Um filme pouco católico para desconfinar
O privilégio cristão investigado num patusco documentário que fez furor em festivais de todo o mundo. Salve Santanás? não quer ser nenhuma obra-prima, apenas levantar questões a partir da observação da ascensão do Templo Satânico, um grupo religioso que não quer encarnar o mal mas sim apelar à igualdade religiosa. O resultado é uma investigação rigorosa aos abusos do poder de um cristianismo ditador e perigosamente conservador nos EUA, desfazendo ideias feitas de um culto que vive de um ato provocador contínuo e que, surpreendentemente, funciona como força democrática para reforçar a liberdade de expressão religiosa.
Penny Lee, a realizadora, aposta no efeito surpresa para desmontar lugares comuns sobre o imaginário de Satanás e dos discípulos. Aqui, os maus da fita acabam por ser os líderes cristãos intolerantes, sobretudo quando a câmara os apanha em atitudes de flagrante desrespeito social, não só a impor estátuas da Igreja Baptista no Capitólio em Westboro ou a ameaçar a vida de Lucien Graves, o fundador e líder do Templo Satânico. Aos poucos, vamos conhecendo a organização que no começo parece uma parada de "cosplays" numa convenção do tipo de Comic Con, mas, à lupa, descobre-se que todos têm uma causa. Da igualdade religiosa à defesa de minorias sexuais, os membros do Templo mostram uma determinação em refletir sobre a estética gótica e toda a sua iconografia, explicando o simbolismo dos contextos das Missas Negras, as catequeses satânicas e os debates sobre a separação entre o Estado e a Igreja.
O tom é tão divertido como pedagógico, trata-se de cinema documental com ponto de vista, com farpas afiadas à administração Trump, mesmo quando muitas vezes haja um certo facilitismo no método das encenações, sobretudo quando as entrevistas são montadas num preguiçoso tom de documentário televisivo. Mas muito mais do que um desfile de "freaks", Salve Santanás? é um filme que reclama uma estratégia de intriga do "real", conseguindo-se salientar um arco dramático, em especial quando se exibe a ascensão do culto e os seus problemas de crescimento. Não deixa de ser surpreendente aparecer uma obra capaz de discutir ideias, ter ritmo, humor e não cair no mero efeito de bizarria à Tiger King (a série fenómeno da Netflix). E a maior das surpresas não é o facto destes adoradores do demo não meterem medo, é sim perceber que a supremacia cristã na América está cada vez a ficar mais diabólica.
*** Bom