Depois de Cannes e Veneza, o cinema de autor não mostra fragilidades face à pandemia. O vírus não mudou o cinema. As salas nestes festivais estão cheias, a indústria faz negócios (pelo Kursaal foram vistos alguns distribuidores às compras ou a espreitar...) e há uma vitalidade teimosa nas produções mais independentes. Dir-se-ia até que, do outro lado, daquilo que sai das plataformas, parece até haver uma pedalada maior. Mesmo os chamados filmes de estúdio não pareceram querer faltar à chamada. Em San Sebastián, só para se enquadrar a sua importância, a Sony, a Disney, a Warner e a Universal tiveram cá filmes. Respeito, muito respeito para esta edição número sessenta e nove de um festival que fez uma seleção inteligente e engenhosa perante a competição de Cannes (neste ano, por ter sido em julho, ficou mais próxima) e Veneza..Uma seleção que permitiu demonstrar que o cinema espanhol atravessa uma interessante fase, sobretudo conjugando uma diversidade de registos com uma grandiosidade de meios típica de uma indústria que cada vez é mais sólida. Gostando-se menos ou mais destas propostas, não se pode dizer que foram obras que chegaram ao festival por favor ou que apresentassem uma linguagem cinematográfica industrial. Tome-se o exemplo de Maixabel, drama sobre as feridas da ETA dirigido por Iciar Bollaín, cineasta que tenta uma experiência de catarse com um o tema do perdão aos terroristas da ETA. Material sensível tratado com um bom senso humanista notável. Por ser dirigido por uma mulher e com quatro juradas, não era escândalo nenhum hoje ser premiado com o prémio máximo, a Concha de Ouro, embora não se possa subestimar El Buen Patrón, de Fernando León de Aranoa, comédia de agitação social que aborda os abusos do patronato espanhol. Pelo menos aí há que esperar a possibilidade de Javier Bardem levar a Concha do melhor ator..E se falamos de prémios, a imprensa espanhola aponta o favoritismo a Quién lo Impide, de Jonás Trueba, facilmente o melhor filme em competição. Três horas e meia de mistura imperiosa de documentário e ficção. Um exercício do real que durante cinco anos acompanhou adolescentes de Madrid que criaram personagens de ficção através da própria realidade que os enquadra. Um relato de uma geração filmado com um deslumbramento poético e um sentido de vida fulgurante. Estrondo grande no festival, a obra que consagra de uma vez por todas o jovem Trueba. Desde La Virgen de Agosto (2019), inédito entre nós, que se tornou o novo príncipe do cinema espanhol..E também fora de competição a Espanha esteve em evidência, em especial na secção Pérolas onde foi apresentado Competencia Oficial, sátira sobre o mundo do cinema espanhol. Trata-se de uma coprodução com a Argentina dirigida pela dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn. Ou o cinema espanhol sem medo de se rir de si próprio e é aqui que está a frase que deixa todos a pensar: "Pôr a arte a competir é coisa atroz", dita por um ator vaidoso..Para lá das vagas espanholas, a tendência foi também esse cruzamento entre a literatura e o cinema. Primeiro chegou Benediction, de Terence Davies. Não é um dos seus melhores filmes, mas há uma ousadia na forma explícita como este biopic do escritor Siegfried Sassoon expõe o peso das palavras ditas. É quase performance pura e dura, tal como o peso do monólogo de Vous ne Désirez que Moi, de Claire Simon, a partir de uma entrevista longa de Yann Andréa, o famoso companheiro jovem de Marguerite Duras. Um filme que amplia o mito do fantasma Duras mas que não encontra um golpe de asa para sair da redoma que é o seu próprio engenho....Javier Bardem.O ator espanhol foi uma das sensações do festival. Em El Buén Patrón, comédia com humor cruel de Fernando León de Aranoa, Bardem interpreta um "dono disto tudo" espanhol. Um industrial barrigudo e grisalho que quer ser exemplar à força. Vemo-lo a habitar a personagem com um à-vontade que assusta. Quando quer, é o maior ator vivo..Swann Arlaud.Chegou a Donostia discreto e com a timidez habitual dos franceses talentosos. Em Vous ne Désirez que Moi, de Claire Simon, transforma-se por completo no amante de Duras. É uma interpretação de um fulgor invisível tremendo. É a interpretação que o vai colocar no topo dos grandes atores franceses de cinema. O rosto de Swann Arlaud é todo ele cinema..Almudena Amor.Esteve bem visível em dois dos filmes da competição. Em El Buén Patrón era uma espécie de Lolita que espicaçava o patrão abusador e em La Abuela transformava-se em musa cuja beleza funcionava como uma maldição. Almudena Amor terá sido a revelação espanhola desta edição. Uma atriz com vários registos e uma beleza que é intemporal....Marion Cotillard.A atriz venceu o prémio de carreira do festival e agradeceu ao festival um sinal de apoio nessa mudança. Mudança? Sim, Marion é também produtora e veio também ao festival nessa qualidade, neste caso para promover Bigger than Us, de Florence Vasseur, uma instigação ao valor do ativismo nos dias de hoje. Ainda assim, deu uma de vedeta e deixou agarrados os jornalistas que se preparavam para a entrevistar....Louis Garrel.Na secção Pérolas, uma das pérolas foi o simpatiquíssimo La Croisade, de Louis Garrel, um retomar das personagens de Um Homem Fiel, o seu filme anterior. Cinema com mensagem ecológica numa fábula que inventa uma cruzada de crianças de todo o mundo para reflorestar o deserto do Saara. Em conversa com o DN, o ídolo francês confessou ser um bicho urbano e confirmou a sua presença em novembro no LEFFEST.
