliás, adianta Ismael que "por um padre católico português, essa mesma ideia de Jonas indo para Nínive através do Cabo da Boa Esperança foi apresentada como uma ampliação do sinal do milagre geral."

Quando em 1888, sensivelmente três décadas após ter abandonado a prosa e de se ter dedicado à poesia, Melville publica o seu penúltimo livro de poemas, John Marr - um eco do português "mar"? - and Other Sailors, será a memória dos tempos de juventude que então revisita.

Quer em longos monólogos dramáticos, quer em poemas breves, ali uma vez mais se configura um imaginário pontuado pelas evocações portuguesas: a referência à ilha da Madeira e a um barco chamado Santa Clara - "Bridegroom Dick"; as reminiscências algo irónicas do português no nome de um comandante - Comander All-a-Tanto; a evocação do cabo das Tormentas, em "Ao Mestre do Meteoro" - o Cabo da Boa esperança é por ele redenominado Cabo das Tempestades; e a Vasco da Gama - "Cruzando os Trópicos". Deste recordo um verso na tradução que dele fiz (Assírio & Alvim): "Nem estas, nem as estrelas do Gama a mim/ Prazer concedem, pois ainda a ti/ Desejo como o Gama a terra desejou."

Na derradeira novela, Billy Budd - Marinheiro, é ainda a este imaginário que ele recorre para sugerir uma atmosfera disfórica do presente: "Para os nossos avós, para os mais medievos, o espírito desta época aparecia-lhes como a figura do Gigante Adamastor de Camões: um eclipse ameaçador cheio de prodígio e mistério."

Concluo recordando que Melville deixou dois poemas centrados no autor de Os Lusíadas - "Camões (antes)" e "Camões no hospital (depois)". No primeiro, recorda o solitário abandono dos derradeiros dias do vate; talvez nele tenha reconhecido algo de equivalente ao esquecimento a que os seus contemporâneos o haviam votado.


Professor catedrático de Estudos Ingleses e Americanos

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