Quase metade das seis mil línguas faladas no mundo estão numa situação vulnerável ou em risco de desaparecer. Na União Europeia, entre 40 e 50 milhões de pessoas falam uma das suas 60 línguas regionais ou minoritárias, algumas das quais estão em sério risco, de acordo com um documento de Bruxelas. Em Portugal, existem algumas destas línguas sendo que apenas o mirandês (1999) e o barranquenho (2021) já foram reconhecidos pelo Parlamento. É para alertar para a existência destes idiomas e lutar pela sua preservação que se realiza entre hoje e domingo, no Theatro Gil Vicente, em Barcelos, a primeira edição do LÍNGUA - Festival Internacional de Teatro em Línguas Minoritárias, que terá uma periodicidade bienal.."Esta ideia surgiu em 2020 porque, pela nossa experiência teatral, vimos que o teatro em línguas minoritárias estava a ser desvalorizado. E, dada também a nossa sensibilidade pessoal à questão dos idiomas, decidimos fazer um festival para chamar a atenção para estas companhias que fazem teatro étnico e teatro em língua local, e que muitas estão a desaparecer. Este festival pretende dar palco e visibilidade a essas companhias e também promover a a sua preservação e a sua revitalização social e cultural", explica ao DN Cristina Faria, membro do Teatro de Balugas, o organizador do evento, e diretora do LÍNGUA, responsabilidade que partilha com Cândido Sobreiro..Esta primeira edição será dividida nas vertentes de teatro, investigação e formação. No eixo do teatro, o público poderá assistir aos espetáculos de três companhias - Cuontas Mirandesas, uma representação em língua mirandesa apresentada por alunos do Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro (hoje, às 17h00), Fozzia Lésthra Zia Ciccita, um espetáculo em língua sassarese da Compagnia del Teatro Sociale Paco Mustèla da Sardenha (hoje, 21h30) e Bruxas, apresentado em língua estremenha pelos espanhóis De La Burla Teatro (amanhã, 21h30). "Depois temos a investigação, no dia 11 de junho, que será dedicada a um simpósio internacional de teatro em línguas minoritárias. Convidámos linguistas, agentes culturais, convidámos também as companhias participantes desta edição e vamos todos, em conjunto, debater o futuro do teatro em línguas minoritárias, que oportunidades há, que fragilidades existem", refere Cristina Faria, adiantando que em 2023 será divulgada uma publicação com os resultados deste simpósio..A parte da formação está agendada para domingo de manhã e será destinada aos participantes deste festival, mas também ao público em geral. Um dos módulos será uma oficina sobre commedia dell"arte ministrada por dois italianos e o outro estará a cargo do ator e dramaturgo português Ricardo Correia, que falará sobre a criação em teatro documental..No âmbito deste festival foi criado em fevereiro o Clube UNESCO para a Salvaguarda do Teatro em Línguas Minoritárias, coordenado por Cristina Faria, e que tem como grande objetivo criar uma base de dados documental onde se "fará o registo do teatro em línguas minoritárias, um registo geográfico, linguístico e cultural de cada companhia que irá participar nas edições do festival"..Segundo Cristina Faria, o teatro em Portugal para línguas minoritárias é quase inexistente. "Existem algumas companhias. Uma delas, que faz em mirandês, é profissional e apresenta-se por todo o país: a LÉRIAS", salienta esta responsável, sublinhando que este "é um contexto muito fragilizado em Portugal, nomeadamente em relação à realidade italiana, à espanhola e mesmo à francesa"..Uma realidade que reflete a própria dimensão das línguas minoritárias em Portugal e nestes outros países. "Portugal acaba por ser dos países da Europa em que há menos línguas. Temos o mirandês, temos línguas que vieram de fora mas que são faladas por muitos portugueses, como o cabo-verdiano ou outras, nas acima de tudo é o mirandês que é considerado língua minoritária", exemplifica Marco Neves, linguista e um dos moderadores do simpósio do LÍNGUA. "Aqui ao lado em Espanha, para lá das línguas que todos já ouvimos falar, como o castelhano, o catalão, o galego e o basco, há outras como o estremenho, o aranês, que é falado na Catalunha e que está ligado ao provençal, há o asturiano, que está ligado ao mirandês, temos um número bastante grande.".Voltando ao caso português, para este professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, de modo a proteger e divulgar mais as línguas minoritárias no nosso país é preciso "haver mais interesse por elas e este tipo de festivais e iniciativas acabam por ser importantes nesse aspeto". "Às vezes basta apenas ter mais curiosidade e tentar combater algumas ideias muito simples, como a de que as pessoas acharem de uma língua será aquela que o Estado escolhe e o resto são dialetos, e não é bem assim." Na opinião de Marco Neves, a cultura e, em particular, o teatro são muito importantes para a preservação destas línguas minoritárias. "Quando olhamos para as línguas, mesmo as que estão hoje a desaparecer, ainda é muitas vezes no teatro que as encontramos a serem usadas pela população. Mesmo quando essas línguas depois na escrita, nos jornais, não aparecem, o teatro serve para proteger esta riqueza cultural, que muitas vezes tem que ver com o vocabulário. Imagine numa ilha: há plantas que só têm nome na língua daquela ilha, e esta riqueza cultural, no sentido mais lato, é protegida por estas manifestações, neste caso, teatrais.".ana.meireles@dn.pt