Depois de Cannes e Veneza, o cinema de autor não mostra fragilidades face à pandemia. O vírus não mudou o cinema. As salas nestes festivais estão cheias, a indústria faz negócios (pelo Kursaal foram vistos alguns distribuidores às compras ou a espreitar...) e há uma vitalidade teimosa nas produções mais independentes. Dir-se-ia até que, do outro lado, daquilo que sai das plataformas, parece até haver uma pedalada maior. Mesmo os chamados filmes de estúdio não pareceram querer faltar à chamada. Em San Sebastián, só para se enquadrar a sua importância, a Sony, a Disney, a Warner e a Universal tiveram cá filmes. Respeito, muito respeito para esta edição número sessenta e nove de um festival que fez uma seleção inteligente e engenhosa perante a competição de Cannes (neste ano, por ter sido em julho, ficou mais próxima) e Veneza..Uma seleção que permitiu demonstrar que o cinema espanhol atravessa uma interessante fase, sobretudo conjugando uma diversidade de registos com uma grandiosidade de meios típica de uma indústria que cada vez é mais sólida. Gostando-se menos ou mais destas propostas, não se pode dizer que foram obras que chegaram ao festival por favor ou que apresentassem uma linguagem cinematográfica industrial. Tome-se o exemplo de Maixabel, drama sobre as feridas da ETA dirigido por Iciar Bollaín, cineasta que tenta uma experiência de catarse com um o tema do perdão aos terroristas da ETA. Material sensível tratado com um bom senso humanista notável. Por ser dirigido por uma mulher e com quatro juradas, não era escândalo nenhum hoje ser premiado com o prémio máximo, a Concha de Ouro, embora não se possa subestimar El Buen Patrón, de Fernando León de Aranoa, comédia de agitação social que aborda os abusos do patronato espanhol. Pelo menos aí há que esperar a possibilidade de Javier Bardem levar a Concha do melhor ator..E se falamos de prémios, a imprensa espanhola aponta o favoritismo a Quién lo Impide, de Jonás Trueba, facilmente o melhor filme em competição. Três horas e meia de mistura imperiosa de documentário e ficção. Um exercício do real que durante cinco anos acompanhou adolescentes de Madrid que criaram personagens de ficção através da própria realidade que os enquadra. Um relato de uma geração filmado com um deslumbramento poético e um sentido de vida fulgurante. Estrondo grande no festival, a obra que consagra de uma vez por todas o jovem Trueba. Desde La Virgen de Agosto (2019), inédito entre nós, que se tornou o novo príncipe do cinema espanhol..E também fora de competição a Espanha esteve em evidência, em especial na secção Pérolas onde foi apresentado Competencia Oficial, sátira sobre o mundo do cinema espanhol. Trata-se de uma coprodução com a Argentina dirigida pela dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn. Ou o cinema espanhol sem medo de se rir de si próprio e é aqui que está a frase que deixa todos a pensar: "Pôr a arte a competir é coisa atroz", dita por um ator vaidoso..Para lá das vagas espanholas, a tendência foi também esse cruzamento entre a literatura e o cinema. Primeiro chegou Benediction, de Terence Davies. Não é um dos seus melhores filmes, mas há uma ousadia na forma explícita como este biopic do escritor Siegfried Sassoon expõe o peso das palavras ditas. É quase performance pura e dura, tal como o peso do monólogo de Vous ne Désirez que Moi, de Claire Simon, a partir de uma entrevista longa de Yann Andréa, o famoso companheiro jovem de Marguerite Duras. Um filme que amplia o mito do fantasma Duras mas que não encontra um golpe de asa para sair da redoma que é o seu próprio engenho....Javier Bardem.O ator espanhol foi uma das sensações do festival. Em El Buén Patrón, comédia com humor cruel de Fernando León de Aranoa, Bardem interpreta um "dono disto tudo" espanhol. Um industrial barrigudo e grisalho que quer ser exemplar à força. Vemo-lo a habitar a personagem com um à-vontade que assusta. Quando quer, é o maior ator vivo..Swann Arlaud.Chegou a Donostia discreto e com a timidez habitual dos franceses talentosos. Em Vous ne Désirez que Moi, de Claire Simon, transforma-se por completo no amante de Duras. É uma interpretação de um fulgor invisível tremendo. É a interpretação que o vai colocar no topo dos grandes atores franceses de cinema. O rosto de Swann Arlaud é todo ele cinema..Almudena Amor.Esteve bem visível em dois dos filmes da competição. Em El Buén Patrón era uma espécie de Lolita que espicaçava o patrão abusador e em La Abuela transformava-se em musa cuja beleza funcionava como uma maldição. Almudena Amor terá sido a revelação espanhola desta edição. Uma atriz com vários registos e uma beleza que é intemporal....Marion Cotillard.A atriz venceu o prémio de carreira do festival e agradeceu ao festival um sinal de apoio nessa mudança. Mudança? Sim, Marion é também produtora e veio também ao festival nessa qualidade, neste caso para promover Bigger than Us, de Florence Vasseur, uma instigação ao valor do ativismo nos dias de hoje. Ainda assim, deu uma de vedeta e deixou agarrados os jornalistas que se preparavam para a entrevistar....Louis Garrel.Na secção Pérolas, uma das pérolas foi o simpatiquíssimo La Croisade, de Louis Garrel, um retomar das personagens de Um Homem Fiel, o seu filme anterior. Cinema com mensagem ecológica numa fábula que inventa uma cruzada de crianças de todo o mundo para reflorestar o deserto do Saara. Em conversa com o DN, o ídolo francês confessou ser um bicho urbano e confirmou a sua presença em novembro no LEFFEST.