Um filme sobre a intimidade de um casal após o parto
Aos poucos, devagar e bem, Susana Nobre constrói um caminho seguro no cinema novo português. Especialidade: mistura radical de ficção com a realidade. Docudrama, cinema do real ou o quer que seja... É um cinema sempre sob o ponto de vista humano, humaníssimo. Desde Vida Activa, de 2013, retrato da crise económica em Portugal, e Provas, Exorcismos, curta que encantou em Cannes 2015, que o cinema desta cineasta fundadora do coletivo Terratreme parece ter encontrado uma âncora de encenação do momento real sem medos das consequências.
Neste Tempo Comum vai mais longe: pede a Marta Lança que se deixe filmar no momento em que nasce o seu bebé. E o que sai dali é uma prova de que o cinema atinge um milagre de passagem de vida. Vemos a intimidade de um casal perante a mudança de uma rotina. Ao mesmo tempo que recupera do parto, Marta e o companheiro reagem aos deveres de um novo estado de vida, das horas de amamentação à forma como apresentam a bebé Clara ao mundo. Tudo feito segundo a tal simulação da regra observacional do documentário mas que permite forjar elementos de ficção ou reação. Dir-se-ia que é uma câmara que encontra um ponto de vista e um tom formal, algo próximo de um estado suave de decalcar também um comportamento muito português de receber um novo ser humano.
Ao mesmo tempo, a realizadora sabe muito bem evitar as armadilhas do olhar antropológico ou meramente sociológico. A leitura é sempre mais emocional do que outra coisa, mesmo quando a câmara de Nobre fica sempre em contemplação perante um silêncio do lar que é plácido, apenas quebrado pelo choro cândido de Clara.
Marta Lança e o companheiro Pedro Castanheira não representam, mas respeitam situações narrativas. É a sua vida, a sua bebé, os seus problemas, mas o pudor da proposta afasta a menor ilusão de voyeurismo. Os diálogos são escritos e neles reflete uma vontade de não inventar nada do outro mundo, apenas deixar as ações e o contexto fazerem o resto. Retrato de geração? Se quisermos ir por aí mais vale pensar em Tempo Comum como uma celebração do lugar da maternidade em oposição (será mais em rima...) com o lugar do pai. A mãe amamenta, o pai fala. Tempo Comum é por isso uma partilha da experiência, não tendo sido por acaso que a ideia nasceu do próprio processo de gravidez da cineasta.
Longe de ser manual para um repositório temático da revista Pais e Filhos ou um objeto de estudo sobre a identidade maternal, encontra-se um obra de cinema que reflete os tempos daquilo que é mais sagrado no infindável caderno das obrigações do amor: o ato de trazer um ser humano ao mundo. Seguro e com um bom-senso dramático perfeito, Tempo Comum é uma espécie de prova de que a vida real não precisa de piruetas de peripécia nenhumas. Cinema que respira fundo...
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