A sala de 18 metros quadrados, sobreaquecida pelo sol que faz subir os termómetros até aos 36 graus, ainda não está cheia. Lá chegaremos. São 15.30, hora marcada para a visita. José Sócrates ainda não veio da cela. Olhamos um para o outro, o Paulo Tavares e eu, e aguardamos de pé a chegada do preso 44..Ao fundo, numa mesa de canto, um recluso abraça a mulher. A indumentária denuncia que a data é festiva. Ela de vestido branco, sapatos de salto de verniz e cabelo arranjado; ele de camisa branca e botões de punho, calças pretas de fato e sapatos impecavelmente engraxados. Ao lado, a porta de vidro com vista para o pórtico de segurança que faz fronteira entre a prisão e a liberdade permite descortinar a entrada de José Sócrates em cena. Magro, a pele tisnada pelo sol do pátio onde não há sombras e com a cabeça bem mais branca do que há seis meses, o ex-primeiro-ministro cumprimenta um por um os guardas prisionais que vigiam a sala de visitas. Os gestos rígidos revelam tensão permanente. Há de ser assim ao longo dos 40 minutos que dura a conversa..Começamos por falar da entrevista. Há alguns detalhes para afinar. José Sócrates tira do bolso do blusão de fato de treino uma esferográfica e duas folhas de papel A4 onde estão impressas as perguntas. O timbre de voz, sempre discreto, sai-lhe em esforço. Mas as veias salientes do pescoço, o olhar agressivo e os gestos constantes das mãos expõem a cólera que o domina de cada vez que pronuncia os nomes do procurador que lidera a investigação da Operação Marquês e do juiz que determinou a sua continuação em prisão preventiva. Por mais que tentemos interrompê-lo, Sócrates não permite. Indigna-se com as perguntas "encomendadas" pelo Ministério Público. Que está enganado, dizemos-lhe. Que é jornalismo o que ali estamos a fazer. Não adianta, o "animal feroz" não se deixa interromper nem se desvia um milímetro da estratégia que decidiu assumir: defender-se atacando..De repente, um dos guardas aproxima-se da mesa. "Peço desculpa por interromper, senhor engenheiro. Quem é que trouxe para aqui estes papéis e esta caneta?" Sócrates responde, sem hesitar: "Fui eu, não posso?" O guarda sorri. "Já sabe que não pode, que é contra as regras", adverte em tom cordato. Não deixa de impressionar a ironia de assistir ao vergar às normas rígidas do homem que até há não muito tempo ditava as regras com autoridade. Sócrates recusa contar o seu dia-a-dia na prisão, "a descida aos infernos" como lhe chama. Não quer alimentar voyeurismos nem ajudar a vender jornais, sobretudo "os tabloides" que abomina. Diz que tem tempo para falar do assunto quando sair da cadeia. Aproveita o episódio das folhas de papel para elogiar os guardas prisionais. "Estes tipos são impecáveis. Tratam-me bem, e até têm um certo instinto protetor em relação a mim.".A sala vai enchendo. Ao canto, o casal festivo abraça-se. A mulher limpa as lágrimas do marido que, por qualquer razão, se foi abaixo. Entretanto na sala já está outro casal. A mãe com o bebé de colo senta-se à mesa mesmo atrás de nós. O choro da criança torna-se insistente, mas nem assim Sócrates desmancha o tom de voz. É tempo de mudar de assunto, deixar o processo para trás. Não sem que antes a raiva do ex-primeiro-ministro se manifeste mais uma e outra vez contra "eles", o juiz e o procurador que o mantêm cativo..Ensaiamos então um novo tópico. Perguntamos-lhe pelo PS e pela proximidade das eleições. Sócrates sabia da sondagem da Católica que aponta para empate técnico. "Não acredito nisso. O PS ganha as eleições", afirma convicto..O tempo da visita está a chegar ao fim. Uma hora por dia e há uma amiga, "uma querida amiga", à espera de o ver. Mesmo assim ainda se fala do Benfica, do episódio do cachecol e da saída de Jorge Jesus para o Sporting. "Ponham-se a pau porque um treinador não faz uma equipa", avisa. José Sócrates levanta-se para se despedir. Os olhares de todos os que ali estão viram-se para o ex-primeiro-ministro. Depois de descarregar a ira contra a justiça em que deixou de confiar e os jornalistas que o julgam e condenam na praça pública, eis que deixa escapar uma despedida desconcertante: "Até à próxima, pá! Nunca pensei ter saudades de jornalistas."