Qual a distância necessária para se lidar com a história? Não haverá uma resposta absoluta, e a pergunta é particularmente complexa se essa distância, que pode ser moral, tiver que ver tão-somente com a medida concreta do tempo. Quando o norueguês Erik Poppe decidiu realizar um filme - este mesmo que chega agora às nossas salas - sobre o massacre que aconteceu na ilha de Utoya (perto de Oslo), no verão de 2011, houve quem considerasse que era demasiado cedo para o cinema abordar um assunto tão trágico, que ademais é uma ferida ainda aberta na história recente da Noruega e da Europa..Também houve quem achasse importante não deixar apagar a memória nestes tempos em que a transitoriedade da informação mediática tende a favorecer uma espécie de esquecimento coletivo. Poppe moveu-se por essa vontade não só de reavivar a memória, mas quis também prestar uma forma de homenagem às vítimas e sobreviventes. Foi este o seu ponto de vista..Assim, Utoya, 22 de Julho - título que não admite equívocos - assume-se no registo mais realista possível dentro de uma linha ficcional. Tudo começa com uma explosão na zona dos edifícios governamentais em Oslo (onde morreram oito pessoas) causada pelo mesmo extremista de direita, Anders Breivik, que minutos depois se dirigiu à ilha, armado, matando 69 dos 500 jovens do Partido Trabalhista norueguês que ali se encontravam num acampamento de férias. E a grande audácia, desde logo técnica, de Poppe foi filmar o pânico geral com enfoque apenas numa personagem que é acompanhada através de um único plano-sequência cronometrado pela duração efetiva do ataque (72 minutos) - take esse que foi repetido em cinco dias consecutivos de filmagens..Seguimos então Kaja (Andrea Berntzen), uma jovem de 18 anos que procura desesperadamente a sua irmã mais nova no meio do autêntico cenário de guerra em que se converteu a pequena ilha, ao mesmo tempo que tenta sobreviver à ameaça do Mal. Este é, aliás, um dos aspetos fundamentais do filme e o seu traço de inteligência narrativa: o assassino nunca é mostrado frente a frente com as vítimas (ao contrário do que acontece no também recente filme realizado por Paul Greengrass, 22 de Julho, que tem a perspetiva do terrorista, adaptando o livro de Asne Seierstad, One of Us). Ele é antes uma presença aterrorizante que se faz sentir pelo som contínuo dos tiros, mas que permanece sempre fora do campo da imagem, insinuando-se como o Mal invisível e omnipresente..Por via de tal abstração, Erik Poppe conseguiu recriar, com pudor e justeza, a própria tensão visceral daquele momento, aderindo à pele da personagem que na sua saga individual transmite a atmosfera dominante. Com ela, vemos pessoas a correr em todas as direções, outras escondidas, uma delas a morrer e até uma criança que, à semelhança de Kaja, procura o seu irmão mais velho. E neste minimalismo do gesto da câmara reside o maior alicerce dramático de Utoya, 22 de Julho, que não recorre a música para interferir nos sentimentos do espectador perante a crueza de cada minuto. A respiração acelerada é a textura sonora por excelência.."Nunca hás de perceber".Logo no princípio, quando a câmara apanha pela primeira vez Kaja, ela olha-nos de frente e diz "nunca hás de perceber". Esta frase que interpela diretamente o espectador, e que à partida surge fora de contexto, é pronunciada no meio de uma conversa que a jovem está a ter com a mãe ao telemóvel. Mas carrega um enorme simbolismo. De facto, o que Poppe nos quer dizer é que, por mais que o seu filme consiga captar a pulsação daqueles minutos, é impossível atingir a verdade plena do medo e da angústia humana..O respeito do realizador pela matéria delicada com que trabalhou está patente desde a origem do projeto. Fez questão de entrevistar mais de 40 sobreviventes para, na escrita e execução da rodagem, alcançar uma qualquer essência daquilo que os relatos individuais lhe deram. Por essa razão, a personagem de Kaja é o rosto que configura a dor de todos os jovens na ilha, mas é também o assumir de que a ficção não pode ser mais do que isso mesmo..Erik Poppe, que já no seu filme anterior, A Escolha do Rei (2016), quis olhar um episódio histórico do seu país - quando Hitler, em 1940, fez um ultimato ao monarca da Noruega -, mostra-se novamente empenhado na revisão de uma página funesta para provocar a reflexão no público. O que é que podemos fazer para travar a ascensão dos populismos? Tal como a ameaça física de Anders Breivik em Utoya, da mesma forma a Europa está ameaçada pelo Mal que cresce progressivamente através dos discursos de ódio que circulam um pouco por toda a parte. É preciso ganhar verdadeira consciência disso..Nesse sentido, Utoya, 22 de Julhonão é só um filme de reconstituição, centrado numa tentativa de sobrevivência. É sim um ato político tornado cinema, que procura abrir os olhos e fazer bater o músculo do coração, com um realismo obstinado e uma genuína sensibilidade humanista..*** Bom